Processo n.º 814/2011
(Recurso Cível)
Data : 22/Março/2012
ASSUNTOS:
- Penhora de bens futuros condicionais e aleatórios
SUMÁRIO:
Não é possível a penhora de um qualquer prémio de jogo que o devedor venha futura e eventualmente a receber mediante aposta que venha a efectuar em qualquer casa de jogo porque
- O legislador teve o cuidado de prever em termos de condicionalidade futura situações de expectativas jurídicas que não são integradas consensualmente pela situação em presença;
- Os outros créditos futuros, como seja a penhora de vencimentos ou salários, têm que ter na sua base uma relação jurídica subjacente que aponte para a probabilidade de a condição futura se verificar e surgir assim o direito a penhorar.;
- Daí resulta uma quase impossibilidade de efectivação da penhora dos bens ora requeridos, o que contraria a natureza de adequação e razoabilidade em termos de efectivação da penhora;
- Subverter-se-iam as regras da execução, implicando que a acção executiva estivesse aberta indefinidamente, à espera de um facto futuro, incerto e aleatório;
- Depois, não se vê razão para libertar o ónus do credor em identificar os bens a penhorar, mesmo no futuro, em sacrifício de entidades terceiras, onerando ainda o Tribunal com o encargo de controlar e realizar uma penhora com todos os custos, limitações e sacrifícios que lhe são inerentes.
O Relator,
João Gil de Oliveira
Processo n.º 814/2011
(Recurso Cível)
Data: 22/Março/2012
Recorrente: Melco Crown Jogos (Macau), S.A.
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Objecto do Recurso: Despacho que indeferiu parcialmente
o pedido de penhora dos bens
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. "MELCO CROWN JOGOS (MACAU), S.A.", mais bem identificada nos autos, vem interpor recurso do despacho de fls. 73 e 73v dos autos, restringido, porém, à parte em que a recorrente decaiu, ou seja, na parte em que foi indeferida a penhora das comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que em cada mês sejam devidas ao executado, enquanto promotor de jogo, e, bem assim, todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer apostas efectuadas pelo executado em jogos de fortuna ou azar em casino ou noutras áreas de jogo, bem como todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP junto de quaisquer concessionárias ou subconcessionárias autorizadas a explorar jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na RAEM e ainda os saldos de contas correntes de que o executado seja titular junto das Concessionárias.
Oportunamente, o despacho que não admitiu tais penhoras foi reparado na totalidade pelo Mmo Juiz recorrido, com a excepção das penhoras sobre os prémios das apostas de jogo efectuadas pelo executado, e, notificada a recorrente, veio dizer manter o seu recurso.
Alega, para tanto, em síntese conclusiva:
1. A Exequente, ora Recorrente, instaurou a presente execução em 26 de Julho de 2010, reclamando o pagamento de uma quantia de HKD$42,744,130.93 (quarenta e dois milhões, setecentos e quarenta e quatro mil, cento e trinta Dólares de Hong Kong e noventa e três cêntimos), equivalente a MOP$44, 111,943.12 (quarenta e quatro milhões, cento e onze mil, novecentas e quarenta e três Patacas e doze avos), acrescida de juros vincendos à taxa legal de 6%, desde aquela data até efectivo e integral pagamento e ainda custas.
2. Efectuada a citação edital e não tendo o Executado efectuado pagamento ou nomeado bens à penhora, veio a Exequente, por desconhecer quaisquer bens do Executado susceptíveis de responder pela dívida exequenda, requerer ao Tribunal que oficiasse as Conservatórias do Registo Predial e dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau e a Autoridade Monetária de Macau nos termos e para os efeitos indicados no seu requerimento de 6 de Maio de 2011.
3. Tendo tido conhecimento de que o Executado se encontrava a exercer a actividade de promotor de jogo e que era jogador VIP junto de outras Concessionárias, a Exequente veio ainda requerer ao Tribunal que oficiasse as referidas cinco Concessionárias para procederem à penhora das comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que em cada mês sejam devidas ao Executado enquanto promotor de jogo, e, bem assim, todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer apostas efectuadas pelo Executado em jogos de fortuna ou azar em casino ou noutras áreas de jogo, bem como todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP junto de quaisquer Concessionárias e ainda os saldos de contas correntes de que o Executado seja titular junto das Concessionárias.
