Processo nº 189/2011
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 15 de Março de 2012
ASSUNTO:
- Deficiência da instrução
- Exercício do poder discricionário
- Falta de audiência prévia
SUMÁRIO:
- A instrução do processo compreende toda uma série de actos e diligências destinados a apurar o quadro fáctico real, em função do qual há-de vir a ser proferida a decisão final.
- Não se verifica a deficiência da instrução caso a Administração procurou averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do pedido da recorrente.
- É pacífico, tanto na jurisprudência como na doutrina, que o exercício do poder discricionário por parte da Administração só é contenciosamente sindicável nos casos de erro manifesto ou a total desrazoabilidade do seu exercício.
- A audiência de interessados é uma das formas de concretização do princípio da participação dos particulares no procedimento administrativo, legalmente previsto no artº 10º do CPAC, nos termos do qual os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito.
- E destina-se a evitar, face ao administrado, o efeito surpresa e, ao mesmo tempo, garantir o contraditório, de modo a que não sejam diminuídos os direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados.
- Uma mera possibilidade da inutilidade da audiência do interessado não justifica a sua não realização, tem de haver uma certeza concreta na medida em que a audição nada vai afectar a decisão a tomar.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 189/2011
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 15 de Março de 2012
Recorrente: B
Entidade Recorrida: Secretário para a Economia e Finanças
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
B, melhor identificada nos autos, vem interpor o presente Recurso Contencioso contra o despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 07/01/2011, pelo qual se indeferiu o seu pedido de residência temporária, alegando, em sede de conclusão, que:
1. O objecto do presente recurso é o despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que negou provimento ao pedido de fixação de residência apresentado pela Recorrente.
2. O processo instrutor de fixação de residência padece de vícios de violação da lei, por preterição da chamada audiência dos interessados, violando assim as normas dos artigos 93º e 94º do Código de Procedimento Administrativo.
3. Sempre que a entidade recorrida conclua a instrução do processo, deve informar os interessados do sentido provável da sua decisão.
4. O que não se verificou nos presentes autos.
5. Verifica-se um deficit de instrução do processo, o que gera erro do pressuposto de factos, na medida em que não foi dada a interessada a possibilidade de juntar mais elementos de prova aos autos.
6. A interessada não teve a possibilidade de se pronunciar nos termos do artigo 94º do CPA, ficando assim impossibilitada de requerer diligências complementares e juntar mais documentos ao processo.
7. A mesma trabalha no ramo há vários anos, sendo que fala várias línguas mostrando ser útil para Macau, dada a sua apetência linguística e experiência profissional.
8. O despacho recorrido enferma ainda do vício de violação de lei, por falta de razoabilidade no exercício de poder discricionário (alínea d) do nº 1 do artigo 21º do Código de Procedimento Administrativo Contencioso).
9. A Recorrente invoca ainda a seu favor o facto de residir em Macau desde o ano 2000 e de nunca ter praticado nenhum tipo de crime, mantendo assim o seu registo criminal limpo.
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Regularmente citada, a entidade recorrida contestou nos termos constantes a fls. 32 a 36 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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O Ministério Público é de parecer pela improcedência do recurso, a saber:
Vem B, de nacionalidade nigeriana, impugnar o despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 7/1/11 que lhe indeferiu pedido de residência temporária, assacando-lhe vícios de "déficit instrutório" com consequente erro nos pressupostos em que a decisão se estribou, falta de audiência prévia e desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, argumentando, naquilo que reputamos de essencial, não ter sido ouvida a final no procedimento, não terem sido devidamente apurados, investigados e ponderados alguns dados que forneceu e se lhe afiguram importantes para o conhecimento do pedido, impondo-se, finalmente, na análise de tais dados, designadamente das suas capacidades e qualificações profissionais, circunstâncias de vida, o fact de residir em Macau desde 2000, não tendo praticado qualquer crime e tendo o registo criminal limpo, que se houvesse concedido deferimento ao peticionado.
Cremos, porém, não lhe assistir razão.
