Processo n.º 372/2011
(Recurso cível)
Data : 23/Fevereiro/2012
ASSUNTOS:
- Taxa de alcoolemia
- Direito de regresso
- Condução sob o efeito do álcool
- Nexo causal entre o álcool e o acidente
SUMÁRIO:
1. Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente
2. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente
3. O nexo causal entre a quantidade de álcool no sangue e a produção do resultado, o acidente, deve-se extrair da articulação e conjugação da globalidade dos factos, cabendo às instâncias - aqui 1ª e 2ª - concluir a partir da factualidade apurada se o acidente se produziu porque o condutor estava embriagado ou por uma qualquer outra razão.
4. A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou.
5. Se numa decisão se conclui, contra a seguradora, e se prova que o acidente se deu na hemifaixa direita, atento o sentido de marcha da segurada da autora, depois de esta ter transposto uma linha contínua, conjugado com a taxa de alcoolemia que a condutora culpada pelo acidente mortal que vitimou o motociclista que seguia em sentido contrário era portadora; se se prova a inerente diminuição de atenção, reacção e visão em consequência daquela taxa de álcool; mas não se prova que o acidente se ficou a dever a essa razão; se não se avança com qualquer outra explicação;
segundo as regras da experiência e a ponderação da globalidade dos factos, uma resposta negativa a esse nexo causal afigura-se contraditório com o demais, a não ser que emirja uma explicação que se não evidencia.
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 372/2011
(Recurso Cível)
Data: 23/Fevereiro/2012
Recorrente: Companhia de Seguros A
(A保險股份有限公司)
Recorrida: B (XXX)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
Companhia de Seguros A, autora nos autos à margem referenciados e aí mais bem identificada, inconformada com a sentença que julgou improcedente o pedido formulado pela autora de reembolso da quantia de MOP$1,024,610.52 e respectivos juros vincendos contados à taxa legal desde 27 de Outubro de 2008, até integral pagamento, quantia essa paga pela aqui recorrente Seguradora às demandantes do pedido cível, efectuada no âmbito dos autos de processo comum colectivo n° CR2-04-0178-PCC, do 2° Juizo Criminal do Tribunal Judicial de Base em que foi arguida a ré, aqui recorrida, B, vem recorrer, alegando em sede de conclusões.
1ª Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida pela Meritíssima Juiz Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, que julgou improcedente o pedido formulado pela Autora de reembolso da quantia de MOP$1,024,610.52, e respectivos juros vincendos contados à taxa legal desde 27 de Outubro de 2008, até integral pagamento, quantia essa paga pela aqui Recorrente Seguradora às Demandantes do pedido cível, efectuada no âmbito dos autos de processo comum colectivo n° CR2-04-0178-PCC, do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base em que foi Arguida a Ré, aqui Recorrida, B;
2ª Considerou o douto Tribunal a quo que, apesar de ter ficado demonstrado que a ingestão de álcool provocou na Ré a diminuição das suas capacidades de atenção, reacção e visão, nada terá ficado verdadeiramente provado acerca do efeito do álcool na verificação do acidente, e que o mero facto de a Ré conduzir sobre o efeito de bebidas alcoólicas, por si, não significa que foi o álcool que levou à verificação do acidente;
3ª A Recorrente não pode concordar com o argumento aduzido, pois existe matéria de facto dada como provada e também matéria de Direito que apontam para a factualidade de que foi o álcool ingerido pela Recorrida que deu causa ao acidente;
4ª O legislador de Macau no art. 16° alínea c) do Decreto-Lei n° 57/94/M estabelece que a Seguradora tem direito de regresso contra o condutor que "tiver agido sob a influência do álcool", e a definição do que seja "condução sob influência de álcool" há que ser encontrada no seio do ordenamento jurídico, buscando a respectiva coerência e unidade, havendo que estabelecer a definição que se encontra plasmada no art. 96° da Lei n° 3/2007 (Lei do Trânsito Rodoviário) que estabelece, "1. É proibido conduzir na via pública sob influência de álcool, considerando-se, para os efeitos da presente lei, sob influência de álcool, o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 0,5 gramas por litro ( ... )";
5ª No aludido preceito legal, o legislador de Macau estabeleceu uma presunção legal “juris et de jure” de que, a partir do limite mínimo de 0,5 g/l, o álcool influencia o condutor na sua actividade de condução, uma vez que inevitavelmente, para além de tal limite, o álcool afecta a capacidade de percepção, os reflexos, a capacidade motora, a destreza de movimentos, a visão e a atenção;
6ª Não se pode aceitar assim a conclusão ínsita na sentença ora recorrida, em que a condutora circulava com uma taxa de alcoolemia de 0,89 g/l, para se concluir que, em relação ao nexo de causalidade entre a TAS que a Ré apresentava e o embate, nenhuma prova foi feita do mesmo;
7ª O nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente presume-se sempre que se ultrapasse a taxa de alcoolémia fixada por lei, uma vez que além deste limite o legislador entendeu que o condutor se encontra, necessariamente, com manifesta falta de perícia e destreza pois que as suas capacidades de reacção e reflexão, imprescindíveis a uma condução segura e cuidada, se encontram reduzidas;