4. Por despacho de fls. 73 e 73v dos autos, foi decretada a penhora dos saldos de contas bancárias e foi ordenado o pedido de informações às conservatórias, conforme requerido.
5. Foi, porém, indeferida a penhora das comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração devidas ao Executado enquanto promotor de jogo, dos ganhos ou prémios resultantes de quaisquer apostas efectuadas pelo Executado em jogos de fortuna ou azar em casino ou noutras áreas de jogo, e dos ganhos ou prémios resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP junto de quaisquer Concessionárias e ainda os saldos de contas correntes de que o Executado seja titular junto das Concessionárias.
6. Um dos fundamentos invocados pelo Tribunal a quo para o supra referido indeferimento foi a insuficiência na identificação dos bens a penhorar.
7. No entanto, a Exequente forneceu ao Tribunal toda a informação que, razoavelmente poderia fornecer, nos termos do n.º 1 do artigo 121.º do CPC.
8. Quanto às Comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que sejam devidas ao Executado enquanto promotor de jogo, estas resultam de uma actividade que consiste em "promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária" (artigo 2.° do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, alterado pelo Regulamento Administrativo n.° 27/2009), podendo incluir a concessão de crédito para jogo em casino (Lei n.º 5/2004).
9. Tal actividade é exercida nos termos de contratos escritos de promoção de jogo celebrados entre os promotores de jogo e uma das seis Concessionárias, sendo fixado em tais contratos o montante das comissões a que os promotores têm direito e a data do seu vencimento.
10. Quanto às comissões que sejam auferidas pelo Executado enquanto jogador VIP, estas resultam de uma prática na indústria do jogo em Macau, e conhecida de todas as seis Concessionárias, de remunerar os jogadores VIP através de uma comissão acordada entre o jogador VIP e a respectiva Concessionária, atribuída em função do volume de fichas apostado nos casinos e áreas de jogo operados pela respectiva Concessionária.
11. Os ganhos e prémios de jogo auferidos pelo Executado emergem das apostas realizadas pelo mesmo em jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na RAEM, junto das Concessionárias e das respectivas salas VIP.
12. Os saldos de todas as contas correntes de que o Executado seja titular junto das Concessionárias e das respectivas salas VIP são depósitos efectuados pelo jogador junto das Concessionárias.
13. Do supra exposto decorre que em qualquer dos casos, o devedor dos referidos direitos de crédito do Executado é uma das cinco Concessionárias, que a Exequente listou e identificou no seu requerimento de 6 de Maio de 2011.
14. A natureza e origem dos referidos créditos resultam também da descrição dos mesmos feita pela Executada no requerimento de 6 de Maio de 2011.
15. No que respeita ao montante, o título e a data do vencimento dos créditos, bem se compreende que a Exequente não tenha acesso a esta informação, uma vez que: esta não é do conhecimento público; nem, in casu, podia ser disponibilizada pelo Executado, pois este não foi sequer encontrado pelo tribunal para efeitos de citação pessoal; e não é voluntariamente prestada pelo respectivo devedor, por se tratar de uma, ou várias, Concessionárias, que não partilham esse tipo de informação, conforme, bem, concluiu o Tribunal a quo.
16. Assim, não restam dúvidas de que a Exequente identificou "tanto quanto possível" os direitos de crédito que nomeou à penhora, tendo solicitado ao tribunal que oficiasse as cinco Concessionárias com vista à identificação dos montantes, títulos e datas de vencimento dos créditos em questão.
17. A ausência de especiais dificuldades na efectivação das penhoras requeridas pela ora Recorrente pode ser comprovada pelo facto de esta ter já sido decretada em termos semelhantes aos ora requeridos, pelos tribunais da RAEM, sem que tal tenha atrasado ou criado complicações ao normal desenrolar da execução.
18. Acresce que, no seu requerimento de 6 de Maio de 2011, a Exequente veio ainda alegar não ter "conhecimento de como as referidas concessionárias e subconcessionárias efectuam o pagamento das comissões ou outras formas de remuneração resultantes da actividade desenvolvida pelo executado enquanto promotor de jogo, nem como efectuam o pagamento dos eventuais ganhos ou prémios resultantes de quaisquer apostas efectuadas em jogos de fortuna ou azar em casino ou noutras áreas de jogo, ou resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP".
