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Processo n.º 624/2011 Data do acórdão: 2012-3-15
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – furto de coisa transportada em veículo estacionado
  – quebra da janela do veículo
  – art.o 198.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
  – art.o 206.o, n.o 1, do Código Penal
  – art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do Código Penal
S U M Á R I O
O furto de coisa transportada em veículo estacionado, praticado com prévia quebra da janela do veículo, representa, para o agente, a autoria, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de furto qualificado previsto no art.o 198.o, n.o 1, alínea b), parte inicial, do Código Penal, e de um crime de dano simples previsto no art.o 206.o, n.o 1, do mesmo Código, a não ser que o veículo em questão funcione primordialmente como habitação móvel, caso em que tal furto com quebra da janela já deve integrar apenas um crime qualificado previsto na alínea e) do n.o 2 do dito art.o 198.o.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 624/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 156 a 160v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-10-0195-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do vigente Código Penal (CP), na pena de três anos de prisão efectiva, e no pagamento de quatro mil e trezentas patacas de indemnização a favor da ofendida B, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para rogar a redução dessa pena (por entender não ter o Tribunal Colectivo a quo ponderado, com prudência, o disposto no art.o 40.o e 65.o do CP aquando da medida da pena, então feita com desprezo das circunstâncias de que ele não tinha antecedentes criminais, o objecto furtado tinha valor não elevado, o grau de ilicitude dos factos era baixo, a conduta dele não era lesiva em relação a terceiros, e ele precisava de cuidar da sua filha), para além de pretender a suspensão da execução da pena (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 178 a 180 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu o Ministério Público (a fls. 182 a 183v) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 203 a 204v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito subsequentemente o exame preliminar, corridos os vistos e com audiência já feita neste TSI (tendo antes disso o arguido já inclusivamente sido advertido da eventual alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos, no sentido de os mesmos passarem a integrar tão-só um crime de furto simples do art.o 197.o, n.o 1, do CP, ou somente um crime de furto qualificado da alínea b) do n.o 1 do art.o 198.o do CP, ou um crime de furto qualificado desta alínea b), em concurso efectivo com um crime de dano simples do art.o 206.o, n.o 1, do CP – cfr. o processado a fls. 219 a 219v, 226 a 227, 251v a 253 e 265 a 267), cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
De acordo com a matéria de facto já descrita como provada nas páginas 3 a 5 do texto do acórdão da Primeira Instância (ora concretamente a fls. 157 a 158 dos autos), e não impugnada pelo arguido:
– em 13 de Abril de 2010, cerca das 13:10, a ofendida estacionou um automóvel ligeiro com a chapa de matrícula n.o MI-XX-XX num lugar de estacionamento no lado esquerdo da Rua de Francisco Xavier Pereira, e quando saiu do veículo, deixou no seu assento traseiro uma mala preta que continha um computador portátil e três tubos de memória “USB”;
– cerca das 13:30, ao passar pela referida rua, o arguido, ao ver que aquele veículo tinha uma mala de computador no assento traseiro, empregou um bico de furador eléctrico para bater e quebrar a janela de vidro do lado esquerdo transeiro do veículo, e baixou o seu corpo para se introduzir no veículo e tirou aí tal mala de computador, e depois pôs-se em fuga a passos apressados;
– o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, tendo batido e quebrado com objecto duro a janela do veículo, e retirado do seu interior coisa de que se apropriou, tendo essa sua conduta ofendido o direito de propriedade de outrem e causado à ofendida prejuízo patrimonial;
– o arguido sabia claramente que a sua conduta era proibida e punível por lei;
– o arguido declarou trabalhar como empregado comercial, com quatro mil e quinhentos renminbis de rendimento mensal, tem a 5.a classe do ensino primário, e precisa de sustentar a filha;
– segundo o certificado de registo criminal, o arguido não tem antecedentes criminais em Macau, e tem um processo pendente, com o n.o CR1-08-0200-PCC, no Tribunal Judicial de Base, relativo a um crime de furto qualificado.
Por outro lado:
– na acta da audiência em julgamento em primeira instância (lavrada a fls. 153 a 154), consta que o arguido negou a prática dos factos acusados;
– a ofendida declarou desejar procedimento criminal contra o arguido (cfr. sobretudo o auto de declarações lavrado pela Polícia Judiciária a fls. 15 a 15v, com assinatura da própria ofendida).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que o arguido restringiu, nos termos do art.o 393.o, n.o 2, alínea c), do CPP, o âmbito do seu recurso somente à questão do exagero da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao seu crime de furto qualificado do art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do CP, e à questão de pretendida suspensão da execução da pena de prisão.
Não obstante, afigura-se possível ao presente Tribunal ad quem proceder à alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos.
A este propósito, vista a factualidade assente no acórdão recorrido, como não se detecta aí nenhum facto alusivo a eventual função primordial do veículo automóvel dos autos como sendo uma habitação móvel, há que decair a aplicabilidade ao arguido da circunstância hiperqualificadora do furto plasmada na alínea e) do n.o 2 do art.o 198.o do CP.
Enquanto já é de operar, desde logo, a norma incriminadora da parte inicial da alínea b) do n.o 1 do mesmo art.o 198.o, dado que efectivamente o arguido furtou uma mala de computador (com um computador portátil e três tubos de memória “USB”) transportada no dito veículo, ainda que estacionado na altura. Neste sentido, conforme:
