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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 12 / 2006

Recorrente: A
Recorridos: B






1. Relatório
   B instaurou a acção declarativa com processo ordinário perante o Tribunal Judicial de Base, pedindo que a ré A seja condenada a substituir o veículo automóvel que comprou à ré por outro novo da mesma marca e modelo e ao pagamento das despesas, nomeadamente os honorários de advogado.
   Na contestação, para além de pedir a improcedência da acção, a ré apresentou ainda a reconvenção no sentido de condenar a autora no pagamento à ré das quantias relacionadas com o estacionamento, guarda e manutenção do veículo em causa.
   Na réplica a autora ampliou o pedido para declarar a nulidade das cláusulas previstas nos parágrafos 4º e 5º das “Condições de garantia”.
   Após o julgamento, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedentes os dois pedidos da autora, mas declarou nulas as cláusulas previstas nos parágrafos 4º e 5º das referidas “Condições de garantia” (X [uma marca automóvel] Passenger Car Extended Warranty – Territory of Macau), e decidiu ainda procedente o pedido reconvencional da ré.
   Contra a parte da sentença em que a autora decaiu, esta recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 17 de Novembro de 2005 proferido no processo n.º 245/2005, o Tribunal de Segunda Instância julgou parcialmente procedente o recurso, condenando a recorrida, ora ré, a proceder à substituição para a recorrente um veículo novo de igual modelo no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão. Neste foi mantida ainda a decisão de primeira instância de julgar improcedente o pedido da recorrente, ora autora, de condenar a ré a pagar as despesas, bem como revogou a sentença da primeira instância que julgou procedente o pedido reconvencional da ré.
   Inconformada com o acórdão, vem agora a ré recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. A alínea F) dos factos provados contem manifesto erro de julgamento porquanto a garantia apreciada nos autos foi prestada por uma entidade associada mas juridicamente distinta da ré, a sociedade C, como resulta da identificação das partes (no cabeçalho da garantia) e de todos os documentos juntos aos autos por ambas as partes relativos à manutenção do veículo.
   2. Estamos perante entidades juridicamente distintas: a ré, A (que vendeu o carro), e um terceiro, a C (que providencia a manutenção do mesmo), não se podendo condenar a ré por obrigações que não são suas, como também não se pode condenar terceiro – C – que não foi chamado aos autos para se defender.
   3. O art.º 549.º n.º 4 do CPCM determina que ‘4. Têm-se por não escritas as respostas do Tribunal Colectivo sobre questões de direito e as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, confissão ou falta de impugnação’.
   4. A matéria objecto do quesito 22º não é uma questão de direito, mas sim uma questão de facto, não se reportando a facto que só possa ser provado por documentos ou que estivesse plenamente provados por documentos, confissão ou falta de impugnação – o art.º 549.º, n.º 4 do CPCM não pode servir de fundamento legal para dar por não escrita a resposta do TJB (ao quesito 22º).
   5. Se o art.º 549.º, n.º 4 do CPCM sustentasse a posição do Tribunal a quo, quando foi proferido o despacho saneador teriam estado reunidos todos os elementos de prova que permitiam a decisão do mérito da causa, o que não se verificou.
   6. O TSI não especifica ‘a restante matéria de facto’ em contradição com o quesito 22º; o único facto que enumera é o facto ‘especificado na alínea A)’ (a reler, ‘A autora é uma sociedade comercial com sede em Macau, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.° XXX’), facto abstracto e sem qualquer contradição com o constante do quesito 22º.
   7. Resulta das alíneas N, P, Q e V da Especificação e do quesito 1 que o veículo terá rodado apenas cerca de 867 km num período total de 31 meses, dos quais 300 km no período inicial de 5 meses após a sua entrega à autora, mas não foi provado qualquer média efectiva de quilometragem ou que o veículo foi utilizado normalmente.
   8. No despacho de indeferimento das reclamações das respostas aos quesitos (fls. 403 a 405), o Colectivo do TJB pronunciou-se pela não contradição entre ‘a restante matéria de facto’ e o quesito 22º que nos diz que a avaria do veículo ocorre ‘Em virtude da não utilização do veículo por parte da autora’, porquanto ‘haveria bastante tempo em que esse mesmo veículo tinha estado parado’ (fls. 404v).
   9. Também no saneador, o juiz titular decidira que quem ‘fizer uma leitura atenta dos factos que constam dos quesitos 21º, 22º, 24º e 25º vai certamente aperceber-se de que, naquele pressuposto (a sua prova) não ocorre qualquer deficiência’, ao indeferir a reclamação da ré para quesitação doutros factos, com o fundamento de que se tratava de dupla quesitação e de que os quesitos deveriam ser formulados de acordo com o ónus de prova (cfr. fls. 301 dos autos) – ré provou os referidos quesitos 21º, 22º, 24º e 25º.
   10. O facto agora dado como não escrito foi declarado ab initio pela própria autora, na missiva dirigida à ré de 24 de Novembro de 2001, na qual afirmava não só que não circulava, como se recusava a circular com o veículo.
   11. Foi a autora que sempre se recusou a utilizar o veículo em condições normais de utilização e sempre pretendeu exigir tão só e sempre a sua substituição, sendo que a não utilização apropriada do veículo determinou a avaria em causa (matéria provada).
   12. Os veículos automóveis carecem de um mínimo de uso regular, sendo do conhecimento geral que qualquer tipo de máquina deve funcionar com alguma regularidade, sob pena de surgirem problemas associados ao não uso por longos períodos.
   13. Às recomendações da ré (cartas de 03.12.2001 e 20.02.2002), para que fosse feito um uso minimamente normal do veículo, respondeu a autora com uma recusa obstinada em não usar o mesmo, continuando a insistir pela substituição.
   14. O Tribunal a quo fundamenta a decisão recorrida numa interpretação inaceitável do conceito de regras de normalidade e experiência: o conceito das ‘regras de normalidade e experiência’ aplicado a um X, sem preencher ou elaborar sobre o conteúdo deste conceito.
   15. O Tribunal a quo sobrepôs este critério da normalidade e da experiência a todas as diligências probatórias realizadas pelo Tribunal de Primeira Instância visando o mesmo objectivo: descobrir a natureza e a causa da inclinação de que se queixara a autora.
   16. A questão essencial dos autos não pode ser decidida por ilação ou presunção judicial, pois tal constitui clara deturpação abusiva da noção e âmbito de ilação judicial, de acordo com a qual ‘2. As presunções judiciais são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos.’
   17. Através da inspecção pericial ordenada pelo TJB, que substituiu a inspecção judicial requerida pela autora, os técnicos de mecânica automóvel afectados à inspecção de veículos do IACM, verificaram a ausência de defeito e confirmaram que a causa da avaria resultava ‘em virtude da não utilização do veículo por parte da autora’.
   18. Determinar se um veículo padece ou não de defeito não pode acertadamente deduzir-se ou inferir-se por ilações de normalidade e experiência comum.
   19. Determinar se um veículo tem defeito ou não tem defeito é matéria de facto, não sendo coerente que o julgador, sem competências técnicas no foro em questão, repudie a apreciação dos factos feita por peritos com os necessários conhecimentos técnico-científicos, mas antes que o julgador considere prevalentemente a opinião dos peritos.
   20. O Tribunal a quo incorreu também em erro de julgamento ao valorar a prova documental junta aos autos, mormente as cartas de ré juntas a fls. 66 e 70, das quais não consta qualquer reconhecimento ou confissão de existência de um defeito no carro, mas sim que a reparação do sistema hidráulico de suspensão revestia alguma complexidade e que o veículo foi bem reparado e não apresentava qualquer avaria.
   21. Os poderes do TSI na reapreciação de matéria de facto estão delimitados pelo art.º 629.º do CPC.
   22. O Tribunal a quo só pode reapreciar a matéria de facto ‘se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (...)’, o que não se verifica, nomeadamente quanto à inquirição dos peritos, porque muito pura e simplesmente esses depoimentos técnicos e periciais não foram transcritos.