19. Com isto, ficaram alegadas as dificuldades enfrentadas pela Exequente numa mais detalhada identificação dos créditos nomeados à penhora, as quais são de fácil percepção, conforme se admite no próprio despacho recorrido, pelo que incumbe ao juíz, no caso sub judice, determinar a realização das diligências adequadas à identificação ou localização de bens penhoráveis do Executado.
20. Fica assim também demonstrado, no modesto entendimento da ora Recorrente, que o tribunal a quo incorreu em erro de interpretação do n.º 1 do artigo 721.° e do n.º 1 do artigo 722.°, ambos do CPC.
21. No entendimento do Tribunal a quo o que a Exequente nomeou à penhora não são créditos, nem expectativas de aquisição, penhoráveis nos termos do artigo 747.° do CPC.
22. A pedra de toque do conceito de direito de crédito é a faculdade de exigir de outrem certa prestação.
23. Analisando, em primeiro lugar, as comissões eventualmente devidas ao Executado em resultado da sua actividade de promotor de jogo, verifica-se que sempre que o Executado exerça a referida actividade junto de uma Concessionária, tem o direito, contratualmente estipulado, ao pagamento da respectiva comissão, pelo que não restam dúvidas de que o Executado tem um direito de crédito para com a Concessionária que é, nos termos das supra citadas normas legais, susceptível de penhora.
24. Quanto às comissões que sejam atribuídas ao Executado enquanto jogador VIP junto das Concessionárias e respectivas salas VIP, as quais são previamente acordadas entre o jogador e a respectiva Concessionária, ao efectuar determinado volume de apostas enquanto jogador VIP, o Executado tem a faculdade de exigir o pagamento da comissão acordada, pelo que também não restam dúvidas que se trata de um direito de crédito e, enquanto tal, sujeito a penhora.
25. No que diz respeito aos ganhos e prémios de jogo, estamos ainda perante direitos subjectivos do Executado, uma vez que os ganhos resultantes das apostas por si realizadas em jogos de fortuna ou azar geram na sua esfera jurídica a faculdade de exigir à respectiva Concessionária o pagamento de determinada quantia.
26. Relativamente aos saldos das contas correntes relativas aos depósitos efectuados pelo Executado junto das Concessionárias, também estes constituem direitos de crédito sobre a respectiva Concessionária e são penhoráveis em termos semelhantes à penhora de saldos de contas bancárias.
27. Por todo o exposto, as situações jurídicas nomeadas à penhora pela Executada, ora Recorrente, constituem direitos de crédito e são, em consequência, penhoráveis.
28. Sucede que foi indeferido o pedido da Exequente, ora Recorrente, de envio de oficias às Concessionárias, com vista à identificação dos precisos termos destes direitos de crédito.
29. Ora, o desconhecimento dos termos precisos de um direito por determinado sujeito não torna esse direito num não-direito.
30. Atento o exposto, improcede a argumentação do despacho recorrido na parte em que afirma que "o que a Exequente nomeou à penhora, não são créditos".
31. Por outro lado, a decisão recorrida afirma que o que a Exequente nomeou à penhora "não são ainda expectativas de aquisição"
32. No entanto, a Exequente não nomeou à penhora quaisquer expectativas jurídicas, mas sim os concretos direitos de crédito, sempre que estes existam e assim que se encontrem constituídos.
33. Assim, salvo o devido respeito, deve ser descartado, por irrelevante, o argumento segundo o qual as comissões e ganhos ou prémios de jogo nomeados pela Exequente à penhora não constituem expectativas de aquisição.
34. Fica assim demonstrado, no modesto entendimento da ora Recorrente, que o tribunal a quo incorreu em erro de interpretação dos artigos 742.º e 747.°, ambos do CPC.
Termos em que, pede, deve o despacho de fls. 73. e 73v proferido nos autos ser substituído na parte em que indeferiu a penhora das comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que em cada mês sejam devidas ao executado enquanto promotor de jogo, e, bem assim, todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer apostas efectuadas pelo executado em jogos de fortuna ou azar em casino ou noutras áreas de jogo, bem como todos os ganhos ou prémios resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP junto de quaisquer concessionárias ou subconcessionárias autorizadas a explorar jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na RAEM e ainda os saldos de contas correntes de que o executado seja titular junto das referidas concessionárias e subconcessionárias, por outro que ordene a penhora sobre os referidos direitos.