8ª A condução sob influência do álcool" se basta com a alegação e prova de: uma condução com taxa de alcolémia superior à permitida por lei -0,5 g/l; e a culpa exclusiva do condutor alcoolizado na produção do acidente;
9ª No caso dos vertentes autos, a Ré, ora Recorrida, estando embriagada (alínea B) dos factos assentes), conduzia com uma taxa de alcoolémia de 0,89 g/l, e ao aproximar-se da curva, perto do poste de iluminação n.º 743006, a Ré, ia a conduzir a alta velocidade em cima da linha contínua dessa via, a seguir, ultrapassou a linha contínua e embateu violentamente com o motociclo do ofendido que se aproximava de frente e , em consequência do embate, o ofendido e o seu motociclo foram projectados para trás (alínea E) dos factos assentes), sendo que, quando, o automóvel da Ré, ultrapassou a linha contínua, a velocidade a que ia não era menos do que 60/km/h (alínea F) dos factos assentes);
10ª Só o grau de álcool no sangue com que a Ré estava afectada - cerca do dobro acima do máximo permitido por Lei (0,5 g/l) - determinou a falta de sensibilidade e reflexos que levaram a Ré a não adequar a sua condução às características do local, e a não conseguir controlar o seu veículo, de modo a evitar ultrapassar a linha contínua e embater violentamente com o motociclo do ofendido;
11ª Não podia assim o douto Tribunal a quo considerar como não provado o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia da Ré e a produção do acidente dos autos, quando a culpa exclusiva da mesma está mais do que assente, e quando ela, enquanto condutora, seguia com uma TAS cerca do dobro acima do limite legalmente imposto;
12ª Conjugando a taxa de alcoolémia registada com a própria dinâmica do acidente o Tribunal, sempre se deveria, à luz das mais básicas regras da experiência e senso comum, concluir sobre a existência de nexo de causalidade;
13ª Em todo o caso, é certo que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado na douta Sentença recorrida, e cuja doutrina nele acolhida fundamentou a decisão ora em crise, não dispensa a prova por parte da Seguradora do nexo de causalidade, e sendo também verdade que a condução sob a influência de álcool começa por ser condição sine qua non para o reconhecimento do direito de regresso;
14ª Se a mera prova da condução sob o efeito de álcool se mostra insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos, esteja o Tribunal impedido de os relacionar e de, tendo em conta o caso em apreço, pela forma como o mesmo ocorreu e em face da inexistência de outra explicação razoável e plausível conclua pela existência daquele nexo.
15ª E sempre o fará com o recurso às presunções, tratando-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 342º do CC);
16ª As presunções conforme se encontram estatuídas no artigo 3420 do CC são meios de prova figurando, aliás, em primeiro lugar entre os legalmente previstos, à frente da confissão, da prova documental, da prova pericial e por inspecção e da prova testemunhal (artigos 345º e seguintes do Código Civil);
17ª Atendendo às regras de experiência comum é sabido que o álcool funciona como uma potente droga sedativa, actuando sobre o sistema nervoso central e que entre os sintomas de intoxicação alcoólica resultantes do efeito sobre o sistema nervoso central incluem-se a perda de equilíbrio, a descoordenação motora, a perda de acuidade visual, a instabilidade emocional, a perda da capacidade de avaliação e perda de tempo de reacção;
18ª Deste modo as capacidades sensoriais, perceptivas e de coordenação motora ficam fortemente prejudicadas;
19ª O álcool até mesmo em pequenas quantidades prejudica a capacidade do condutor em vislumbrar situações perigosas e de tomar as decisões adequadas a evitá-las e as pessoas que se encontrem sob a sua influência estão mais propensas a sofrer acidentes que outras;
20ª Cientificamente falando, no caso concreto dos vertentes autos, a taxa de álcool apresentada pela condutora ora Recorrida, ou seja, 0,89 g/l, pode originar estado de euforia - aumento de autoconfiança e diminuição das inibições, perda de atenção, da capacidade de avaliação e auto-controlo devidas à diminuição da coordenação e percepção sensoriais;
21ª O que justificou plenamente a dificuldade da ora Recorrida em não adequar a sua condução às características do local, e a não conseguir controlar o seu veículo, de modo a evitar ultrapassar a linha contínua e embater violentamente com o motociclo do ofendido;
22ª Nenhum outro elemento causal pode ser atribuído à ocorrência do acidente, inexistindo outra explicação razoável e plausível que justifique a ausência do nexo causal, pois tal como consta dos factos provados, na altura do acidente o tempo estava bom, o pavimento não estava molhado nem escorregadio, a iluminação era boa e a densidade do trânsito era fraca (alínea L) dos factos assentes);
23ª A prova produzida nestes autos, e constante da matéria dada por assente na douta Sentença recorrida, aliada às mais elementares regras de ciência e experiência comum, e tendo em conta, ainda, a TAS de 0,89 g/l apresentada pela Ré/Recorrida, impõe que seja impugnada a decisão de dar os quesitos 2°, 3° e 4° da Base Instrutória como não provados;
