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Processo nº 26/2012 Data: 16.02.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Princípio da suficiência do processo penal.
Suspensão do provesso penal.



SUMÁRIO

1. Com o art. 7°, n.° 1 do C.P.P.M. consagrou-se o o “princípio da suficiência do processo penal”, segundo o qual a jurisdição penal pode julgar todas as questões prejudiciais de feitos penais e a de que a acção penal é exercida e julgada independentemente de quaisquer outras acções.

É um princípio que visa garantir a concentração e a continuidade do processo penal, prevenindo a ocorrência de obstáculos ao exercício da acção penal.

2. Porém, esta “suficiência do processo penal” não significa “absoluta exclusividade” da mesma jurisdição penal na resolução e decisão de questões de natureza não penal.

3. Assim, o princípio deve ser defendido na medida do possível, não obstante ser certo que o relevo, a complexidade ou a especialidade de que se revestem certas questões prejudiciais podem postular insistentemente que, nestes casos, o processo penal se suspenda e a questão seja devolvida para o tribunal normalmente competente, a fim de aí ser decidida.

O relator,

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Processo nº 26/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por despacho proferido pelo Mmo Juiz do 3° Juízo Criminal do T.J.B. decidiu-se suspender os presentes Autos de Processo Comum Singular por um período de 6 meses, a fim de se aguardar que seja proferida decisão no processo CV1-09-0037-CAO, a correr termos no 1° Juízo Cível do mesmo Tribunal; (cfr., fls. 126, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada com o assim decidido, a assistente “A LIMITED”, recorreu para concluir nos termos seguintes:

“A. O pedido de suspensão dos presentes autos até que seja proferida decisão no processo cível (que corre termos no 1° Juízo Cível sob o número CV1-09-0037-CAO) já tinha sido anteriormente apresentado pela Arguida no decorrer do inquérito que precedem os presentes tendo na altura a Meritíssima Juíza decidido e bem que a decisão do processo criminal não tem que aguardar pela decisão do processo cível;
B. A Assistente tem os seus produtos protegidos por patentes e em Macau requereu a extensão do registo da patente, à qual foi atribuída, a 15 de Maio de 2006, a concessão do Título de Patente de Invenção n.° J/000039, tendo ainda sido requerido o certificado complementar para produto farmacêutico, concedido pela Direcção dos Serviços de Economia em 21 de Junho de 2007 pelo certificado complementar de medicamento no. F/000001, válido até 30 de Março de 2014;
C. Os direitos conferidos pelo referido Certificado Complementar, concedido e registado pelo Governo de Macau, continuam válidos e susceptíveis de serem exercidos na RAEM - a interposição de uma acção civil visando o seu cancelamento não pode nem deve inibir o seu exercício;
D. A Assistente participou a comercialização ilegal do produto C, em violação dos seus direitos, aos Serviços de Alfândega a 30 de Junho de 2008, requerendo a apreensão de todas as embalagens de C que estivessem a ser comercializadas em Macau;
E. Os Serviços de Alfândega confirmaram ser a importadora B Limited que segundo inquirição de um dos seus trabalhadores confirmou que desde Julho de 2007 se encontravam a importar o produto C;
F. Os Serviços de Alfândega concluíram que houve infracção ao direito patenteado pela Assistente, bem como a Direcção dos Serviços de Saúde que por ofício confirma que o composto principal do produto da Assistente é “amlodipine besylate” patenteado em Macau - violação dos direitos da Assistente - está demonstrada pela prova constante dos autos;
G. Os direitos da Assistente incluem "o direito exclusivo de explorar a invenção no Território e o direito de se opor a todos os actos que constituam violação da sua patente, designadamente, impedindo a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo para algum dos fins mencionados" (artigo 104°, n°1, alínea a) e b) do Regime Jurídico de Propriedade Industrial), cuja violação é punida com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa de 60 a 120 dias conforme o estabelecido no artigo 289° do mesmo diploma;
H. Dos factos não restam dúvidas que a patente da Assistente está hoje validamente registada em Macau e sujeita a disposições legais que visam a sua protecção, como já estava validamente registada em Macau à data da prática dos factos imputados à Arguida e oportunamente denunciados aos Serviços de Alfândega;
I. O processo cível intentado contra a Assistente data de 21 de Maio de 2009 ou seja dois anos após a prática do ilícito criminal pela Arguida pelo que a Arguida não podia justificar a sua conduta criminosa alegando que a validade da referida patente estava a ser discutida em juízo;
J. O processo cível hão foi ainda sequer objecto de uma decisão em primeira instância, não havendo qualquer 1ndício de que a decisão a proferir nos autos civis venha a afectar a validade da patente da Assistente;
K. Ao contrário do entendimento do Juíz a quo, a Assistente entende que os presentes autos são suficientes para decidir esta causa e que aí constam toda a prova e factos relevantes para dirimir a questão uma vez que, não restam dúvidas de que a Assistente tem um direito legítimo à patente protegido legalmente em Macau, direito reiteradamente violado por uma entidade identificada - a sociedade Arguida - pelo que não se encontra qualquer razão para suspender os presentes autos até que uma decisão seja tomada no processo que corre os seus termos junto dos tribunais civis - CV1-09-0037-CAO.
M. A decisão recorrida não só viola as disposições legais aplicáveis, ao alegar uma pretensa questão prévia (inexistente) como subverte em absoluto o princípio da suficiência plasmado no artigo 7°, número 1° do Código de Processo Penal “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.”; (cfr., fls. 2 a 10).