   23. O Tribunal, em primeira instância, fundamentou as respectivas conclusões em matéria de facto no depoimento de testemunhas e peritos, pelo que só o colectivo do TJB esteve legalmente habilitado a pronunciar-se sobre a existência ou não de uma avaria e se esta constituía um defeito do veículo.
   24. A prova produzida determinou a expurgação que o TJB realizou quando deu por provados apenas parcialmente os quesitos 1º e 2º, dos quais foi expurgada a palavra ‘anomalia’ e quesito 14º, do qual foi expurgada a palavra ‘mantinha-se’ como sendo expressões de que erradamente se poderia concluir por uma ‘anomalia funcional’ ou ‘defeito’ do veículo, que o Tribunal Colectivo decididamente rejeitou, com base na análise crítica e comparativa da globalidade da prova produzida.
   25. O Tribunal a quo violou claramente os seus poderes processuais quando, após ter decidido pelo erro de julgamento no quesito 22º, concluiu, ao abrigo das ‘regras da normalidade e experiência’ que o veículo padecia de uma avaria ‘funcional’ que não podia ser provocada por ‘inutilização temporária’ ou ‘pouca utilização’ e constituía um defeito do veículo.
   26. O Tribunal a quo reinterpretou o teor, âmbito e propósito de garantia que constitui parte do documento número quatro (4) junto com a petição inicial com base apenas no primeiro parágrafo e não considerando o texto da garantia na totalidade.
   27. A interpretação não é um exercício livre e discricionário, que possa ser feito de modo tão sintético e superficial, antes está sujeita a normas bem definidas, que constam do Código Civil e balizam toda e qualquer actividade interpretativa realizada pelos operadores de direito.
   28. O art.º 230.º do Código Civil, sob a epígrafe ‘Negócios Formais’, determina que ‘Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso’.
   29. Na interpretação de declarações negociais escritas, o elemento de referência é o texto da declaração negocial e nada no teor da garantia suporta a interpretação feita no acórdão recorrido, a conclusão de que se trata da pretensa ‘garantia de bom funcionamento’.
   30. O título da garantia deve ler-se como ‘Garantia Prolongada de Veículo de Passageiros X’, sendo ‘Extended’ a referência ao elemento temporal da garantia de longa duração (‘Extended Warranty’) e não uma referência a extensão doutra garantia preexistente.
   31. O primeiro parágrafo não revela qualquer intenção das partes de garantir o bom funcionamento do veículo, pois nas palavras citadas nem sequer que se atesta a qualidade dos materiais e da mão-de-obra dos seus produtos, mas apenas que ‘X tomou todas as precauções usuais e razoáveis para a qualidade dos materiais e mão de obra dos seus produtos.’
   32. O primeiro parágrafo da garantia refere ‘todas as precauções usuais e razoáveis’ (o controlo de qualidade) quanto às peças a substituir e aos serviços a prestar no âmbito da garantia porque pretende prevenir, delimitando que só foram tomadas as ‘precauções usuais e razoáveis’ e não extraordinárias ou irrazoáveis.
   33. O Tribunal a quo não considerou o elemento sistemático na sua interpretação, nomeadamente não fez a interpretação da garantia em conjunto com os outros documentos de que faz parte, em particular o contrato de compra e venda do qual consta a referência à garantia do fabricante e com a duração de um ano, sendo esta a garantia prestada pela ré em nome do fabricante quanto ao bom funcionamento do veículo e que expirou pelo decurso do referido prazo de um ano.
   34. As partes de cada contrato – o de compra e venda e o de garantia – não são as mesmas, pelo contrário são partes distintas com relações contratuais distintas, pelo que não é admissível interpretar a declaração contratual de uma das partes (da garante) num contrato como a extensão ou a ampliação das obrigações legais ou contratuais de outra parte (o vendedor) noutro contrato.
   35. A garantia contém uma limitação expressa do respectivo âmbito às actividades de reparação, manutenção e substituição de peças nos seus quarto e quinto parágrafos.
   36. Do texto da garantia não consta qualquer referência, implícita ou explícita, quer às obrigações legais do vendedor quanto ao bom funcionamento do veículo, quer ao contrato de compra e venda por este celebrado.
   37. O preço da garantia não foi devidamente ponderado pelo TSI, porquanto o mesmo está em correlação com o tipo de veículo e o facto de o dono de veículo nada ter de pagar pela substituição de uma série de items de substituição regular (por ex. discos de travões, filtros de óleo e ar, etc).
   38. A garantia expressamente exclui diversas partes e componentes do veículo do seu âmbito, pelo que se a totalidade do veículo não está coberta pela garantia, não se pode validamente interpretar e determinar que a garantia cobre a substituição do mesmo.
   39. Admitindo por mera hipótese de raciocínio que a garantia era válida e tinha o âmbito que o acórdão recorrido lhe atribuiu, haveria que concluir que o Tribunal a quo aplicou erradamente o regime legal invocado, nomeadamente o art.º 914.º, n.º 1 do Código Civil.
   40. O direito de reparação é primordial e só se não for cabal e pontualmente satisfeito é que o beneficiário da garantia pode exercer o direito à substituição do veículo, só nascendo para o comprador o direito à substituição do veículo quando o vendedor incumprir (definitivamente) a obrigação de reparar o veículo.
   41. A denúncia a 26 de Setembro de 2003 não foi formulada nos termos legais, em termos de pela mesma se poder determinar o incumprimento da ré relativamente à obrigação de reparar.
   42. A carta junta como doc. 23 da petição inicial, subscrita pelos advogados de autora a 26 de Setembro e dirigida à ré, não determina qualquer data a partir do qual a autora iria considerar a reparação como não feita.
   43. Não tendo sido fixado um prazo limite para a vendedora realizar a reparação, não pode concluir-se pela conversão da mora em incumprimento definitivo.
   44. A precisão da lei, quanto à interpelação admonitória, também não carece de qualquer interpretação jurídica, sendo absolutamente inequívoco o art.º 797.º, n.º 1 do Código Civil ao dizer que ‘1. Considera-se para os efeitos constantes do art.º 790.º como não cumprida a obrigação se, em consequência da mora:
   b) A prestação não for realizada dentro do prazo que, por interpelação, for razoavelmente fixado pelo credor.’
   45. A denúncia da autora de 26 de Setembro de 2003 não cumpre com o imperativo do art.º 797.º, n.º 1 do Código Civil, pelo que não se verificou o incumprimento definitivo da obrigação de reparação do vendedor (a ré).
   46. Verificou-se erro de julgamento de direito na interpretação do art.º 914.º do Código Civil, o qual suporta a conclusão de que não se verificou incumprimento da ré ao dispor que: ‘1. (...) cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária (...)’, pois deriva claramente deste dispositivo que a autora só seria investida no direito à substituição do veículo após a sucessão dos seguintes factos: solicitação da reparação, não reparação, fixação de um prazo razoável para a reparação.
   47. Sobre a autora impendia o ónus que a autora não logrou preencher de provar o elemento constitutivo do seu direito, a existência do defeito, tendo sido a própria autora a aceitar a resposta a outros quesitos que provam que o veículo está isento de qualquer defeito.
   48. A obrigação de guarda e conservação do veículo pela recorrente cessou quando a autora foi informada de que a reparação deste havia sido concluída.
   49. Estando em mora com a sua obrigação de levantamento do veículo dado ter sido informada de que a reparação deste havia sido concluída, a autora toma-se responsável pelos custos resultantes da respectiva mora em levantar o veículo.”
   E apresentou os seguintes pedidos:
   – Declarar o erro de julgamento na al. F) dos factos provados e admitir os três documentos ora juntos;
   – Revogar a decisão que decretou existir erro de julgamento na resposta ao quesito 22º, mantendo a decisão proferida em primeira instância;
   – Revogar a decisão do Tribunal de Segunda Instância que decidiu absolver a autora do pedido reconvencional, mantendo a condenação proferida em primeira instância;
   – Caso assim não se entenda, revogar as decisões de qualificar a garantia como garantia do próprio veículo e que condenou a recorrente no cumprimento de uma obrigação que foi assumida por uma outra entidade.
   