2. Este recurso não foi contra alegado.
3. Entretanto, o despacho recorrido veio a ser reparado, passando o Mmo Juiz a quo a admitir a penhora sobre todos os indicados bens, à excepção dos ganhos e prémios de jogo,
4. Foram colhidos os vistos legais.
II - Despachos proferidos e objecto de recurso
É do seguinte teor o despacho proferido e objecto de recurso:
“I - Solicite as informações requeridas no ponto 2 de fls. 72.
II - Proceda à penhora dos saldos de contas bancárias nomeados, na forma habitual (através da AMCM).
III - Quanto aos direitos de crédito nomeados à penhora.
O exequente ao nomear bens à penhora deve identificar, tanto quanto possível, os bens a penhorar. Tratando-se de créditos deve identificar o devedor, o montante, a natureza e a origem da dívida, o título de que conste e a data de vencimento (art. 721º do Código de Processo Civil). Sempre que, justificadamente, o exequente alegue dificuldade na identificação dos bens a nomear poderá requerer a intervenção do tribunal com vista a obter os elementos necessários à nomeação (art. 722º do Código de Processo Civil).
A exequente nomeou direitos de crédito sem os identificar nos termos atrás referidos e sem ter pedido a intervenção do tribunal com vista a obter tal identificação. Não alegou dificuldades em identificar os bens nomeados, tendo referido desconhecer a forma como os créditos nomeados são pagos pelo devedor do executado. No entanto, intuem-se com facilidade as dificuldades não alegadas, pois os devedores dificilmente revelarão à exequente as suas relações contratuais com o executado. Só que a nomeação de bens à penhora não pode ser feita em termos tão genéricos como a exequente requereu. E bem se compreende que assim seja, pois dificultaria enormemente a execução da penhora e traria desnecessariamente para a execução inúmeras questões em sede de oposição à Penhora, embargos de terceiro, etc. Acresce que, na realidade, o que a exequente nomeou à penhora, não são créditos. Nem são ainda expectativas de aquisição, penhoráveis nos termos do art. 747º. Os prémios das apostas que o executado venha porventura a fazer não são neste momento penhoráveis por ainda não poderem qualificar-se de expectativas de aquisição. E o mesmo se diga quanto às retribuições do executado enquanto promotor de jogo, às comissões que venha a receber "enquanto jogador VIP" e às verbas a inscrever a crédito em eventuais contratos de conta corrente que mantenha com "concessionárias/subconcessionárias e respectivas salas VIP". Na verdade só são penhoráveis realidades que possam, no mínimo, considerar-se expectativas jurídicas por tais expectativas já merecerem a tutela do direito. Ora, os prémios de jogo que a sorte há-de atribuir ao executado em apostas que eventualmente venha a fazer nas mesas de jogo, as retribuições que consiga por angariar jogadores, assim Como os demais "créditos" nomeados, não são ainda expectativas jurídicas, pelo que não têm tutela do direito de forma que já possam ser penhorados enquanto expectativas de aquisição.
Pelo exposto, indefere-se, nesta parte, a penhora requerida. “
E do seguinte teor o despacho de sustentação/reparação (art. 617°, n.º 2 do C.P.C.):
“A exequente Melco Crown Jogos (Macau) S.A. recorre do despacho proferido a fls. 73 dos autos de execução apensos, o qual decidiu não ordenar a penhora dos seguintes bens para tanto nomeados:
a) - comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que mensalmente sejam devidas ao executado enquanto promotor de jogo pelas "operadoras" de jogo em casino;
b) - ganhos ou prémios que o executado obtenha em apostas que faça como jogador nos jogos de fortuna ou azar em que participe;
c) - ganhos ou prémios resultantes de quaisquer comissões auferidas enquanto jogador VIP;
d) - todas as contas correntes de que o executado seja titular junto das concessionárias/subconcessionárias e respectivas salas VIP.