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Respondendo, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público e a arguida “B COMPANHIA LIMITADA” pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 12 a 16 e 18 a 19-v).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Ajunto o seguinte douto Parecer:

“No douto Despacho de Pronúncia (cfr. fls.112 verso a 115 dos autos), foi imputado à «B Companhia Limitada», arguida e recorrida neste processo penal, um crime de violação do exclusivo da patente ou de topografia de produtos semicondutores, p.p.pelas alíneas c) e b) do n.°1 do art.289° do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.°97/99IM.
Sendo assim, o presente processo penal visa a apurar se a referida arguida/recorrida «B Companhia Limitada» tiver cometido, em autoria material e na forma consumada, tal crime pronunciado. - Eis a questão de mérito deste processo.
Ora, é incontroverso que a verificação do dito crime pronunciado tem por pressuposto imprescindível que a patente ou topografia de produtos semicondutores gozava, na devida altura, de protecção jurídica no ordenamento jurídico de Macau .
Ou seja, para efeitos de se conhecer da existência desse crime, é necessário averiguar se, na devida altura, a patente se encontrava na protecção jurídica válida.
Acontece que a ora Assistente/Recorrente «A Limited» é a Ré na acção civil registada sob o n.°CVl-09-0037-CAO (doc. de fls.130 a 133 dos autos), em que se discute a validade do registo da extensão a Macau da patente sob o n.°J/000039 e do certificado de protecção complementar sob o n.°F/000001.
Ponderando, afigura-se-nos certo que o litígio sobre tal validade não pode ser convenientemente resolvido neste processo penal e constitui aqui questão prejudicial no sentido de afectar directamente a existência e essência do crime pronunciado. O que se toma inquestionável que se verifica in casu o pressuposto previsto no n.°2 do art.7° do CPP.
Nestes termos, e acolhendo também as criteriosas explanações da Exma. Colega na Resposta (fls. 12 a 16 dos autos), entendemos por certo que não se vislumbra nenhum dos vícios assacados pela recorrente ao douto despacho recorrido.
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Por todo o exposto, pugnamos pela improcedência do presente recurso na sua totalidade”; (cfr., fls. 161 a 161-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Resulta do que se deixou relatado que em causa no presente recurso está saber se correcta e adequada é a decisão de suspensão dos presentes autos, proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B..

Entendeu o Mmo Juiz que deviam os autos aguardar, por 6 meses, eventual decisão a proferir nos autos CV1-09-0037-CAO, a correr os seus termos no 1° Juízo Civil.

No mencionado despacho, invocou-se o (n.° 2) do art. 7° do C.P.P.M., o qual prescreve que:

“1. O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa.

  2. Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o juiz suspender o processo para que se decida esta questão em processo não penal.

  3. A suspensão pode ser requerida, após a acusação ou o requerimento para abertura da instrução, pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, ou ser ordenada oficiosamente pelo juiz.

  4. A suspensão não prejudica a realização de diligências urgentes de prova.

  5. O juiz marca o prazo da suspensão, que pode ser prorrogado até um ano se a demora na decisão não for imputável ao assistente ou ao arguido.

  6. O Ministério Público pode sempre intervir no processo não penal para promover o seu rápido andamento.

  7. Esgotado o prazo sem que a questão tenha sido resolvida, ou se a acção não tiver sido proposta no prazo máximo de um mês, a questão é decidida no processo penal”.