   Em resposta, a recorrida apresentou as seguintes conclusões:
   “1. O douto acórdão recorrido é uma decisão acertada, bem fundamentada e que fez exemplar e inatacável aplicação do Direito à sua situação concreta, pelo que o recurso sub judice está condenado ao insucesso;
   2. A questão prévia mediante a qual a recorrente veio, surpreendentemente, dizer que nunca prestou a garantia apreciada nos autos, que antes foi prestada por uma distinta entidade mais parece ser uma excepção da ilegitimidade tardiamente invocada, que como é bom de ver não pode nesta sede ser apreciada; Mais,
   3. Para fazer suposta prova desta sua nova alegação a recorrente junta agora dois documentos aos autos, o que é de todo em todo inadmissível, atento o disposto no art.º 648.º do CPC que determina que apenas os documentos supervenientes podem ser juntos ao presente recurso;
   4. E os factos referentes ao registo comercial de sociedades que existem desde muito antes do início da presente lide certamente que não se inserem na categoria de documentos supervenientes;
   5. O artigo que a recorrente invoca para justificar a almejada junção, 616.º do CPC, aplica-se à junção de documentos no recurso para o Venerando Tribunal de Segunda Instância e não para o presente recurso;
   6. Como tal os documentos – de resto, absolutamente impertinentes e irrelevantes – extemporaneamente juntos pela recorrente com as alegações de recurso devem ser desatendidos;
   7. Acresce que ao contrário do que parece entender a recorrente, a natureza do recurso para o Tribunal de Última Instância não permite já abarcar questões de facto, mas que apenas se limita às questões de direito – Cfr. art.º 639.º do CPC;
   8. Como tal, a bizarra pretensão da recorrente de querer ver ‘rectificada’ uma alínea dos factos assentes sempre terá de falecer, por inadmissibilidade legal, não sendo possível que o Tribunal de recurso corrija, modifique, altere ou sequer aprecie as decisões do Tribunal Colectivo dadas em sede de julgamento de facto em 1.ª Instância;
   9. De resto, a alínea F) dos factos assentes contra a qual agora se insurge a recorrente está fixada nos autos desde a prolação do despacho que procedeu à selecção da matéria de facto relevante para a discussão da causa – vide fls. 217 dos autos;
   10. Isto porque a ora recorrida alegou em sede de petição inicial que assinou com a agora recorrente a dita garantia, e esta, na sua contestação, jamais negou ter assinado este documento, antes sempre admitiu e confessou que celebrou esse contrato, embora lhe desse uma interpretação divergente;
   11. Ao longo de todo o processo – contestação, réplica, audiência de discussão e julgamento, e até nas alegações a que se responde! – sempre a recorrente admitiu e foi concedendo que celebrou com a autora um contrato de garantia, mas subitamente, de uma forma absolutamente inaceitável, porque violadora dos mais básicos ditames da boa fé processual, a recorrente vem abjurar aquilo sempre disse e assumiu no processo;
   12. Não pode haver exemplo mais claro – e lamentável – de litigância que excede em muito os limites de uma lide temerária e entra profusamente no campo da litigância de má-fé, na sua vertente de venire contra factum proprium, pelo que se requer uma condenação exemplar da recorrente em multa, por tão censurável comportamento, ao abrigo do disposto no art.º 385.º do CPC;
   13. De resto é absolutamente incontroverso e assente nos autos que a recorrente assinou e tem de ser responsabilizada pelas obrigações contratuais que assumiu nos termos do contrato referido na alínea F) dos factos provados;
   14. A recorrente não soube fazer, ou não quis fazer, a boa interpretação do preceito legal referido no douto acórdão recorrido para considerar a resposta ao quesito 22º como não escrita: é que o n.º 4 do art.º 549.º do CPC prevê que as respostas do Tribunal Colectivo dadas sobre factos que estejam plenamente provados nos autos podem ser tidas como não escritas;
   15. E no caso vertente, era manifesta a contradição entre os factos dessa errónea resposta do Tribunal Colectivo e diversos outros factos plenamente provados e assentes nos autos desde o despacho que seleccionou a matéria de facto relevante para a discussão da causa como matéria de facto assente;
   16. Desde esse despacho que seleccionou a matéria de facto relevante para a discussão da causa que está provado seja documentalmente, por confissão ou por falta de impugnação que a recorrida circulou com o veículo;
   17. Há pois abundantes e concludentes factos provados que directamente conflituam com a resposta do Tribunal Colectivo dada no facto elencado sob o n.º 22;
   18. Finalmente, diga-se que a resposta que fora dada ao referido quesito 22º pelo Tribunal Colectivo, que fazia inculcar a culpa dos defeitos no veículo numa culpa da autora – em virtude da não utilização por parte da autora, dizia-se – pretendia resolver uma questão de direito – a questão da culpa na origem do defeito – pelo que, ao abrigo do comando inserido no n.º 4 do art.º 549.º do CPC sempre a resposta teria de ser considerada não escrita, pois está vedado ao Tribunal de Colectivo responder a questões de direito;
   19. Mais, a resposta dada a esse quesito que o Venerando Tribunal de Segunda Instância considerou não escrita resolvia em absoluto a sorte da lide num quesito, pois tal resposta era quase fatalmente conclusiva no sentido de atribuir a culpa pelos defeitos do veiculo à ora recorrida, ainda por mais contra a restante prova constante e apurada nos autos;
   20. Bem andou pois o Tribunal de recurso ao vislumbrar essa contradição e ao decidir-se, no uso dos poderes que efectivamente tem ao seu dispor, por considerar não escrita a resposta dada a esse facto inserido na resposta ao quesito 22º;
   21. A má fé processual da recorrente volta a atingir níveis intoleráveis no capítulo D) da sua alegação, ardilosamente intitulado da prova pericial: acontece que no presente processo não foi produzida prova pericial e a prova a que a recorrente se refere é prova por inspecção, na qual o Tribunal a quo se fez auxiliar por dois técnicos que nomeou – vide despachos de fls. 368 e 378;
   22. Ao querer fazer crer, maliciosamente, que se produziu no processo prova pericial a recorrente altera conscientemente a verdade dos factos, com o fito de induzir em erro, o que é reprovável e também deve ser levado em linha de conta para efeitos da condenação desta como litigante de má fé;