24ª Está cabalmente demonstrado que a Recorrida, no momento do acidente dos autos, só poderia estar a conduzir com manifesta alteração das suas capacidades, sem atenção, com falta de reflexos, diminuição relevante da sua capacidade de antecipação, previsão e análise da situação, deturpação da sua capacidade de decisão e alteração e decréscimo da sua capacidade de calcular a adequação da velocidade em relação à curva que se aproximava no seu trajeto, tornando-a audaz e destemida, e levando-a a conduzir constantemente sob a linha contínua e a transpô-la, com isso vindo a embater violentamente no motociclo do ofendido, assim se impondo que a matéria vertida nos quesitos 2°, 3° e 4° da Base Instrutória seja dada como provada;
25ª Não se pode ignorar que o embate dos autos foi consequência directa e necessária da condução temerária, sem atenção e com falta de reflexos praticada pela Ré em virtude da taxa de álcool que a afectava;
26ª E ao agir como se disse, a ora Recorrida violou as mais elementares regras estradais e de segurança rodoviária;
27ª Foi por isso, que reconhecendo que a condução sob o efeito de álcool constitui uma actividade perigosa por a sua própria natureza, por potenciadora dos riscos próprios da condução se veio a criar um novo ilícito penal, considerando crime a condução com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 gramas por litro - artigo 90º da Lei do Trânsito Rodoviário;
28ª Estarão assim provados todos os factos que consubstanciam o nexo de causalidade entre a condução da Recorrida sob o efeito do álcool e a produção do acidente dos autos;
29ª Da apreciação concreta da factualidade dada como provada em sede de audiência de julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum, podemos com toda a certeza concluir que existe, no caso em apreço, nexo causal entre a taxa de álcool no sangue e o acidente sub Júdice;
30ª Resulta assim claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto nos arts. 16° e 45° do DL 57/94/M de 28 de Novembro, devendo ser proferido douto Acórdão que considere que existe, no caso em apreço, nexo causal entre a taxa de álcool no sangue e o acidente sub Júdice, condenando-se a Recorrida no pagamento da quantia peticionada na acção proposta nos presentes autos.
B, demandada nos autos à margem referenciados, notificada das alegações de recurso da A., vem contra alegar, dizendo, em suma:
A) A recorrente procura, debalde, que este venerando Tribunal sufrague a responsabilidade objectiva e automática do condutor que conduza sob a influência de álcool. Portanto, independentemente da culpa ou, até, contra o princípio da culpa.
B) A recorrente limita-se a repetir argumentos que foram já, exaustiva e exemplarmente, resolvidos pela douta decisão a quo, que seguiu a tese generalizadamente aceite, segundo a qual o mero facto da condução sob o efeito do álcool não exime da prova do nexo de causalidade entre tal circunstância e o sinistro.
C) Dizer-se que só pelo facto do condutor circular o veículo com uma TAS superior à legal, a seguradora tem desde logo direito a regresso, implicaria ignorar um elemento essencial da responsabilidade civil, ou seja, a culpa.
D) A orientação seguida pela douta decisão a quo foi sufragada no ordenamento jurídico português, em tudo idêntico na parte que ora interessa e que, por isso, se cita como boa orientação jurisprudencial, na parte respectiva em que versou sobre a mesma matéria, pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, n.º 6/2002, DR-I-A, 18.07.2002, cujo teor é o seguinte: «A alínea c) do artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus de prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob efeito do álcool e o acidente».
E) Qualquer outra orientação, designadamente aquela pretendida pela recorrente, só de iure condendo poderá vir a interessar.
F) Ademais, à data dos factos o legislador considerava condução sob influência do álcool aquela em que se verificasse no condutor «uma taxa de alcoolémia igualou superior a 0,8 e inferior a l,5 gramas por litro de sangue» (n.º 3 do art. 68.º do Decreto-Lei n.º 16/93/M, de 28 de Abril, que aprovou o Código da estrada, vigente até à entrada em vigor da presente Lei do Trânsito Rodoviário).
G) Ora, à demandada, à data dos factos, foi detectada uma taxa de alcoolemia de 0,89, - valor este que estando tão próximo do limite mínimo legal de 0,8 não poderá deixar de considerar-se de extraordinária precariedade.
H) Dado o conhecido processo de progressiva absorção do álcool, e tendo em consideração a margem de erro possível nos testes de medição, é perfeitamente lícito supor que no preciso momento da eclosão do acidente a demandada poderia - na definição legal da época, - estar a conduzir sem estar sob a influência do álcool.
I) Desviando a atenção desta realidade, a recorrente cita ostensivamente a lei actual que, meia década após o acidente, veio estabelecer um limite mínimo inferior, de 0,5 gramas por litro de sangue, como forma de enfatizar que a demandada conduzia sob a influência do álcool.
Termos em que deve improceder o recurso e, manter-se, por correcta e inexistência de qualquer vício, a douta decisão a quo,
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Autora explora a actividade seguradora (alínea A) dos factos assentes).
- No dia 15 de Fevereiro e 2002, cerca das 11 horas e tal da noite, a arguida B, estando embriagada, conduziu o automóvel ligeiro com chapa de matrícula MX-XX-XX, circulando na Estrada Nordeste da Taipa, com sentido de marcha da rua Choi Long para Rotunda Dr. Carlos D' Assumpção (alínea B) dos factos assentes).