Os fundamentos do despacho recorrido são a insuficiência na identificação dos bens e a impenhorabilidade dos que não chegam a atingir a categoria de direitos de crédito nem de expectativas de aquisição.
Nas suas alegações de recurso vem a recorrente, entre o mais, esclarecer a natureza e a forma de remuneração dos promotores de jogo como o executado; a forma de "remuneração" dos jogadores VIP pelo volume de fichas que apostam; que as contas correntes nomeadas à penhora são providas pelo executado através de depósitos e que tudo tem por base uma relação contratual prévia entre o executado e as "concessionárias". Mais, veio informar e juntar prova documental suficiente que noutro processo executivo que corre neste tribunal foi executada sem dificuldades a penhora das comissões de jogo e de outras formas de remuneração das ali executadas, enquanto promotoras de jogo.
Tendo em conta o teor das alegações de recurso, nomeadamente a parte em que esclarece e completa o requerimento de nomeação de bens à penhora, nos termos do disposto no art. 617°, n.º 2 do Código de Processo Civil, não tendo a decisão recorrida conhecido do mérito da causa, repara-se parcialmente a mesma, no sentido de a substituir por despacho a ordenar a penhora de alguns dos bens nomeados e agora melhor especificados, mantendo-se a mesma quanto aos restantes, porquanto se conclui que a manutenção integral causaria agravo aos direitos da recorrente. Com efeito considera-se agora após as alegações de recurso ultrapassada a insuficiência na identificação regulada no art. 721° do Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à natureza, origem e título dos créditos nomeados.
No entanto, no que diz respeito aos prémios que o executado eventualmente venha a obter em apostas que eventualmente faça no jogo e que venham a ser premiadas, continua a considerar-se que são impenhoráveis porquanto não podem ser consideradas, neste momento, direitos de crédito ou sequer expectativas de aquisição. Além disso, embora não possa servir de critério de decisão, continua a suspeitar-se de grande dificuldade na execução da penhora, bastando pensar que o executado poderá deslocar-se livremente e a todo o tempo de local, mesa e máquina de jogo, assim hipoteticamente disseminando no tempo e no espaço as apostas vencedoras a penhorar.
Pelo exposto:
I - repara-se parcialmente a decisão recorrida e substitui-se a mesma, ordenando-se a penhora dos seguintes bens nomeados:
a) - comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que mensalmente sejam devidas ao executado enquanto promotor de jogo pelas concessionárias e subconcessionárias de jogo em casino;
b) - comissões auferidas enquanto jogador VIP;
d) - saldos favoráveis ao exequente de contas correntes de que o mesmo seja titular junto das concessionárias/subconcessionárias e respectivas salas VIP.
II - mantém-se pelos fundamentos que dela constam e que supra se reafirmaram, a decisão recorrida na parte em que indefere a penhora dos prémios das apostas vencedoras que o exequente venha a fazer em jogos de fortuna ou azar.
Notifique e aguarde o decurso do prazo a que se refere o n° 3 do art. 618º do Código de Processo Civil.
Decorrido tal prazo e caso o recorrido nada diga, junte aos autos de execução cópia deste despacho para ser cumprido na parte em que determina a penhora e remeta os presentes autos ao Venerando Tribunal de Segunda Instância para conhecimento do recurso na parte respeitante à decisão recorrida que foi sustentada.
Caso o recorrido se pronuncie nos termos do referido normativo, conclua os presentes autos. “
III - FUNDAMENTOS
1. A partir do momento em que o Mmo Juiz a quo reparou o seu despacho de indeferimento da penhora, num primeiro momento, sobre bens do executado, promotor de jogo, a saber
- Comissões de jogo e quaisquer outras formas de remuneração que sejam devidas ao Executado enquanto promotor de jogo;
- Comissões que sejam auferidas pelo Executado enquanto jogador VIP;
- Ganhos e prémios de jogo auferidos pelo Executado; e
- Saldos de todas as contas correntes de que o Executado seja titular junto das Concessionárias e das respectivas salas VIP,
passando a admiti-la (a penhora) sobre todos os indicados bens, à excepção dos ganhos e prémios de jogo, importa a apreciar se tais bens são penhoráveis.
Perante a reparação do Mmo Juiz foi a parte notificada para dizer se mantinha o seu recurso, insistindo ela na sua pretensão.