   23. Não poderia jamais existir nos autos prova pericial porquanto nenhuma das partes requereu qualquer perícia nem esta foi oficiosamente ordenada pelo Tribunal, e pelo contrário a ora recorrida requereu a prova por inspecção, que veio a ser admitida por despacho de fls. e que se realizou efectivamente;
   24. Na sequência dessa inspecção os técnicos nomeados pelo Tribunal fizeram em audiência de discussão e julgamento um relatório oral da sua observação, que, aliás, em nada vai de encontro ao que diz agora a recorrente;
   25. De resto o Venerando Tribunal de Última Instância de Macau não pode sequer certificar-se do resultado dessa inspecção, quer porque lhe está vedado legalmente o conhecimento desse tipo de questões, dadas as limitações legais que estão impostas e as especificidades legais que este tipo de recurso tem, quer porque o relatório da inspecção foi prestado em audiência de discussão e julgamento de forma oral, em audiência que não foi gravada;
   26. Pelo que a recorrente não recorreu, nem poderia fazê-lo, com base nesse tipo de elementos de prova – relatórios orais – em relação aos quais não há qualquer registo no processo;
   27. A recorrente falta à verdade quando sustenta, no ponto 44 das suas alegações, que ‘o veículo foi efectivamente reparado e não apresentara qualquer avaria. O mesmo consta dos factos provados – quesitos 6° e 24°’;
   28. Se a alínea 6.ª dos factos provados refere que o veículo foi sujeito a reparação e substituição de peças pela recorrente – e nunca se diz que ‘não apresentara qualquer avaria’! – basta ler a alínea seguinte, 7.°, onde se especificou que ‘Em 27 de Julho de 2003 a autora verificou o aparecimento de nova inclinação’ ... E a alínea 24.ª reporta-se a 17 de Junho de 2003; ora está provado precisamente pelo que se especificou na já referida alínea 7.ª que logo em 27 de Julho de 2003 o veículo voltou a adornar e a descair;
   29. Vigora no direito de Macau a regra, que a recorrente aparentemente desconhece, da substituição ao tribunal recorrido, expressamente prevista no art.º 630.º do CPC, e foi no uso da faculdade – do dever – de julgar a questão que lhe é submetida que o Venerando Tribunal de Segunda Instância deu uma solução diferente para o caso sub judice;
   30. No caso vertente fê-lo depois de considerar não escrita uma resposta que o Tribunal Colectivo houvera dado a um quesito e assim considerou – e bem – que face aos factos apurados pela primeira instância o veículo sub judice apresenta um defeito funcional;
   31. Da interpretação do contrato de garantia em causa não pode deixar de concluir-se que se trata de um contrato de garantia de bom funcionamento, e não será certamente pelo recurso às cláusulas nulas do mesmo contrato a que se refere a recorrente que se pode inferir o contrário;
   32. No caso sub judice as partes não se limitaram a celebrar um simples contrato de compra e venda de um veículo automóvel, pois conforme resulta do documento intitulado «X Passenger Car Extended Warranty – Territory of Macau», que ambas as partes assinaram, através dos seus representantes (cfr. alínea F) da matéria de facto assente), a recorrente prestou ainda à recorrida a garantia de bom funcionamento do veículo vendido;
   33. Esse documento comporta o compromisso de «a assistência e reparação de peças avariadas do veículo (...), bem como a reparação ou substituição por peças originais e em oficina especializada da marca» ou, a «garantia das peças do veículo (sujeita a determinadas condições de uso (...) e da sua manutenção (revisões) e reparação pelo vendedor a um custo fixo (pelo preço de HKD$93,650.00) durante 36 meses após a sua entrega.’», pelo que têm um só objectivo: garantir o bom funcionamento do veículo;
   34. Tal resulta do n.º 1 do art.º 914.º do Código Civil, o qual dispõe que: «Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.»;
   35. In casu todo o vasto conjunto de factos provados demonstraram que sempre houve um deficiente funcionamento do veículo em questão, não obstante a recorrente ter, por convenção, garantido o seu bom funcionamento técnico e a sua qualidade;
   36. Daqui resulta que não há outra solução viável que não a substituição do veículo, por esta se ter tornado absolutamente necessária, sendo a mesma possível, atento o disposto no art.º 197.º do Código Civil, uma vez que a marca continua a fabricar o mesmo modelo, com as especificações técnicas que correspondem às do veículo adquirido pela autora, como ficou provado nos autos;
   37. A recorrente quando se negou a substituir o veiculo entrou pois em claro incumprimento contratual – quer por se recusar a receber o referido automóvel, quer por se ter recusado a substitui-lo, após tal se ter revelado necessário –, quando bem sabe que não é curial exigir que a recorrida permanentemente se desloque às suas oficinas para reparar um veículo que, pura e simplesmente, não pode ser reparado;
   38. Na sentença proferida em 1.ª Instância plasmou-se que ‘os parágrafos 4.° e 5.° desse contrato violam, efectivamente, o disposto nos art.ºs 12.°, n.º 1 e 2 e al. a) e 13.°, n.º 1, al. c) da Lei n.º 7/92/M’, pelo que de nada vale à recorrente chamar em seu auxilio o teor das mesmas;
   39. Na dita sentença decidiu-se mesmo ‘declarar nulas as cláusulas previstas nos parágrafos quarto e quinto das ‘Condições de Garantia (X Passenger Car Extended Warranty – Territory of Macau)’;
   40. Ora, esta parte da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base não foi impugnada pela ora recorrente, e assim há muito que transitou e fez caso julgado, pelo que todo e qualquer aproveitamento que a recorrente queira retirar das referidas cláusulas nulas não pode, obviamente, ser atendido;
   41. Se o contrário fosse possível, estaríamos por um lado a violar o caso julgado e por outro a postergar o princípio essencial do regime legal da garantia estabelecido no art.º 914.° do Código Civil, que visa assegurar a reparação de um veículo mas também o seu bom funcionamento;
   42. Já que uma das notas peculiares daquele regime é precisamente, como ensina J. Calvão da Silva, «o direito de o comprador exigir a reparação da coisa (...)» (in Compra e venda de coisas defeituosas – conformidade e segurança, Almedina, p. 62);
   43. Com o que se tem de concluir, como já bem descortinaram o Tribunal Judicial de Base e o Venerando Tribunal de Segunda Instância, pela existência in casu da prestação (válida) de uma garantia de bom funcionamento da recorrente em benefício da recorrida.”
   Entendendo que o recurso não pode proceder e o acórdão recorrido deve ser mantido com a condenação da recorrente por litigância de má fé.
   