- A Ré continha 0.89 gramas de álcool em cada litro de sangue (alínea C) dos factos assentes).
- Na altura, C ia a conduzir um motociclo com a matrícula MX-XX-XX, na Estrada Nordeste da Taipa, com sentido de marcha da Rotunda Dr. Carlos D' Assumpção para Rua Choi Long (alínea D) dos factos assentes).
- Ao aproximar-se da curva, perto do poste de iluminação n.º 743D06, a Ré, ia a conduzir a alta velocidade em cima da linha contínua dessa via, a seguir, ultrapassou a linha contínua e embateu violentamente com o motociclo do ofendido que se aproximava de frente e , em consequência do embate, o ofendido e o seu motociclo foram projectados para trás (alínea E) dos factos assentes).
- Quando, o automóvel da Ré, ultrapassou a linha contínua, a velocidade a que ia não era menos do que 60lkm/h (alínea F) dos factos assentes).
- Esse embate fez com que o ofendido ficasse gravemente ferido, tendo sido o mesmo transportado por ambulância para ser socorrido no hospital que, no entanto, veio a falecer no dia seguinte, 16 de Fevereiro de 2002, pelas 11:15 horas da manhã (alínea G) dos factos assentes).
- C faleceu devido aos ferimentos graves no craneo-cerebral e laceração da artéria da testa do lado direito (alínea H) dos factos assentes).
- Nos instantes imediatos ao acidente, C perdeu os sentidos e estava inconsciente (alínea I) dos factos assentes).
- Devido à gravidade dos ferimentos em causa, C entrou em coma até à sua morte no dia seguinte (alínea J) dos factos assentes).
- No momento do acidente, o tempo estava bom, o pavimento não estava molhado nem escorregadio, a iluminação era boa e a densidade do trânsito era fraca (alínea L) dos factos assentes).
- A Ré bem sabendo que estando num estado de embriaguez não devia conduzir, mesmo assim conduziu (alínea M) dos factos assentes).
- Ao aproximar duma curva que não tinha visibilidade suficiente, não chegou a moderar significativamente a velocidade, fazendo com que o seu automóvel ultrapassasse a linha continua e colidisse com a viatura de C, provocando a morte do mesmo devido aos graves ferimentos causados no embate (alínea N) dos factos assentes).
- A Ré não conduziu com prudência nem esteve alerta a fim de evitar que o acidente acontecesse (alínea O) dos factos assentes).
- A Ré também sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei (alínea P) dos factos assentes).
- Por acórdão já transitado em julgado, proferido nos autos CR2-04-0178-PCC, a condutora, aqui Ré, B, foi declarada única e exclusiva culpada do acidente, tendo sido condenada a (alínea Q) dos factos assentes):
a. Um crime de homicídio por negligência grosseira, p.p. artigo 134°, n° 2 do Código Penal, art. 66°, nº 2, art. 66°, n° 3, al. a) e c), art. 66°, n° 2 e n° 3, al. a) e c) e art. 73°, n° 1, al. a) do Código da Estrada, na pena de 3 anos de prisão efectiva;
b. Uma contravenção por conduzir sob a influência do álcool, p.p. pelo art. 68°, n.º 3 e art. 74°, n.º 1 e art. 71° do Código da Estrada, na pena de multa de MOP$5.000,00, ou em alternativa, 15 dias de prisão; e
c. Uma contravenção por ter transposto a linha contínua, p.p. art. 9°, n.º 3, al. a) e art. 9°, n° 16, al. c) do Regulamento do Código da Estrada, na pena de multa de MOP$1.000,00.
d. Uma contravenção por não ter reduzido a velocidade numa curva de visibilidade insuficiente, p.p. art. 23°, al. a), art. 7°, n° 3 e art. 71° do Código da Estrada, na pena de multa de MOP$2.000,00, em alternativa 6 dias de prisão e,
e. Em cúmulo jurídico, condena a arguida numa única pena de 3 anos de prisão efectiva e de multa de 8.000,00 da qual MOP$7.000,00 em alternativa, 21 dias de prisão.
- A Autora foi demandada civilmente naqueles autos e condenada a pagar às demandantes XXX, bem como XXX e XXX, uma indemnização civil no montante de MOP$1.000.000,00, quantia essa correspondente ao limite de indemnização por cada acidente, de acordo com os termos da apólice (alínea R) dos factos assentes).
- A Autora pagou às demandantes cíveis, através de depósito daquela quantia, junto do Banco Nacional Ultramarino, à ordem do Tribunal (alínea S) dos factos assentes).
- Até hoje, a Autora despendeu a quantia de MOP$1.000.000,00 para pagamento da indemnização civil às demandantes XX, XXX e XXX e a quantia de MOP$20.250,00 a título de honorários dos seus advogados e despesas judiciais, o que perfaz o total líquido de MOP$1.020.250,00 (um milhão, vinte mil, e duzentas e cinquenta patacas) (alínea T) dos factos assentes).
- Por carta registada com aviso de recepção, datada de 26 de Setembro de 2008, a Autora interpelou a Ré no sentido de proceder ao pagamento da quantia em dívida, dando-lhe um prazo de dez dias para o fazer, caso contrário, recorreria aos meios judicias para a cobrança da respectiva dívida (alínea U) dos factos assentes).