Pese sobre a Administração recaia o ónus de apurar e investigar todos os dados úteis para boa decisão, a verdade é que os mesmos haverão que ser isso mesmo, "úteis", pelo menos na perspectiva de quem decide.
Ora, no caso, fundamentando a entidade recorrida o indeferimento registado na falta de interesse para a RAEM no pedido de residência apresentado ao abrigo do art° 1º, al 3) do R.A. 3/2005 por a interessada possuir formação na área da gestão hoteleira, constatando-se a existência de trabalhadores locais qualificados e disponíveis para o efeito, não se vê a que maiores indagações houvesse que proceder, revelando-se, bem vistas as coisas, a matéria alegada pela recorrente como inócua, porque soçobrando sempre face a tal justificação e revelando-se, como se revelam reais os pressupostos à mesma subjacentes, sendo que, do mesmo passo, se revela sensato, adequado e razoável que as entidades vocacionadas para o efeito, vedem pedidos de residência temporária a interessados não residentes que a tal aspiram com base nas respectivas qualificações profissionais, quando as mesmas podem ser asseguradas por residentes igualmente qualificados e disponíveis para o efeito.
Os interesses económicos, familiares, profissionais e emocionais invocados pela recorrente, serão estimáveis, mas haverão sempre que ceder face ao interesse público na salvaguarda do emprego dos residentes e da estabilidade social da Região.
Finalmente, o procedimento em questão foi iniciado precisamente pela recorrente, tendo a mesma tido plena oportunidade de no mesmo introduzir o que bem que aprouvesse no seu interesse, pelo que se nos afigura que, de algum modo, nesse momento, a interessada teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões relevantes que importavam à decisão, não se descortinando no procedimento a "introdução" de quaisquer elementos ou dados com novidade, a poderem constituir elemento "surpresa", pelo que, efectivamente a pretendida nova audição resultaria em mera redundância, podendo a mesma ser dispensada, nos termos da al a) do artº 97°, CPA.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer provimento o presente recurso.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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O Tribunal é o competente.
As partes possuem personalidade e capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
II – Factos
Com base nos elementos existentes nos autos, considera-se assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
- Em 29/10/2009, a recorrente requereu a fixação de residência temporária na RAEM a título do quadro dirigente.
- Para a instrução do processo, apresentou, entre outros, o curriculum vitae constante a fls. 38 a 40 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
- Em 30/10/2009, o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (IPCIM) solicitou à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DAL) para informar se existem candidatos para cargo idêntico ao da recorrente.
- Em 24/11/2009, a DAL respondeu que existiam 2 candidatos para o mesmo cargo da recorrente, pedindo o vencimento mensal médio de MOP$24.800,00.
- Além disso, informou ainda que também existiam 7 candidatos para outros cargos com as mesmas habilitações literárias da recorrente, sendo o vencimento mensal médio requerido no montante de MOP$10.250,00.
- Em 02/12/2010, o IPCIM elaborou o parecer nº 0674/居留/2009, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
- Em 07/01/2011, o Secretário para a Economia e Finanças proferiu o seguinte despacho no referido parecer: “同意意見,不批准有關申請。”, em português, salvo melhor tradução: “Concordo com o parecer, indefiro o pedido”.
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III – Fundamentos
A recorrente imputa ao acto recorrido os seguintes vícios:
- Deficiente instrução do processo;
- Falta de audiência prévia do interessado; e
- Total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário.
Vamos analisar cada um deles.
Da deficiente instrução do processo:
Na opinião da recorrente, a entidade recorrida antes de tomar a decisão do indeferimento do seu pedido de fixação de residência temporária com fundamento de que a sua permanência não é de particular interesse para RAEM, não realizou diligências suficientes para averiguar se tal afirmação correspondia à realidade, já que no seu entender, a sua formação académica, qualificação e experiência profissional, bem como o conhecimento de várias línguas, tais como inglês, francês, português, cantonense e mandarim, apontam no sentido contrário, isto é, a sua permanência na RAEM representa particular interesse para esta região.