   A recorrente contestou o pedido de a condenar como litigante de má fé, reafirmando as considerações constantes das suas alegações.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Tribunal Judicial de Base considerou provados os seguintes factos:
   “Factos assentes:
   A) A autora é uma sociedade comercial com sede em Macau, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.° XXX.
   B) A ré é uma sociedade comercial com sede em Macau, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.° XXXX, que se dedica, entre outras, à importação, exportação e comercialização de todo o tipo de veículos automóveis.
   C) Nesse âmbito, a ré é a distribuidora e representante exclusiva da marca automóvel denominada ‘X’, para a Região Administrativa Especial de Macau.
   D) A ré é também a detentora exclusiva dos serviços técnicos e de assistência autorizados pela dita marca ‘X’, para a RAEM.
   E) Em 29 de Março de 2000, a autora e a ora ré celebraram um contrato escrito através do qual esta declarou vender àquela, pelo preço de MOP$1.240.737,00, um veículo automóvel de passageiros da marca ‘X’, modelo XXXXX (XXXX).
   F) Na mesma data de 29 de Março de 2000, autora e ré apuseram, através dos seus representantes, as respectivas assinaturas no documento intitulado ‘X Passenger Car Extended Warranty -Territory of Macau’, cujo teor consta de fls. 59 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a autora pago à ré, como contrapartida, a quantia de HKD$93.650,00.
   G) Sobre o teor da ‘Extended Warranty’ referida na alínea anterior não foi dada a possibilidade à autora de discutir ou alterar o mesmo, tendo-se aquela limitado a dar a sua adesão.
   H) Tal viatura foi importada dum país no ano de 2000 e entregue à autora o mais brevemente possível após a chegada do navio transportador.
   I) Tal viatura tinha as especificações constantes do anexo ao contrato referido na alínea E).
   J) A ré entregou à autora, em 29 de Novembro de 2000, o veículo automóvel com o n.° de motor XXXXXX-XX-XXXXXX e com o número de quadro XXXXXXXXX-XX-XXXXXX, que veio a ser matriculado na Direcção de Viação sob o n.° MH-XX-XX.
   L) Em 27 de Novembro de 2000, foi atribuída, pela Divisão de Veículos dos Serviços de Viação e Transportes da Câmara Municipal de Macau Provisória, a chapa de matricula de experiência à referida viatura.
   M) Em 11 de Dezembro de 2000, foi a viatura aqui em causa matriculada na Direcção de Viação sob o n.° MH-XX-XX.
   N) Em 15 de Agosto de 2001, com 526 quilómetros percorridos, a viatura referida na alínea anterior apresentava uma inclinação na suspensão dianteira, em consequência do que veio a ser submetido a reparação efectuada nos serviços de manutenção e assistência técnica da ré.
   O) Devolvido o veículo à autora, por se encontrar, segundo declarações da ré, em boas condições de circulação e percorridos mais 58 quilómetros, veio a verificar-se que a suspensão adornara.
   P) Por via disso, em 27 de Setembro de 2001, o veículo, então com 584 quilómetros de rodagem, foi de novo inspeccionado e reparado nas oficinas da ré.
   Q) Novamente avisada a autora pela ré de que o veículo estava reparado e em bom funcionamento, veio de novo a verificar-se que a suspensão do mesmo descaiu, pelo que voltou a ser entregue nas oficinas da ré em 29 de Outubro de 2001, apresentando então 600 quilómetros de rodagem.
   R) Na sequência de tais factos, a autora enviou à ré a carta datada de 24 de Novembro de 2001 cujo teor consta de fls. 74 e aqui se dá por reproduzido, na qual exigia à ré a eliminação dos defeitos ou a substituição do veículo ou a devolução do preço pago.
   S) Em resposta, a ré enviou à autora a carta datada de 3 de Dezembro de 2001 cujo teor consta de fls. 70 e que aqui se dá por reproduzido.
   T) A autora enviou nova carta à ré datada de 6 de Dezembro de 2001 cujo teor consta de fls. 75 e 76 e que aqui se dá por reproduzido, em que exigia a substituição do veículo.
   U) Em resposta, a ré enviou à autora a carta datada de 6 de Dezembro de 2001 cujo teor consta de fls. 77 e aqui se dá por reproduzido.
   V) Em 11 de Junho de 2003, foi feita à autora a notificação judicial avulsa cujos termos constam de fls. 146 a 150 e que aqui se dá por reproduzida no seu teor.
   X) A autora procedeu ao levantamento do veículo das instalações da ré em 17 de Junho de 2003.
   Z) Com data de 26 de Setembro de 2003, a autora, através da sua ilustre advogada, enviou à ré a missiva cujo teor consta de fls. 85 e 86 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, a qual foi recebida pela ré.
   AA) O modelo XXXX da marca X, continua a ser fabricado com especificações técnicas que correspondem às do veículo adquirido pela autora.
   BB) A petição inicial da presente acção foi apresentada em 25 de Novembro de 2003.
   