O que está apenas em causa, portanto, são apenas os ganhos e os prémios das apostas de jogo que o executado tenha efectuado.
2. Perante a pertinácia da recorrente e a nebulosidade da situação, vamos procurar ser claros.
Desde logo temos alguma dificuldade em identificar o objecto da penhora pretendida: trata-se dos prémios das apostas já efectuadas ou das apostas que venham a ser realizadas no futuro?
A recorrente não o explicita. Se se trata dos prémios já ganhos, aí, embora estranhando por que razão o pagamento ainda está pendente, não vemos razão para que não haja penhora sobre eles; se se trata de apostas futuras, aí a coisa muda de figura.
Torneando a dificuldade de um promotor de jogo poder ele próprio jogar, vamos admitir que sim - a experiência dos tribunais ensina-nos que muitas vezes pode ele jogar pelos clientes e com o dinheiro deles -, sem embargo da dificuldade em identificar o beneficiário do prémio da aposta realizada. Mas vamos admitir que se identifica perfeitamente o jogador, o beneficiário do prémio, a comissão paga ao promotor e que tudo se mostra claríssimo nesse intrincado mundo em que se move o jogo a esse nível.
Bom, as comissões devidas ao executado estão fora do objecto de recurso, pois está consentida a sua penhora.
O que está realmente em jogo são os ganhos e os prémios resultantes da condição de o executado jogar e, pior do que isso, - pois que a penhora de bens futuros e condicionais acontece a cada passo (lembremo-nos das penhoras dos prémios dos jogadores de futebol, por exemplo, ou dos simples salários que só são penhoráveis se se mantiver a relação de trabalho) ) - é a penhora incidente sobre a álea que decorre ainda da sorte ao jogo.
3. O Tribunal a quo invocou como fundamentos para o supra referido indeferimento:
i) a insuficiência na identificação dos bens a penhorar, por aplicação do artigo 721.º do CPC;
ii) dificuldade na efectivação da penhora "em termos tão genéricos como a exequente requereu;
iii) "não ter a recorrente alegado dificuldades em identificar os bens nomeados;
e iv) o facto de a recorrente ter requerido a penhora de realidades que não constituem direitos de crédito nem sequer expectativas de aquisição, penhoráveis nos termos do artigo 747.º do CPC.
A recorrente defende - e nesse ponto está de acordo com o Mmo Juiz - de que se não trata de expectativas de créditos, mas que se trata de direitos. Ficamos sem saber se profere esta afirmação referindo-se à concretização de apostas já efectuadas e portanto verifica-se já um direito que o devedor, a concessionária ou casa de jogo tem o dever de satisfazer.
Será que a exequente pretende dizer que se trata de direitos futuros, incertos, condicionais e aleatórios?
Vamos deixar, por ora, esta questão
4. Quanto à insuficiência da identificação, a recorrente diz que os bens a penhorar estão perfeitamente identificados, tanto quanto é possível à exequente, tendo até esta informado o Tribunal do desconhecimento dos procedimentos tendentes aos diferentes pagamentos aos promotores de jogo, apontando para casos análogos em que o desconhecimento na identificação de contas bancárias não impede que o tribunal supra esses insuficiências não imputáveis ao credor e que se pretende ver ressarcido à custa do património do executado.
Sendo legítima esta argumentação, crê-se não estar em causa uma falta de identificação dos bens a penhorar, passe, embora, a falta de clareza quanto a determinação dos bens a que exequente se reporta, face às dúvidas acima expostas.
5. Quanto à dificuldade de realização da penhora, diz a recorrente, mas referindo-se a todos os bens sobre os quais fora indeferida, num primeiro momento, que a dificuldade de tal apreensão se trata de um falso argumento, pois que tais bens, noutras situações, em muitos outros casos, já foram penhorados, não sendo a dificuldade invocada razão de impedimento da sua efectivação.
Trata-se, ainda aí, de uma afirmação abrangente das diferentes categorias de bens nomeados à penhora, pelo que essa argumentação não se mostra decisiva no sentido de afastar a penhora do núcleo em presença, pois que não se nos dá conta de penhoras anteriores de tal natureza, ou seja, sobre os prémios das apostas que eventualmente venham a ser efectuadas pelo exequente.