- Carta essa a qual a Ré recebeu e nada disse (alínea V) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- A ingestão de álcool provocou na Ré, a diminuição das suas capacidades de atenção, reacção e visão (resposta ao quesito da 1º da base instrutória). “
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se se verifica no caso sub judice o direito de regresso da Seguradora pelas quantias por esta pagas na sequência do acidente de viação que a sua segurada teve, sendo que na altura lhe foi detectada uma taxa de álcool no sangue de 0,89 g por litro.
E para tanto, o que está em causa é a existência ou não de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolémia detectada no sangue da ré e o acidente provocado pela mesma.
Esta é a única questão a apurar.
2. Tal direito de regresso tem assento em termos de previsão normativa no artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro, segundo a qual "Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este ... tiver agido sob a influência do álcool ... ".
Para o efeito, alegou que a ré, sua segurada, é responsável por um acidente de viação donde proveio a morte da vítima; que a ré estava a conduzir com uma taxa de alcoolemia de 0,89g por litro de sangue a qual provocou na mesma diminuição da capacidade de atenção, reacção e visão, tornando-a audaz e dsetemida, o que a levou a conduzir constantemente sob a linha contínua transpondo-a e a embater no motociclo da vítima; que, por esses factos, a ré foi considerada culpada no respectivo processo crime bem como condenada pelo cometimento de um crime de homicídio e três infracções às regras estradais, uma das quais por condução sob a influência do álcool; que, no referido processo crime, a autora foi condenada, para além de uma pena de prisão efectiva por três anos, a pagar uma quantia de MOP$1.000.000,00 a título de indemnização civil às demandantes do pedido cível e efectivamente lhas pagou; e que a autora despendeu; a quantia de MOP$20.250,00 a título de honorários e despesas judiciais.
Contestando a acção, a ré apenas insurgiu contra o entendimento de que o álcool detectado teve algum efeito na produção do acidente defendendo que o acidente fora causado pela velocidade a que ia seguindo conjugada com o estado da curva que estava a fazer quando o acidente ocorreu. Não foi impugnada a restante matéria alegada pela autora, designadamente que a ré estava a conduzir com a referida taxa de alcoolemia e com excesso de velocidade; que foi considerada culposamente responsável pelo acidente mortal; que a autora foi condenada a pagar às demandantes do pedido cível e efectivamente lhes pagou a quantia de MOP$1.000.000,00.
3. A questão cinge-se em saber se se pode retirar da taxa de alcoolemia em questão alguma conclusão imediata quanto à causa do acidente ou, pelo menos, extrair dela alguma presunção legal no sentido de o acidente ter ocorrido porque a Ré estava sob a influência do álcool. Trata-se, como é bom de ver, de uma questão de interpretação e aplicação da norma do artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro.
A Mma Juíza equacionou bem a questão e louvou-se em Jurisprudência Comparada para a dilucidar. Pela pertinência e objectividade somos a transcrever esse segmento da sentença recorrida:
“Tem-se debatido muito sobre essa questão em Portugal tendo o respectivo Supremo Tribunal de Justiça proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em 28 de Maio de 2002, in DI I S-A, n.º 164, 18 de Julho de 2002, pg. 5395 na qual foram analisadas as principais correntes jurisprudenciais formadas em seu redor.
Os factos e direito analisados neste aresto são muito semelhantes aos que se debatem nos presentes autos. Com efeito, trata-se também de um acidente mortal em que o veículo do condutor causador do acidente, em quem foi detectado uma taxa de alcoolemia de 1,1g por litro de sangue, invadiu a semifaixa de rodagem contrária vindo a embater no veículo que estava a circular nessa semifaixa e, à data, vigorava uma norma idêntica à prevista no artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro (artigo 19º, c), do Decreto-Lei n.º 522/85).
Dada a similitude acima referida e a profundidade com que se debruçou sobre a questão sub judice, julga-se de analisar detalhadamente esse aresto e daí nos dilucidarmos sobre o problema que nos ocupa agora.
Conforme o referido Acórdão, são basicamente três as posições tomadas: 1. o direito de regresso é um efeito automático da condução com determinada taxa de alcoolemia, pois funda-se no desvalor da acção do condutor; 2. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente cuja prova incumbe ao Autor; 3. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente presumindo-se, no entanto, tal relação a favor do Autor.
O Acórdão em apreço adoptou o 2° entendimento com argumentos que interessam, nessa sede, transcrever: "Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342º do Código Civil), como se decidiu nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 39, e de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 494, p. 325. Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitutivos do direito que ao autor cabe demonstrar."
Isso no que diz respeito às regras gerais da repartição do ónus da prova.
Já quanto à eventual inversão do ónus da prova, o mesmo aresto fez a seguinte análise: "A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apresenta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condições, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente. E, sacrificada a seguradora à função social de reparar os danos, estaria em condições bem mais fáceis para responsabilizar o condutor, tanto mais que a condução naquelas circunstâncias corresponde a um agravamento do risco no contrato. Uma seguradora não aceitaria, em geral, assumir o risco nas condições previstas na alínea c) do artigo 19.º Todavia, pressentimos a dificuldade do legislador em enveredar por tal caminho. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente." (sublinhado nosso).