   Factos Provados
   1º Depois de a autora ter percorrido 300 quilómetros com a viatura referida na alínea J) da matéria de facto assente, a mesma apresentava uma inclinação para o lado esquerdo.
   2º Assim que se apercebeu dessa inclinação, em 7 de Maio de 2001, a autora deu conhecimento dessa ocorrência à ré e entregou o veículo nas suas oficinas.
   6º Tendo, naquela altura, sido sujeito a substituição de peças elencadas a fls. 64 e 65 dos autos, efectuada nas oficinas da ré.
   7º Em 27 de Julho de 2003, a autora verificou o aparecimento de nova inclinação.
   8º Em 28 de Julho de 2003, a autora denunciou perante a ré a existência de tal inclinação.
   9º Tendo solicitado que a ré enviasse aos seus mecânicos ao lugar onde estacionara o carro.
   10º Deste modo deslocaram-se ao referido local dois mecânicos da ré que verificaram que o veículo estava inclinado.
   11º Contudo, informaram a autora que, apesar da inclinação, não tinham instruções para levar o automóvel para as oficinas da ré.
   12º Tendo os mesmos pedido à autora percorresse mais alguns quilómetros com o veículo.
   14º Em 10 de Setembro de 2003, foi detectada uma inclinação.
   15º Tendo a autora alertado novamente a ré para esse facto.
   16º A ré enviou dois mecânicos ao local onde estava o veículo, os quais recusaram-se a retomá-lo.
   17º A autora enviou à ré a carta referida na alínea Z) da matéria de facto assente.
   19º Em virtude do recurso à presente via judicial a autora pagou a título de honorários aos seus mandatários a quantia de MOP$150.000,00.
   20º E despesas referentes a traduções e gastos administrativos no montante de MOP$3.150,00.
   21º A inclinação notada no veículo deve-se ao facto da despressurização do sistema hidráulico de suspensão.
   22º Em virtude da não utilização do veículo por parte da autora.
   23º O estacionamento, guarda e manutenção do veículo entre 6 de Novembro de 2001 e 17 de Junho de 2003 importou num custo para a ré de MOP$27.408,00.
   24º Em 17 de Junho de 2003, quando foi levantar o veículo automóvel MH-XX-XX às oficinas da ré, o mesmo encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento.
   25º O que é do conhecimento da autora.”
   