– por um lado, a anotação feita por JOSÉ DE FARIA COSTA aos preceitos penais congéneres em Portugal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 61, último parágrafo, e pág. 62, primeiro parágrafo (onde se escreveu: “Na verdade, é preciso sublinhar que perante a teleologia do texto-norma comete um crime de furto qualificado aquele que se apropriar ilegitimamente de coisa alheia transportada em veículo. Repare-se que não estamos no domínio de coisas por passageiros mas pura e simplesmente no âmbito das coisas transportadas em veículos. Alargamento extraordinário do âmbito de protecção que só se pode explicar – se assim nos quisermos exprimir – por um aumento da vulnerabilidade do património quando transportado em veículo”), e também na pág. 67, terceiro parágrafo (em se se observou: “Dando uma especial protecção ... às acções que consubstanciam crimes de furto perpetrados dentro da habitação, o legislador, para que dúvidas não subsistissem, considerou – e bem – habitação mesmo a habitação móvel. Quer isto significar inequivocamente que as chamadas roulottes, as caravanas, as barcaças quando habitadas são, para este efeito, habitações”);
– e, por outro, o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 19 de Janeiro de 2012, no Processo n.o 62/2011, na parte em que se considerou que o furto de objectos em automóvel, ainda que este esteja estacionado, constitui o crime p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea b), do CP.
Entretanto, in casu, afigura-se ao presente Tribunal ad quem que o arguido cometeu também um crime de dano simples, p. e p. pelo art.o 206.o, n.o 1, do CP, por ter quebrado uma janela instalada no veículo automóvel dos autos.
Isto é, em tese jurídica falando, o furto de coisa transportada em veículo estacionado, praticado com prévia quebra da janela do veículo, representa, para o agente, a autoria, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de furto qualificado previsto no art.o 198.o, n.o 1, alínea b), parte inicial, do CP, e de um crime de dano simples previsto no art.o 206.o, n.o 1, do mesmo Código, a não ser que o veículo em questão funcione primordialmente como habitação móvel, caso em que tal furto com quebra da janela já deve integrar apenas um crime qualificado previsto na alínea e) do n.o 2 do art.o 198.o.
É, pois, de passar a condenar o arguido ora recorrente como autor material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado da alínea b) (parte inicial) do n.o 1 do art.o 198.o do CP, punível com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, e de um crime de dano do art.o 206.o, n.o 1, do mesmo Código, punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Em sede da medida da pena a caber nestes dois crimes, não se opta pela aplicação da multa em detrimento da prisão, dadas as elevadas necessidades da prevenção geral do tipo legal de furto qualificado do art.o 198.o, n.o 1, alínea b) (parte inicial), do CP e do crime de dano praticado em circunstâncias fácticas congéneres (cfr. o critério material vertido na parte final do art.o 64.o do CP).
Tendo em conta que, por um lado, o arguido não tem antecedentes criminais segundo o seu certificado de registo criminal, e o dano patrimonial total sofrido pela ofendida é de quatro mil e tal patacas, e, por outro lado, os crimes de furto e de dano em questão foram praticados em pleno meio-dia numa via pública (o que reflecte que não é baixo o grau de ilicitude dos respectivos factos, nem é diminuta a culpa do arguido na prática desses dois crimes, embora o crime de dano tenha sido praticado com o fim de conseguir o furto da coisa no interior do veículo) e o arguido não chegou a confessar os factos, é de impor-lhe, sob a égide dos padrões da medida da pena fixados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, a pena de um ano de prisão pelo crime de furto qualificado e a pena de quatro meses de prisão pelo crime de dano, e, em cúmulo jurídico nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP (depois de ponderados em conjunto os factos e a sua personalidade), a pena única de um ano e dois meses de prisão.
Com o que o arguido acaba por ter a sua pena de prisão aplicada pelo Tribunal a quo reduzida, não obstante com base nos fundamentos acima referidos, e, pois, diferentes dos alegados na sua motivação do recurso.
Por fim, quanto à almejada suspensão da execução da pena de prisão, entende o presente Tribunal que apesar de o arguido ter o direito de negar a prática dos factos, a não confissão dos factos e as elevadas exigências da prevenção criminal pelo menos em vertente geral obstam à consideração de que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão já consigam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. o critério material plasmado no art.o 48.o, n.o 1, parte final, do CP).
Face ao exposto, procede só parcialmente o recurso, devido à redução da pena de prisão.
IV – DECISÃO
Dest’arte, e ainda que com fundamentação diversa da alegada na motivação, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do arguido A, passando a condená-lo como autor material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea b), parte inicial, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, e de um crime de dano, p. e p. pelo art.o 206.o, n.o 1, do mesmo Código, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, e, em cúmulo, na pena única de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão efectiva.
Pagará o arguido a metade das custas do recurso e duas UC de taxa de justiça correspondente.
Fixam em mil e cem patacas os honorários oficiosos a favor da Exm.a Defensora que motivou o recurso, e em duzentas patacas os honorários do Exm.o Defensor que ficou presente na audiência de segunda instância, a entrar na regra das custas, indo todo esse montante ser adiantado pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Passe mandados de detenção contra o arguido, para efeitos da sua condução ao Estabelecimento Prisional para cumprimento da pena.
Comunique ao Processo n.o CR1-08-0200-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, e à ofendida.
Macau, 15 de Março de 2012.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________ (Segue declaração)
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)