6. Posto isto, importa avançar e dilucidar esta questão que não se nos afigura fácil, na medida em que a exequente insiste sobre a penhora de todo e qualquer prémio de aposta de jogo que venha a ser feita em Macau, sendo certo que foi este o alcance da pretensão vertido na sentença recorrida, permanecendo, face ao texto da recorrente, repete-se, a interrogação já acima produzida, se pretende os prémios já ganhos ou aqueles que venha a ganhar.
Vamos partir do princípio de que se trata das apostas futuras, sendo esse o alcance dado pela sentença à pretensão da requerente e não impugnado nas alegações de recurso - “... prémios que o executado eventualmente venha a obter em apostas que eventualmente faça no jogo e que venham a ser premiadas continua a considerar-se que são impenhoráveis...”. Isto, por um lado; por outro, frise-se, de novo, não se compreendendo que o recebimento dos prémios de jogo ainda estivesse pendente.
Aliás só esses prémios futuros geram polémica.
A não se poder optar por qualquer das alternativas em aberto sempre cairíamos numa situação de indefinição ou indeterminação do objecto da penhora, necessariamente conducente ao indeferimento do pedido de penhora por ininteligibilidade do mesmo.
7. Parece ainda ambíguo o sentido da alegação da requerente, enquanto diz, por um lado:
“No que diz respeito aos ganhos e prémios de jogo, no entender da Recorrente, estamos ainda perante direitos subjectivos do Executado, uma vez que os ganhos resultantes das apostas por si realizadas em jogos de fortuna ou azar geram na sua esfera jurídica a faculdade de exigir à respectiva Concessionária o pagamento de determinada quantia. Apesar de na sua génese se encontrar um acto aleatório, uma vez verificado o ganho resultante da aposta efectuada, o direito a receber o prémio nasce na esfera jurídica do Executado com natureza idêntica à de qualquer outro direito de crédito.”
Por outro
“Ora, a Exequente não nomeou à penhora quaisquer expectativas jurídicas, mas sim os concretos direitos de crédito, sempre que estes existam e assim que se encontrem constituídos.”
8. O artigo 704.° do CPC (Código de Processo Civil) prescreve que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda.
Por sua vez, o artigo 596.° do Código Civil (CC) estipula que "pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios".
A penhora de créditos encontra-se regulada no artigo 742.° do CPC e a penhora de direitos e expectativas de aquisição no artigo 747.° do CPC.
No entendimento do Tribunal a quo o que a exequente nomeou à penhora não são créditos, nem expectativas de aquisição, penhoráveis nos termos do artigo 747.° do CPC.
Contrapõe o exequente dizendo que se trata de direitos.
9. Quanto à possibilidade de penhora de coisas ou créditos futuros como integrantes do património futuro do devedor parece não haver dúvidas, em tese, para a sua admissibilidade.
A penhora pode recair sobre bens futuros, isto é, sobre bens que, no momento em que a penhora é ordenada, ainda não pertencem ao executado (cfr. 202º do CC); é o que sucede quando se penhoram salários, vencimentos do executado, rendimentos futuros de uma sala de cinema.1
Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, tal como resulta do disposto no artigo 596º do CC e não há que distinguir entre os bens existentes no património do devedor à data da constituição da obrigação e os que de futuro lhe venham a pertencer.2
Admitamos que se consideram como adquiridos posteriormente, não só os que o sejam depois da constituição da obrigação, mas mesmo depois de ordenada a penhora.
Isto que se vem dizendo é igualmente válido para os créditos futuros.3
10. O ponto está em saber se podem ser penhorados créditos futuros condicionais.
Repare-se que em relação a algo que tem uma base mais sustentável, qual seja a que resulta de meras expectativas, o legislador foi mais cauteloso e não se eximiu a consagrar a possibilidade expressa de penhora das expectativas de aquisição no artigo 747º, n.º 1 do CPC, entendidas estas, em sentido amplo, como todas as situações jurídicas que permitem a aquisição de bens.
Não interessa aqui desenvolver o tema.