Quanto à letra e ao espírito do artigo 19° do Decreto-Lei n° 522/85, o Acórdão em análise pronunciou-se neste sentido: "Em todo o caso seria sempre o legislador a tomar a opção que entendesse mais adequada. Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19. o do Decreto-Lei n.º 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob influência do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente (v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S), vol. V-I p. 39, e de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I p. 59). A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325) .... E seria, ao menos, arriscado cuidar em fazer a equivalência automática de que o direito de regresso existia sempre que o legislador, por razões ligadas à circulação rodoviária, viesse fazer qualquer alteração àquilo que considera influência de álcool susceptível de responsabilizar automaticamente o condutor segundo tais critérios. Estamos assim com a corrente jurisprudêncial (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool." (sublinhado nosso).
A clareza dos fundamentos acima transcritos excluem qualquer possibilidade de ligação automática entre a verificação de certa taxa de alcoolemia e a produção de determinado acidente ou pretensão de relação de causalidade natural entre estes mesmos factos. Com efeito, da letra do artigo 19°, c), do Decreto-Lei n° 522/85, vê-se que o que está em causa é o efeito que determinada taxa de alcoolemia pode ter na produção de acidentes e isto, obviamente, por intermédio do condutor que previamente ingeriu substâncias alcoólicas. Ora, a exposição feita no Acórdão é cristalina: "Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente". É precisamente por força disso que entendeu o Acórdão em análise que nada no Decreto-Lei n° 522/85 aponta para a dispensa da prova do nexo de causalidade ou a inversão do ónus da prova que, segundo o regime geral delineado no CC, cabe à seguradora.”
4. Posto isto, na douta sentença, dizendo seguir-se de perto o mesmo raciocínio para a apreciação do presente caso, acentuou-se que nada ficou provado acerca do efeito do álcool sobre a verificação do acidente. Diz-se que se provou tão só que a ingestão de álcool provocou na ré a diminuição das suas capacidades de atenção, reacção e visão. Ficou por provar que essa diminuição tornou a ré audaz e destemida; que a levou a conduzir constantemente sob a linha contínua transpondo-a e a embater no motociclo da vítima.
5. Não estamos seguros que este douto entendimento haja sido o mais certeiro.
Na nossa análise vamos recorrer a dois acórdãos mui recentes da Jurisprudência Comparada e se nos afiguram ser muito elucidativos, pois que ainda que tenham chegado a resultados diferentes, não deixam de enunciar uma regra que se mostra fulcral, qual seja a de que aquele nexo causal a que alude a norma, entre a quantidade de álcool no sangue e a produção do resultado, o acidente, se deve extrair da articulação e conjugação da globalidade dos factos, cabendo às instâncias - aqui 1ª e 2ª - concluir a partir da factualidade apurada se o acidente se produziu porque o condutor estava embriagado ou por uma qualquer outra razão.
No 1º acórdão do STJ, processo n.º 129/08.7TBPL.G1.S1, de 6/7/2011, consigna-se a norma em presença deve ser interpretada de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.
Esta relação causal, na sua vertente naturalística, constitui ainda matéria de facto, a fixar pelas instâncias.
A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz.
A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou.
No julgamento da matéria de facto, hão-de, pois, as instâncias tomar posição.
E de uma forma lapidar aí se diz:
«E nem nos parece que assim se está a remeter o direito de regresso a um regime de prova diabólica, com base na ideia de que, por via de regra, o condutor sóbrio também pode ter acidentes com o “desenho” característico do estado de embriaguês e, consequentemente o juiz nunca, ou quase nunca, terá elementos para “imputar o que aconteceu ao álcool”.
Julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados ou não provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou (Cfr-se, a este propósito, A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 435). Muito do que se dá ou pode dar como provado não foi objecto de produção de prova que imediatamente o revele. Basta pensar nos factos do foro íntimo, nos factos hipotéticos, nos factos de percepção extremamente rara e aí por diante.
Para além deste inerente ponderar, sempre mais ou menos intenso, estão ao alcance do juiz de facto as presunções naturais, que podem ser extraídas nos termos do artigo 351.º do Código Civil, desde que o respectivo conteúdo não haja sido recusado em resposta negativa a matéria perguntada na BI (...)
A este Tribunal resta, pois, a apreciação em abstracto sobre se a relação de causalidade nos casos em que for estabelecida é adequada a produzir o evento, como o produziu.
Nos casos em que não for naturalisticamente estabelecida ficam, por natureza, vazios de sentido tais poderes.
Não havendo vícios formais a apontar a esta decisão negatória, nada há a censurar.
(...)»
Acabou aquele aresto por concluir, contra a seguradora, que pelo facto de o acidente se ter dado na hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do segurado da autora, conjugado com a taxa de alcoolemia a que ela seguia, com inerente diminuição da acuidade visual e estreitamento do campo visual, sem que da Relação chegasse qualquer relação causal entre um facto e outro, tal era insuficiente para se considerar integrado o pretendido direito de regresso.
Mas a solução é que menos interessa para o nosso caso.