Processo nº 624/2011
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Com o douto Acórdão que antecede decidiu-se alterar a qualificação jurídico-penal efectuada pelo Colectivo do T.J.B., passando-se a condenar o arguido por um crime de “furto qualificado” p. e p. pelo art. 198°, n.° 1 , al. b), do C.P.M., (em concurso real com um outro de “dano”), em vez do crime de “furto qualificado” p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. e), do mesmo Código, pelo qual vinha condenado.

Sem embargo do muito respeito devido, cremos que a conduta do arguido dos autos também não integra o crime de “furto qualificado” p. e p. pelo art. 198°, n.° 1, al. b) do C.P.M..

Vejamos.

Está (essencialmente) provado que o arguido no dia 13.09.2010, partiu a janela do lado esquerdo do automóvel ligeiro MI-XX-XX, estacionado na R. Francisco Xavier Pereira, e introduzindo-se no veículo, tirou uma mala preta que continha um computador portátil e três tubos de memória “USB”, pondo-se, seguidamente, em fuga com tais bens que fez seus, tendo agido livre e voluntariamente, e sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

Preceitua o aludido art. 198° do C.P.M. que:

    “1. Quem furtar coisa móvel alheia
   
   a) de valor elevado,
   
   b) transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação ou cais,
   
   c) afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério,
   
   d) explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública ou perigo comum,
   
   e) fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo, equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança,
   
   f) introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar,
   
   g) com usurpação de título, uniforme ou insígnia de funcionário, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;
   
   h) fazendo da prática de furtos modo de vida, ou
   
   i) deixando a vítima em difícil situação económica, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
   
   2. Quem furtar coisa móvel alheia
   
   a) de valor consideravelmente elevado,
   
   b) que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico,
   
   c) que, por natureza, seja altamente perigosa,
   
   
   d) que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público,
   
   e) introduzindo-se em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas,
   
   f) trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta, ou
   
   g) como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do grupo, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
(…)”.