Retomando a possibilidade de penhora de créditos condicionais, Alberto dos Reis dá-nos conta da polémica, já à data existente em Itália, sobre tal possibilidade, informando-nos que o Tribunal de Cassação de Florença não admitia a penhora de créditos condicionais, pois tal crédito não existe enquanto não se verificar a condição, combatendo Mattirollo, com razão, segundo o tratadista primeiramente citado, tal Jurisprudência.4
11. Começa aqui a fazer-se luz sobre esta questão, só aparentemente simples, tudo apontando para a impossibilidade de se penhorarem prémios de jogo, entendidos como créditos futuros, mas mais do que condicionais, perfeita e totalmente aleatórios.
Assim, nesse sentido, alinhavaremos o seguinte:
11.1. O legislador teve o cuidado de prever em termos de condicionalidade futura situações de expectativas jurídicas que não são integradas consensualmente pela situação em presença.
11.2. Os outros créditos futuros, como seja a penhora de vencimentos ou salários, têm que ter na sua base uma relação jurídica subjacente que aponte para a probabilidade de a condição futura se verificar e surgir assim o direito a penhorar. Neste sentido, parece, o pensamento de Miguel Teixeira de Sousa, ao dizer “também são penhoráveis créditos futuros, embora se deva exigir que entre o executado e o terceiro devedor já esteja constituída a relação jurídica que serve de fundamento ao crédito, pois que, de outro modo, além da incerteza quanto à sua constituição, seria impossível individualizá-lo quanto aos sujeitos e objecto.” 5
11.3. Do formalismo da realização da penhora de direitos - art.º 742º do CPC - resulta uma quase impossibilidade de efectivação da penhora dos bens ora requeridos, o que contraria a natureza de adequação e razoabilidade em termos de efectivação da penhora, tornando mui difícil, se não impossível, a sua concretização. Como garantir que todo e qualquer prémio de jogo de fortuna ou azar, a auferir em qualquer casa de jogo ou casino em Macau - note-se que não se faz qualquer reserva ou limitação em função de modo, tempo e lugar de jogo -, pode razoavelmente ser penhorado, seja por impossibilidade de controle e identificação dos jogadores, seja por sujeitar, eventualmente, entidades terceiras a um controle irrazoável da actividade de jogo do executado?
11.4. Quase que apetece perguntar por que não penhorar o dinheiro das apostas em si - sabendo-se que estas tanto podem ir de umas tantas patacas a milhões - e por que razão esperar pelo desfecho da sorte que bem pode ser, é, na maior parte dos casos, uma perda do apostado.
Isto, só para referir que o que se pretende não faz sentido e o Tribunal não deve pactuar com situações irrazoáveis.
11.5. Depois, dessa forma, subverter-se-iam as regras da execução, implicando que a acção executiva estivesse aberta indefinidamente, à espera de um facto futuro, incerto e aleatório, não se vendo razão para que qualquer credor não passasse a nomear à penhora quaisquer direitos resultantes de eventuais créditos salariais, negociais ou outros que resultassem de quaisquer relações jurídicas que o executado viesse a celebrar com toda e qualquer pessoa de Macau. Parece um argumento absurdo, mas permitir a penhora de tais bens é deixar aberta a porta a uma situação desse teor. Nem se diga que no caso presente há uma ligação do executado ao jogo; também um desempregado tem ligação, na demanda do emprego, a qualquer tipo de actividade ou de trabalho que entenda por bem poder vir a desenvolver.
Ora, seguramente, não é isto que se pretende com a acção executiva. A protecção do credor merece todo o respeito e atenção, mas não se podem subverter as regras do jogo que se traduzem, em sede de execução de bens, na adequação, proporcionalidade, razoabilidade e apreensibilidade dos bens.
Tanto mais que há mecanismos e regras próprias que podem garantir atempadamente a posição do credor.
11.6. Depois, não se vê razão para libertar o ónus do credor em identificar os bens a penhorar, mesmo no futuro, em sacrifício de entidades terceiras, onerando ainda o Tribunal com o encargo de controlar e realizar uma penhora com todos os custos, limitações e sacrifícios que lhe são inerentes.
Por todas estas razões somos a julgar improcedente o presente recurso.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 22 de Março de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, 229
2 - P. Lima e A. varela, CCA I, 4ª ed., 617
3 - Teixeira de Sousa, ob. cit. 265
4 - Processo de Execução, 2º, Reim., 1985, 190
5 - .Ob. cit. 265
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814/2011 1/25