Quid iuris?
Dispõe o nº 1 do artº 86º do CPA que “O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito”.
É a chamada instrução do processo, onde compreende “toda uma série de actos e diligências destinados a apurar o quadro fáctico real, em função do qual há-de vir a ser proferida a decisão final1”.
No caso em apreço, o IPCIM antes de elaborar o parecer a submeter à apreciação do Secretário para a Economia e Finanças, oficiou à DAL para averiguar se existiam candidatos para o cargo idêntico da recorrente, tendo respondido que existiam 2 candidatos para o mesmo cargo da recorrente, pedindo o vencimento mensal médio de MOP$24.800,00.
Além disso, a DAL informou ainda que existiam também 7 candidatos para outros cargos com as mesmas habilitações literárias da recorrente, sendo o vencimento mensal médio requerido no montante de MOP$10.250,00.
Com base na referida informação da DAL, o IPCIM elaborou o parecer nº 0674/居留/2009, no qual foi feita uma exposição e análise pormenorizada sobre a situação concreta da recorrente e a informação da DAL, concluindo que na RAEM não faltava pessoal com as mesmas qualificações académicas e profissionais da recorrente, propondo consequentemente o indeferimento do pedido da fixação de residência temporária.
Ora, pelas circunstâncias acima descritas, não nos se afigura que a Administração tenha omitido o seu dever de instrução, já que procurou averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do pedido da recorrente.
Repare-se, não há aqui a falta de investigação ou consideração dos factos alegados pela recorrente, mas simplesmente a entidade recorrida entende que tais factos não são suficientes para sustentar a decisão favorável ao seu pedido.
Não se verifica, portanto, o alegado vício da deficiente instrução.
Da total desrazoabilidade do exercício do poder discricionário:
Imputa a recorrente ao acto recorrido o vício da total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário por não ter avaliado de forma correcta a sua situação concreta para concluir a sua permanência na RAEM ser de particular interesse para a região, visto que já se encontra “em Macau desde 2000 e de trabalhar num restaurante francês, com a mais-valia de falar fluentemente várias línguas, tais sejam inglês, português, e de ter vastos conhecimentos do cantonense e mandarim”.
É pacífico, tanto na jurisprudência como na doutrina, que o exercício do poder discricionário por parte da Administração só é contenciosamente sindicável nos casos de erro manifesto ou a total desrazoabilidade do seu exercício.
No caso em apreço, tendo em conta a formação académica (ensino secundário), qualificação (diploma na gestão da hotelaria e certificado dos estudos informáticos) e experiência profissional (gerente assistente e tesoureira) da recorrente, bem como os alegados conhecimentos linguísticos, não entendemos que o indeferimento do seu pedido de fixação de residência temporária enferma do vício da total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário.
Improcede assim o recurso nesta parte.
Da falta de audiência prévia:
A recorrente entende que a entidade recorrida antes de tomar a decisão do indeferimento, deveria informá-la do sentido provável da decisão, dando para o efeito, a possibilidade de se pronunciar e de juntar mais elementos de prova em caso de necessidade, violando assim o art. 93º do CPA, nos termos do qual concluída a instrução do procedimento, os interessados têm o direito de ser ouvidos antes de ser proferida a decisão final, sendo para tanto informados sobre o sentido provável desta, salvo nos casos dos artºs 96º (inexistências de audiência dos interessados) e 97º (dispensa de audiência dos interessados), do mesmo Código.
A este propósito, a entidade recorrida contestou no sentido da desnecessidade da audiência, alegando que o procedimento de fixação de residência temporária em questão foi iniciado com o pedido da recorrente e para efeitos da instrução do processo, a mesma já apresentou todos os elementos úteis, daí que era inútil a diligência em causa, a sua realização “constituiria mero desperdício de tempo e recursos” (ponto nº 17 da contestação, fls. 34).
A quem assiste a razão?