E, (como se disse), perante a dita facticidade, e procedendo-se ao seu (re)enquadramento jurídico, deu-se como verificada a “circunstância” da al. b) do n.° 1, proferindo-se a decisão que se deixou referida.

Por nós, somos de opinião que o “furto de objectos deixados no interior de um veículo automóvel” – como é o caso dos autos – não qualifica o crime de “furto” nos termos da aludida “alínea b), n.° 1”, pois que, tal circunstância – como parece ser também o entendimento do Prof. Faria Costa, citado no Acórdão que antecede, – só se aplica a bens “transportados” em veículo automóvel, sendo assim necessário que o bem móvel se encontre numa “relação de transporte” com o veículo, e não numa qualquer outra relação, (nomeadamente, de a coisa móvel ter sido colocada ou deixada no veículo).

Idêntica questão foi também objecto de análise pelos Tribunais superiores portugueses, valendo a pena aqui verter alguns dos argumentos que levaram a considerar que o “furto” de objectos colocados ou deixados em veículo automóvel não devia ser qualificado pela circunstância aqui em apreciação.

Com efeito, e como se consignou (v.g.) no Ac. do S.T.J. de 01.03.2000, Proc. n.° 17/2000, (in B.M.J. 495-59), (aí referindo-se à alínea b), n.° 1, do art. 204°, então, com a mesma redacção da al. b), do n.° 1, do art. 198° do C.P.M.):
(…)

   “Importa procurar a intencionalidade jurídico-penal relevante referente ao bem jurídico específico pretendido proteger com essa qualificativa.
  A conjugação dos elementos literal, teleológico e histórico de interpretação apontam para que, apesar das diferenças de situações pressupostas nos diversos segmentos da norma, toda ela visa a protecção do bem jurídico da livre disponibilidade da fruição das utilidades das coisas móveis transportadas em veículo, quer sejam subtraídas directamente deste, quer o sejam de depósito de objectos transportados ou a transportar em veículo, quer, no caso de os sujeitos passivos serem passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais.
  Elemento comum às diversas situações típicas é pois que a coisa móvel se encontre numa relação de transporte com um veículo e não numa qualquer outra relação com este, designadamente a derivada da circunstância de a coisa móvel ter sido deixada no veículo.
  A letra da lei logo aponta para ser esse o sentido, pois não seria a expressão mais adequada se se pretendessem incluir na previsão outras situações como a que se deixou referida de objectos deixados no interior do veículo sem relação directa com a sua função de transporte de objectos ou de passageiros com objectos.
  E essa impropriedade de linguagem seria tanto mais acentuada quanto é certo que no domínio de aplicação do Decreto-Lei n.° 44 939, de 27 de Março de 1963, revogado pelo Decreto-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Código Penal de 1982, se incriminava expressamente, para além do furto de quaisquer veículos e de peças ou acessórios a eles pertencentes, o de objectos ou valores neles deixados.
  Pelo que, a entender-se que o legislador usou a expressão «transportada» com o referido sentido alargado, teria de considerar-se afastada a presunção de que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, estabelecida no n.° 3 do artigo 9.° do Código Civil, o que não é de fácil aceitação, considerando os referidos antecedentes da incriminação de furtos relacionados com veículos, conjugados com a conhecida qualidade dos elementos que constituíram as comissões para elaboração do Código Penal de 1982 e sua revisão de 1995 [de salientar que previsão da agravante em análise tem essencialmente o mesmo referido conteúdo, quer na versão inicial, quer na de 1995].
  Assim, embora fosse de aceitar que o referido sentido alargado tinha na mencionada forma literal encontrada um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, só seria de aceitar esse sentido se os elementos teleológico, histórico e sistemático de interpretação o justificassem.
  O que não é o caso.
  As razões da agravação parecem residir na acentuada maior fragilidade da possibilidade de guarda segura das coisas transportadas, resultante do entrecruzar dos vários factores que diminuem o grau de eficácia das defesas normais desse poder de guarda com os relativos ao aumento da intensidade e da possibilidade de êxito das acções contra esse património, por virtude da existência dessa maior fragilidade e seu conhecimento por parte dos eventuais agentes. E ainda pela ideia tradicional da paz dos caminhos, traduzida na ideia, que continua actual, de que é bem jurídico individual e societário muito relevante a segurança nos meios de comunicação, também no aspecto relacionada com a tranquilidade da manutenção do domínio de facto sobre as coisas móveis transportadas, hoje particularmente em veículos.
  O elemento teleológico contraria assim a interpretação no mencionado sentido de a previsão da alínea b) do artigo 204.° abranger o furto de objectos deixados no veículo.
  E o elemento histórico também não o apoia, como resulta do confronto dos termos da lei actual com o já referido anterior regime revogado pelo diploma que aprovou o novo Código Penal e do que é possível extrair dos trabalhos preparatórios.
  Desses trabalhos salienta-se:
  No anteprojecto de revisão de 1987, resultado de um grupo de trabalho constituído pelos Ex.mos Juízes Conselheiros Drs. Manuel António Lopes Rocha, Fernando João Ferreira Ramos e António Gomes Lourenço Martins, propôs-se a seguinte redacção para a alínea e) do n.° 2 do artigo 297.°, preceito correspondente ao constante da actual alínea b) do n. ° 1 do artigo 204.°:
  [ ... ]
  Deixada no interior de qualquer veículo ou nele transportada ou colocada em lugar de depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais. (Sublinhados nossos.)
  E conforme consta das actas da comissão de revisão de 1995, aquele anteprojecto serviu de base a esse trabalho de revisão.
  Apesar disso e da referida alteração proposta, o texto aprovado pela comissão de revisão excluiu a referência a coisa deixada em veículo, sendo certo que - face às dúvidas surgidas na jurisprudência quanto ao âmbito da expressão transportada em veículo, constante da previsão da alínea g) do n.° 1 do artigo 297.° da versão originária do Código Penal - não podia ser ignorada pela comissão, de que aliás faziam parte dois dos distintos magistrados que tinham elaborado o anteprojecto de 1987, o alcance e a razão de ser da proposta de alteração introduzida.
  O que reforça o entendimento de que foi intenção do legislador não aceitar o alargamento da agravante qualificativa constante dessa alínea aos casos de coisa móvel deixada no interior de veículo.
  