6. E o que menos interessa, porque cada caso é um caso.
Caso diferente e solução contrária – também não interessando aqui a solução encontrada, esta já, pró-seguradora - foi então o acidente tratado no 2º acórdão e que passamos a referir. Trata-se do acórdão do STJ, processo n.º 380/08.0YXLSB.C1.S1, de 7/6/2011.
O importante é o princípio que aí se estabelece e que na sua formulação não se afasta do enunciado no caso acima visto.
O importante é reter que se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente deve aferir-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.
Na verdade, aí, nesse acórdão, não se deixou de consignar:
«Como é sabido, “perante a orientação jurisprudencial que prevaleceu no Acórdão uniformizador 6/02, o direito de regresso atribuído à seguradora no confronto do beneficiário do seguro obrigatório de responsabilidade civil que tenha agido sob a influência do álcool – obrigando-a a garantir o efectivo pagamento das indemnizações devidas aos lesados, como reflexo da função de protecção social do seguro obrigatório, mas facultando-lhe, de seguida, a repercussão do sacrifício patrimonial que teve de suportar sobre o beneficiário do seguro a quem seja de imputar a lesão – não é um efeito automático da violação objectiva das normas penais ou contra – ordenacionais que dispõem sobre as condições psicológicas e de domínio do comportamento de veículos automóveis, (proibindo-a sempre que se ultrapasse determinado limiar de alcoolemia), nem assenta numa presunção legal de causalidade do grau de alcoolemia apurado quanto ao condutor relativamente à eclosão do acidente.”1
E, assim sendo, da doutrina que acabou por ter sido adoptada nesse acórdão, pode dizer-se que hoje é dado como assente (no âmbito daquele DL 522/85) que, para o alegado direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido, tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, ainda de alegar e provar factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o evento dele resultante.2
Isto é, recai efectivamente sobre a seguradora o ónus da prova quanto aos factos constitutivos do direito de regresso que exercita, demonstrando que o grau de alcoolemia do condutor funcionou como causa real, efectiva e adequada ao desencadear do acidente.
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente afere-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.
Ora é do conhecimento comum que o álcool influencia os comportamentos, actuando sobre o cérebro, mesmo que os seus efeitos não sejam visíveis; todavia, quando a concentração do álcool no sangue atinge os 0,5 g/l já são perceptíveis.
Não obstante, os dados científicos irrefutáveis quanto à interferência do álcool nas capacidades e reflexos necessários à condução do automóvel, o Tribunal dispôs de meios de prova concretos que lhe permitiram dar por assente que o réu, em virtude do álcool, tinha a respectiva capacidade de condução comprometida, sendo determinante a interferência do álcool na condução ilícita do réu e, em consequência, no acidente dos autos.
Mas se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. 3 Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
Como se considera no citado acórdão.4, “é inteiramente lícito às instâncias servirem-se nesta sede de presunções judiciais ou naturais, nelas fundando as suas conclusões acerca das circunstâncias que conduziram ao acidente em regras ou máximas de experiência, por essa via completando, articulando e interligando o que directamente decorre da livre valoração das provas «atomisticamente» produzidas em audiência”. O único limite que naturalmente vigora nesta matéria e que nada tem a ver com a situação processual ora em análise é “que decorre de a Relação não poder ultrapassar a falta de prova do nexo de causalidade, recorrendo a presunções judiciais, tornando assim contraditório o julgamento da matéria de facto, que não alterou”.5
Na verdade, o que o referido acórdão uniformizador impõe é a realização de uma avaliação concreta, casuística e prudencial de todas as circunstâncias envolventes do acidente, de modo a determinar e em que medida é que o concreto estado de alcoolemia apurado quanto ao condutor pode ter sido determinante das infracções estradais e erros ou falhas na condução cometidos e que decisivamente desencadearam ou contribuíram para o acidente.
Ora foi manifestamente isto que as instâncias realizaram no caso em apreço, tendo tomado em conta todo o circunstancialismo concreto envolvente do embate verificado, ponderando adequadamente a influência que o relevante grau de alcoolemia demonstrado envolvia na capacidade de controle e domínio da viatura, concluindo, em termos que consideramos perfeitamente razoáveis e adequados, não apenas que tal grau de alcoolemia, em abstracto, era adequado para ditar um afrouxamento das suas capacidades, provocando-lhe desatenção e falta de reacção na condução mas também que, em concreto, tal grau de alcoolemia influenciou o comportamento do condutor do automóvel com a matrícula 00-00-00, reduzindo-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias e lhe causou lentidão na capacidade de reacção e perturbação dos reflexos, sendo por causa do estado de alcoolemia em que se encontrava que perdeu o controle da trajectória do referido veículo, quando o pôs em andamento, guinando para a berma do lado direito da faixa de rodagem e de seguida invadindo a faixa onde seguia o veículo «SUZUKY», nela se atravessando, impedindo assim qualquer manobra que evitasse o embate.
Tal matéria de facto apurada significa que, no litígio subjacente aos presentes autos, foi plenamente demonstrada uma específica e concreta ligação causal entre o estado de alcoolemia do condutor e as deficiências e erros de condução que despoletaram o acidente, ou seja, a taxa de álcool no sangue influenciou, efectiva e decisivamente, o tipo de condução praticado, funcionando, deste modo, como causa efectiva e naturalística do acidente em discussão.