   
   2.2 A alteração da matéria de facto fixada na primeira instância pelo Tribunal de Segunda Instância
   A recorrente entende que o tribunal recorrido não podia servir o art.º 549.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC) para fundamentar a decisão de dar por não escrita a reposta do colectivo de primeira instância dada ao quesito n.º 22. Por um lado, não foi especificada “a restante matéria de facto” que estava em contradição com o tal quesito, sendo certo que não era o facto especificado na al. A), indicada por manifesto lapso. Por outro, não foi preenchido nem elaborado o conceito de regras de normalidade e experiência aplicado a um X em que se fundou a decisão. Para a recorrente, o tribunal recorrido não podia sobrepor este critério a todas as diligências probatórias realizadas na primeira instância. E não se verificam os casos em que o Tribunal de Segunda Instância podem exercer os poderes na reapreciação da matéria de facto previstos no art.º 629.º do CPC. Consubstancia, assim, na violação dos poderes processuais por parte do tribunal recorrido.
   
   Os quesitos 21º e 22º estão estreitamente ligados. Antes de mais, vamos atender às respostas dadas aos dois quesitos pelo tribunal de primeira instância:
   “21º A inclinação notada no veículo deve-se ao facto da despressurização do sistema hidráulico de suspensão.”
   “22º Em virtude da não utilização do veículo por parte da autora.”
   Entende o Tribunal de Segunda Instância que a factualidade constante da resposta ao quesito 22º “para além de estar em contradição com a restante matéria de facto de onde se conclui que a autora utilizou o veículo – nomeadamente, com o especificado na alínea A) – mostra-se-nos também contrária às regras de normalidade e experiência, pois que destas se deve concluir que um veículo como o identificado nos autos, (X), não se avaria da forma como sucedeu nos autos por mera ‘inutilização temporária’ ou ‘pouca utilização’.”
   Assim, nos termos do art.º 549.º, n.º 4 do CPC, o Tribunal de Segunda Instância afirmou que existe erro de julgamento e decidiu considerar não escrita a resposta ao quesito 22º dada pelo tribunal de primeira instância.
   De acordo com o acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância decidiu eliminar a resposta ao quesito 22º com base na contradição do facto constante daquela com a restante matéria de facto provada e na desconformidade com as regras de normalidade e experiência.
   
   Em relação à afirmada contradição com a restante matéria de facto provada, o Tribunal de Última Instância pode apreciar se a conclusão de segunda instância foi feita de acordo com a lei e em termos fundamentados.
   Ora, o facto especificado na al. A) refere que a autora é uma sociedade comercial com sede e matriculada em Macau, de nenhuma relação com a questão em causa. É manifesto lapso indicar a al. A) como está em contradição com a resposta ao quesito 22º.
   Contudo, para além disso, não está especificado mais no acórdão recorrido quais factos provados em contradição com aquela resposta, e muito menos explicar em que termos. Desta forma, não podemos saber qual foi a razão em que o tribunal recorrido baseou para afirmar a existência da contradição, o que equivale à falta de fundamentação ao concluir a sua verificação.
   A inclinação do veículo dos presentes autos deve-se à despressurização do seu sistema hidráulico de suspensão. A resposta ao quesito 22º mostra-nos que a situação ocorreu por não utilização do veículo. O ponto central da questão reside na frequência de utilização do veículo pela autora.
   São os seguintes factos provados relacionados com a utilização do veículo pela autora: Em 27 de Novembro de 2000 foi atribuída a matrícula de experiência ao veículo (al. L) dos factos assentes); até ao dia 7 de Maio de 2001, antes da verificação da inclinação no veículo, a autora percorreu 300 km com o veículo (respostas aos quesitos 1º e 2º); em 15 de Agosto do mesmo ano, com 526 km de rodagem, o veículo foi submetido a reparação (al. N) dos factos assentes); em 27 de Setembro do mesmo ano, com 584 km de rodagem, foi novamente reparado (al. P) dos factos assentes); em 29 de Outubro do mesmo ano, foi de novo verificada a inclinação e submetido a reparação, apresentando então 600 km de rodagem (al. Q) dos factos assentes).
   Daí se verifica que o veículo comprado pela autora percorreu apenas 600 km nos primeiros onze meses. Percurso esse que não pode deixar de ser considerado muito reduzido, mesmo em relação a uma região de área relativamente pequena com Macau. O que significa que o veículo foi muito pouco utilizado. Este quadro de situação não está em manifesta contradição com a resposta ao quesito 22º que aponta a causa da avaria do veículo para a não utilização do mesmo pela autora.
   Assim sendo, o tribunal recorrido não pode dar por não escrita a resposta dada ao quesito 22º pelo colectivo de primeira instância por existência de contradição.
   