  Igualmente a conjugação desse elemento histórico com o elemento sistemático de alguma forma contraria o entendimento de que a previsão da citada alínea b) inclui a subtracção de coisa móvel deixada em veículo, como deriva da comparação do constante do citado Decreto-Lei n.° 44 939, de 27 de Março de 1963, com as únicas disposições do actual Código que dão relevância específica expressa ao furto relacionado com veículo - artigo 204.°, n.° 1, alínea b}, e artigo 208.°, punindo este o furto de uso de veículo. Parece resultar efectivamente desse confronto que o actual sistema limitou essa especificidade ao caso da subtracção de coisas móveis transportadas em veíuclo e ao furtum usus, registando-se consequentemente uma eliminação pela lei da capacidade agravativa da circunstância de os objectos serem meramente deixados pela vítima no veículo, em atitude de afrouxamento no cumprir do seu dever de cooperar na prevenção.
  Afigura-se assim que o actual Código passou a fazer depender o efeito agravativo da circunstância genérica referente ao valor desses objectos.
  Conclui-se, pois, que não se verifica no caso concreto a considerada agravante qualificativa da alínea b) do n.° 1 do artigo 204.°”; (cfr., no mesmo sentido, e dando-se também como verificado o crime de “furto simples”, os Acs. do S.T.J. de 24.03.1999, Proc. n.° 1458/98; de 28.06.2000, Proc. n.° 259/2000; de 08.05.2003, Proc. n.° 857/03; 04.06.2003, Proc. n.° 03P1113; de 03.10.2003, Proc. n.° 03P3564; de 07.07.2004, Proc. n.° 1085/4 e de 29.10.2008, Proc. n.° 08P2881).