Como é sabido, a audiência de interessados é uma das formas de concretização do princípio da participação dos particulares no procedimento administrativo, legalmente previsto no artº 10º do CPAC, nos termos do qual os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito.
E destina-se a evitar, face ao administrado, o efeito surpresa e, ao mesmo tempo, garantir o contraditório, de modo a que não sejam diminuídos os direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados.
No entanto, além dos casos de inexistência e dispensa da audiência previstos nos artºs 96º e 97º acima referidos, a doutrina e a jurisprudência, têm vindo a entender que a preterição dessa formalidade pode, em certos casos, ser ultrapassada se daí não resulte qualquer ilegalidade determinante da anulação do acto, isto é, quando, atentas as circunstâncias concretas, a intervenção do interessado se tornou inútil, seja porque o contraditório já se encontre assegurado, seja porque nada sobre ele se pudesse pronunciar, seja ainda porque, independentemente da sua intervenção e das posições que o mesmo pudesse tomar, a decisão da Administração só pudesse ser aquela que foi tomada (Ac. do TUI de 18/02/2004, Proc. nº 13/2003 e Ac. do TSI, de 21/07/2011, Proc. nº 344/2009, bem como Ac. do STA, proferidos nos Procs. nºs 1240/02, 671/10 e 833/10, respectivamente, de 03/03/2004, 10/11/2010 e 11/05/2011).
Será o caso sub justice um destes casos de audiência desnecessária?
Cremos que não.
Veja-se:
Em primeiro lugar, deferir (ou não) a pretensão da recorrente não é uma actividade vinculada, mas sim discricionária, uma vez que a Administração goza do amplo poder para definir se a permanência da mesma na RAEM é de interesse particular para a região.
Por outro lado, a Administração depois de colher informação junto da DAL e com base na mesma, indeferiu o pedido da recorrente sem que esta possa pronunciar-se sobre a informação em causa ou apresentar outros elementos novos para o seu interesse.
Repare-se, para a recorrente, a informação do DAL é um elemento novo carregado no processo, pelo que ao não deixar a recorrente pronunciar-se sobre a mesma, prejudicou o seu direito de defesa, ficando a decisão recorrida baseada simplesmente numa posição unilateral das entidades administrativas envolvidas.
É admissível que a audiência da recorrente não iria trazer algum elemento útil e a decisão seria a mesma, mas também é legítimo pensar no sentido oposto, daí que uma mera possibilidade da inutilidade da audiência do interessado não justifica a sua não realização, tem de haver uma certeza concreta na medida em que a audição nada vai afectar a decisão a tomar.
Como bem afirmou o Ac. deste Tribunal de 21/07/2011, proferido no Proc. nº 344/2009, que “sendo discricionária a actividade praticada, era necessário que o contraditório se tivesse observado, de modo a que a decisão final, qualquer que fosse, pudesse ser o resultado de uma ponderação alargada de todos os elementos recolhidos e das opiniões vazadas pelos intervenientes procedimentais”.
Nesta conformidade, o acto recorrido não pode deixar de ser anulado por este vício.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, anulando o acto recorrido.
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Sem custas, por a entidade recorrida gozar da isenção subjectiva.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 15 de Março de 2012.
(Relator) Presente
Ho Wai Neng Vítor Manuel Carvalho Coelho
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong Vencido nos termos de declaração de voto que se junta.
Processo nº 189/2011
Declaração de voto de vencido
Vencido por entender que in casu não há lugar à audição prévia, uma vez que a decisão recorrida não constitui uma surpresa para o requerente, pois foi o próprio requerente que desencadeou o procedimento administrativo e que ele, ciente de que, face à lei de Macau, a contratação dos trabalhadores não residentes é sempre complemento dos recursos humanos locais, deveria ter contado com a possibilidade de a Administração vir a decidir o seu pedido de acordo com as informações relativas à situação do mercado dos recursos humanos em Macau.
RAEM, 15MAR2012
O juiz adjunto,
Lai Kin Hong
1 CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE MACAU ANOTADO E COMENTADO, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho.
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