   Por outro lado, o tribunal recorrido considera ainda que a resposta ao quesito 22º contraria às regras de normalidade e experiência.
   Considerar provado um facto através das regras de normalidade e experiência equivale ao recurso a presunções judiciais, para firmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (art.ºs 342.º e 344.º do Código Civil).
   Segundo o art.º 344.º do Código Civil, “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.”
   Isto é, as forças probatórias de presunções judiciais e de prova testemunhal situam no mesmo nível. Assim, se o quesito possa ser provado pela prova testemunhal e regras de experiência, o tribunal de recurso não pode, em princípio, alterar a resposta ao quesito dada pelo tribunal de primeira instância com fundamento exclusivo de presunções judiciais, precisamente por falta de certeza de que se tais presunções judiciais fossem arredadas por outras provas testemunhais.
   De facto, o Tribunal de Segunda Instância só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto tomada pelo tribunal de primeira instância nos casos previstos nas al.s a) a c) do n.º 1 do art.º 629.º do CPC. Deve estar em conformidade com estas normas quando o Tribunal de Segunda Instância procura modificar a matéria de facto provada fixada pela primeira instância com base nas regras de experiência ou presunções judiciais.
   Prescreve, assim, a al. a) do n.º 1 do referido artigo:
   “1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
   a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;”
   Todavia, uma vez que não houve registo dos depoimentos das testemunhas e técnicos ouvidos na audiência do presente processo em primeira instância, não estão preenchidos os requisitos previstos nesta norma. Justamente por não estar em disposição do tribunal recorrido os depoimentos testemunhais ouvidos pelo tribunal de primeira instância para comparar com as regras de normalidade e experiência invocadas por aquele, não pode, na apreciação do recurso, conferir maior força probatória às presunções judiciais em relação à prova testemunhal.
   Na realidade, o tribunal recorrido não explicou em que consistem as regras de normalidade e de experiência consideradas.
   O presente caso também não cabe nas situações previstas nas al.s b) e c) dos referidos número e artigo.
   Uma vez que não está em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 629.º do CPC, o tribunal recorrido não pode alterar a resposta ao quesito 22º dada pelo colectivo de primeira instância com base nas regras de normalidade e experiência, e muito menos dar por não escrita.
   
   Foi feito apelo ainda pelo tribunal recorrido ao art.º 549.º, n.º 4 do CPC para proferir a decisão em causa. Segundo este número:
   “4. Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, confissão ou falta de impugnação.”
   É manifesto que a questão relacionada com o quesito 22º não cabe nos casos previstos nesta norma. Por isso, esta também não serve para sustentar a decisão do tribunal recorrido.
   
   Assim, deve ser revogada a decisão do tribunal recorrido de dar por não escrita a resposta ao quesito 22º dada pelo colectivo de primeira instância, mantendo a respectiva resposta. Isto é, não é válido o fundamento desta decisão constante do acórdão recorrido.
   Em consideração de toda a matéria de facto provada, a inclinação verificada no veículo que a recorrida comprou à recorrente deve-se a despressurização do sistema hidráulico de suspensão, em virtude de não utilização do veículo pela autora. Na primeira instância não ficou provado que a inclinação verificada no veículo tem por causa o defeito do próprio produto, pelo que não procede o pedido apresentado pela autora de substituição do veículo.
   Além disso, o tribunal recorrido julgou improcedente o pedido reconvencional, revogando a decisão de primeira instância, com base no encargo da ré pelas despesas relativas a estacionamento, guarda e manutenção do veículo, por causa da responsabilidade de reparar ou substituir o veículo, consequência do defeito nele existente.
   Tal como acontece com a questão anterior, o fundamento desta decisão é igualmente inválido, pelo que se deve revogar a decisão do Tribunal de Segunda Instância sobre o pedido reconvencional, mantendo a decisão de primeira instância que julgou procedente a reconvenção da ré.
   
   
   2.3 Litigância de má fé
   A recorrente revela nas alegações que a entidade prestadora da garantia referida na al. F) dos factos assentes não é a ré A, ora recorrente, mas antes uma outra a ela associada mas diferente, a C. Entende a recorrida que a recorrente deve ser condenada como litigante de má fé porque veio abjurar os factos que sempre assumiu, na forma de venire contra factum proprium; e mais ainda alterou conscientemente a verdade dos factos ao referir a inspecção como prova pericial.
   
   Em relação ao primeiro ponto, o acordo de garantia do veículo constante das fls. 59 dos autos mostra realmente que o nome da entidade prestadora da garantia de veículos de X é diferente do da recorrente como foi alegada por ela, facto que parecer ter escapado a todas as partes. A alegação desta questão pela recorrente no presente recurso não consubstancia nas situações de litigância de má fé previstas no n.º 2 do art.º 385.º do CPC.
   Sobre as provas, falta certamente rigor à recorrente quando esta refere a inspecção como prova pericial. No entanto, a recorrente emprega indistintamente os termos de prova pericial e inspecção pericial para exprimir a mesma prova, que é fácil de constatar. Além disso, a inspecção realizada aquando da produção de provas na primeira instância não foi a inspecção judicial em sentido rigoroso, pois foi feita através de apresentação de relatório oral perante o tribunal pelos dois técnicos profissionais após exame ao veículo em causa por estes. Não estamos perante o caso da alteração consciente da verdade dos factos.
   Improcede, assim, o pedido da recorrida.
   
   
   
   3. Decisão
   Face aos expostos, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido e mantendo a sentença de primeira instância, e indeferir o pedido da recorrida de condenar a recorrente por litigância de má fé.
   Custas nesta e na segunda instância pela recorrida.


   Aos 19 de Julho de 2006.



           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 12 / 2006 32