No (citado) Ac. do S.T.J. de 28.06.2000, (in C.J. VIII, Tomo II, pág. 230), consignou-se também que “o que se impõe saber é se quando a lei usa tal linguagem quer nela abranger todo e qualquer veículo, mesmo que seja particular, ou tão-somente o veículo de transporte público.
  O dispositivo legal sob análise não é de todo claro a esse propósito, pelo que importa indagar, dentro dos princípios de hermenêutica jurídica, se haverá que ser-se mais ou menos ampliativo ou restritivo da interpretação, sem esquecer, naturalmente,

que estamos no âmbito do direito penal onde tais princípios sofrem o desgaste das constrições e reservas impostas pela regra irrevogável da proibição de caminhos que conduzam à aplicação analógica de disposições legais, portanto violadores do princípio da legalidade (cfr., art. 1°, n° 3, do Cód. Penal).
  Num primeiro impulso não nos parece seguro que o legislador, para a recepção da qualificativa, se deixasse mover apenas e tão-só pela mera configuração do lugar da consumação do delito – o veículo automóvel.
  Na verdade, nada parece justificar que se majore a censura penal pelo simples facto de a subtracção incidir sobre uma viatura que se deixou estacionada em qualquer lugar público, quantas vezes sem os cuidados protectores que os bens nela deixados exigiram.
  Nada, efectivamente, se afigura mais consentâneo com as proposições da norma do que entender que o legislador pretendeu aí revalorizar criminalmente a conduta porque achou que só os transportes públicos – enquanto meios de locomoção postos ao serviço do povo com todas as garantias de segurança – mereceriam uma protecção mais eficaz e energética.
  Vistas as coisas por esse prisma, já não se justificaria tal protecção no “transporte particular”, onde a defesa dos bens e valores colocados ou transportados se reconduz a um universo restrito de interesses – o do dono ou utilizador – a ele se remetendo, pois, o encargo de lhes dar o resguardo devido.
  Este parece ser, de resto, o entendimento, de GUILHERMINA MARREIROS, ao defender que as circunstâncias agravantes levadas à al. b) do n.° 1, encontram a sua razão de ser na confiança que os transportes e lugares destinados à guarda de objectos merecem dos utentes em geral, não se justificando qualquer agravação quando a coisa furtada, embora em transporte, é pessoalmente levada pela vítima que detém sobre ela um domínio efectivo (cfr. “Revista do M°P°, 6° vol., 24, 101)”.

E, comentando igualmente a questão, afirma J. A. BARREIROS (in “Crimes Contra o Património”, pág. 53 e segs.) que a razão de ser da agravação a que se vem fazendo referência radica por um lado “na especial acessibilidade da coisa” e por outro lado na “tutela da confiança na segurança dos transportes colectivos e dos depósitos públicos”, sendo que a acrescida protecção legal é conferida à “função transportadora”.

Ora, certo sendo que o C.P.M. se inspirou no C.P português, afiguram-se-nos totalmente válidas tais considerações.

Por sua vez, atento o estatuído no art. 8° do C.C.M., e sabendo-se que o autor do projecto do C.P.M. não devia desconhecer tal questão, custa-nos a crer que, ainda assim, pretendendo incluir situações como a dos autos na circunstância qualificativa da al. b) do n.° 1 do art. 198°, tenha empregue a mesma redacção do preceito do C.P. português.

Aliás, cabe notar também que só aquando da alteração ao C.P. português introduzida pela Lei n.° 59/2007 de 04.09, (posterior ao C.P.M), se decidiu que em sede de qualificação do furto se devia “equiparar” a “colocação no interior de veículo”, ao “transporte de coisa”, aditando-se ao art. 204°, n.°1, al. b), a expressão “colocada” (cfr., v.g. os “Motivos justificativos” da Proposta de Lei n.° 98/X, e, tratando da questão, o Ac. da Rel. de Guimarães, de 16.03.2009, Proc. n.° 740/07.3).

Assim, em nossa opinião, e como temos vindo a entender, face à redacção do art. 198°, n.° 1, al. b) do C.P.M., o “furto de coisa em veículo” só deve ser qualificado quando a coisa subtraída se encontre numa “relação de transporte com o veículo”, (sem prejuízo de o valor da coisa poder, só por si, integrar outra qualificativa).

Macau, aos 15 de Março de 2012
José Maria Dias Azedo



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