Ora, como sabido é, com tal comando legal consagrou-se, (no seu n.° 1), o “princípio da suficiência do processo penal”, segundo o qual a jurisdição penal pode julgar todas as questões prejudiciais de feitos penais e a de que a acção penal é exercida e julgada independentemente de quaisquer outras acções.

É pois um princípio que visa garantir a concentração e a continuidade do processo penal, prevenindo a ocorrência de obstáculos ao exercício da acção penal.

Porém, esta “suficiência do processo penal” não significa “absoluta exclusividade” da mesma jurisdição penal na resolução e decisão de questões de natureza não penal.

E, seja como for, não se nega também que a suspensão do processo ao abrigo do transcrito preceito legal, deve ser vista como uma “excepção”.

Com efeito, e como nota Figueiredo Dias, “se não se contivesse dentro dos mais apertados limites a possibilidade de o processo penal ser sustido ou interrompido pelo surgimento de uma questão penal ou não penal susceptível de cognição judicial autónoma, pôr-se-iam em sério risco as exigências, compreensíveis e relevantíssimas, de concentração processual ou de continuidade do processo penal, permitindo-se assim que, deste modo, se levantassem indirectamente obstáculos ao exercício da acção penal. Assim, o princípio deve ser defendido na medida do possível, não obstante ser certo que o relevo, a complexidade ou a especialidade de que se revestem certas questões prejudiciais podem postular insistentemente que, nestes casos, o processo penal se suspenda e a questão seja devolvida para o tribunal normalmente competente, a fim de aí ser decidida”; (cfr., Direito Processual Penal, I, página 164).

Nesta conformidade, vejamos.

Ora, por despacho do Mmo Juiz de Instrução Criminal, datado de 19.05.2011, foi a arguida dos presentes autos “B COMPANHIA LIMITADA”, pronunciada pela prática de 1 crime de “violação do exclusivo da patente ou de topografia de produtos semicondutores”, p. e p. pelo art. 289°, n.° 1, al. a) e b) do Regime Jurídico de Propriedade Industrial aprovado pelo D.L. n.° 97/99/M.

Nos termos deste art. 289°:

“É punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa de 60 a 120 dias quem, em termos de actividade empresarial e com o objectivo de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, e sem consentimento do titular do direito de propriedade industrial:

a) Fabricar os artefactos ou produtos que forem objecto da patente ou de topografia de produtos semicondutores;

b) Empregar ou aplicar os meios ou processos que forem objecto da patente ou de topografia de produtos semicondutores;

c) Importar ou distribuir produtos obtidos por qualquer dos modos referidos nas alíneas anteriores”.

E, tanto quanto resulta dos documentos juntos aos autos, no aludido processo CV1-09-0037-CAO, em que é Autora a aqui arguida/recorrida, e Ré a ora assistente/recorrente, está, essencialmente, em causa saber se os “direitos” que esta última alega possuir, e que, como tal, terão sido violados pela arguida, são efectivamente válidos e susceptíveis de serem exercidos.

Subscreve-se assim a douta opinião do Ilustre Procurador Adjunto no sentido de que a decisão quanto à imputada responsabilidade criminal da arguida (recorrida) implica uma (prévia) decisão sobre a validade dos direitos invocados pela ora recorrente, ou seja, da extensão do registo da patente, (“Título de Patente de Invenção n.° I-000039”), assim como do certificado complementar de medicamento n.° F/000001, como a mesma refere na sua motivação de recurso e cujas conclusões estão reproduzidas no presente aresto.

Então, como decidir?

Pois bem, é verdade que a ora recorrente afirma que os seus “direitos” são “válidos e eficazes”, que a arguida recorrida está pronunciada por “violação” de tais direitos, e compreendem-se os motivos da sua não concordância com o despacho recorrido.

Todavia, o certo é que os ditos “direitos” estão a ser (legalmente) questionados em sede da dita acção civil CV1-09-0037-CAO, na qual já se mostra proferido despacho saneador.

E, sem prejuízo do muito respeito por a opinião em sentido diverso, afigura-se-nos razoável reconhecer que a “matéria” em causa reveste, pelo menos, alguma “especialidade”, o que, aliado ao período de suspensão em questão, (6 meses, já pouco faltando para o seu termo), leva-nos também a aderir ao juízo efectuado pelo Mmo Juiz a quo no sentido da (conveniência da) suspensão do processo, a fim de, no “local próprio”, ser a mesma decidida.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimentos ao recurso.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

Macau, aos 16 de Fevereiro de 2012


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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 26/2012 Pág. 16

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