Deste modo, perante a matéria de facto apurada pelas instâncias quanto ao nexo de causalidade «naturalístico» entre o estado de alcoolemia do condutor do veículo UT e as falhas de condução por ele cometidas e que despoletaram o acidente, está cumprido o ónus da prova que incidia sobre a seguradora, relativamente aos pressupostos condicionadores do exercício do direito de regresso, com base na citada norma legal, improcedendo, nesta sede, a argumentação deduzida pelo recorrente.»
7. Posto isto estamos em condições de julgar sobre o referido nexo causal, ponderando todo o processo dinâmico causal produtor do evento fatídico.
Atente-se que em termos da base instrutória se perguntava se:
- a ingestão de álcool provocou na ré a diminuição das suas capacidades de atenção, reacção e visão?
- tornando-a audaz e destemida?
- levando-a a conduzir constantemente sobre a linha contínua e a transpô-la?
- e a embater violentamente no motociclo do ofendido?
Tendo-se provado tão somente o quesito 1º, a partir daí a Mma Juíza elaborou o raciocínio de que não se provou o tal nexo causal.
Mas como vimos, esse juízo há-de ser extraído da globalidade de todos os factos e das regras da experiência comum e da causalidade natural.
Desde logo se assinala que os quesitos 2º, 3º e 4º, não provados, não se assumem como relevantes.
Quanto ao 2º, não é por se ser audaz e destemido que se tem de sair da faixa de rodagem e ultrapassar os limites de velocidade e, cruzar a linha contínua, e invadir a faixa contrária e embater contra um veículo que vem em sentido contrário.
Depois, os últimos quesitos, 3º e 4º, não deixam de ser em certa medida conclusivos. E não é por terem essa conotação que deixam de ser factos. Digamos que numa certa perspectiva todos os factos se inserem num processo causal que os desencadeia. A simples morte ocorre porque algo lhe dá causa. Os factos inserem-se em processos dinâmicos causais e consequenciais de outros factos.
Foram dados como não provados. Mas, perguntamos: se não foram os factos dados como provados, o que é que provocou o acidente? As regras da experiência dizem-nos que muito naturalmente foi aquele excesso de álcool, em função daquele grau concretamente apurado, que terá levado uma jovem senhora de 32 anos a cometer tal deslize. Em termos normais e mais nada se provando, mais nada vindo denunciado, a experiência diz-nos que muito naturalmente, com um forte grau de probabilidade aquele álcool, às 11 horas da noite, tendo provocado diminuição das capacidades de atenção, reacção e visão foram causais do acidente. Em termos normais e de experiência vivida só uma desatenção, perda de reacção e visão, manifestamente comprovadas, em função da ingestão do álcool, provocaria o acidente. Todos sabemos, quando se bebe um pouco mais e se fica com um grão na asa, que as nossas reacções e atenção não são as mesmas.
No quadro desenhado não se vê outra explicação para o acidente e todos sabemos também que os factos se evidenciam também pelas aparências, pelas presunções e pelas causas naturais. E por mais voltas que se dêem não se encontra outra explicação para o acidente.
No fundo, foi isso mesmo que foi proclamado como a boa doutrina nos arestos acima analisados.
Donde sermos levados a não compreender a resposta negativa dada aos quesitos 3º e 4º. Poderia este Tribunal, cabendo-lhe a reapreciação da matéria de facto ter como comprovado o tal nexo causal no caso sub judice. Só que aí nos debatemos com uma dificuldade, qual seja, a da resposta peremptória a essa factualidade causal do acidente, sendo de presumir que o Tribunal a quo terá visto algo que nós não estamos a ver, terá explicado o acidente de uma forma que exclui a justificação para onde tudo aponta. E se assim é, o que se configura é uma incompleição e contradição na fixação da matéria de facto, o que implica o necessário deslindamento em termos de julgamento de facto, o que passa pela anulação da decisão face ao disposto no artigo 629º, n.º 4 do CPC.
Isto é, quando a globalidade dos factos, tudo conjugado, aponta para que o acidente resultou da diminuição da faculdades e sentidos da ré condutora do automóvel por causa do álcool, das duas uma: ou a causalidade reclamada e quesitada tem de se ter como comprovada, vista a globalidade dos factos e o concreto circunstancialismo apurado ou então torna-se necessário explicar das razões por que se afasta essa causalidade.
Assim sendo, determinar-se-á a anulação do julgamento de forma a sanarem-se os apontados vícios.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, anulando a decisão recorrida, determina-se a sanação dos apontados vícios no julgamento da matéria de facto.
Custas pela recorrida.
Macau, 23 de Fevereiro de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Ac. do STJ, de 7/04/2011, Revista 329/06-7ª Secção, www.dgsi.pt.
2 - Ac. STJ de 6/05/2010, processo 2148/05.6, in www.dgsi.pt/jstj.
3 - Ac. da RL de 25/02/2010, in www.dgsi.pt.
4 - Ac. do STJ, de 7/04/2011, Revista 329/06-7ª Secção, www.dgsi.pt.
5 - Ac. do STJ, de 7/07/2010, Processo 2273/03.8TBFLG.G1.S1.
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372/2011 34/34