打印全文
Proc. nº 632/2011
(Autos de recurso civil e laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Março de 2012
Descritores:
-Sigilo bancário
-Dever de cooperação
-Documentos em poder de terceiro


SUMÁRIO
I- O direito ao sigilo bancário não é absoluto e deve ceder perante o direito assegurado pelo Estado de acesso à justiça em função da contingência do caso concreto.
II- Requerida pela parte a cooperação do tribunal no sentido de que este notifique um terceiro para a entrega de documentos em seu poder (arts. 8º e 458º do CPC), mesmo que se trate de entidade bancária, deve o tribunal satisfazer o pedido, a não ser que expressamente declare que eles não são úteis e interessantes à decisão da causa, ficando ao Banco relegado o exercício de negação do dever para, posteriormente, o tribunal cumprir a tarefa de apreciar a legitimidade da recusa ao abrigo do art. 442º, nº3 e 4, do CPC.












Proc. Nº 632/2011


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, alegando ser arrendatário da fracção imobiliária que constituía o objecto da execução para entrega de coisa certa pendente no TJB, deduziu embargos de terceiro, pedindo a suspensão da execução e da diligência de entrega do imóvel.
Requeria ainda o embargante que o tribunal notificasse o Banco da China para juntar aos autos os comprovativos dos depósitos efectuados por si para pagamento das rendas da fracção em causa e efectuados à ordem do Senhor XXX, aliás XXX, também conhecido por XXX ou XXX ou opor XXX ou ainda XXX desde 1974 até Outubro de 1994.
*
Contestou o embargado XXX pugnando pela improcedência dos embargos.
*
Após a réplica, e já na fase de produção de prova, insistiu o embargante na realização da diligência inicialmente requerida junto do Banco da China e requereu diligência semelhante junto do BNU com vista à demonstração dos depósitos após Outubro de 1994 até à actualidade.
Foi, porém, proferido o despacho de fls. 91 vº e 92, que, entre o mais, indeferiu o pedido de realização das referidas diligências.
*
Desse despacho o embargante interpôs recurso jurisdicional, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
“I - O requerimento de prova apresentado pelo requerente não implica uma intromissão na vida privada e/ou violação do segredo profissional atenta a natureza dos depósitos em discussão.
II - O requerimento apresentado não justifica um qualquer pedido de escusa por parte dos bancos em prestar os esclarecimentos solicitados atenta a natureza dos depósitos efectuados uma vez que não implica uma intromissão na vida privada e/ou violação do segredo profissional.
III - O recorrente pretende apenas socorrer-se de documentos em poder de terceiro nos termos da lei processual civil (cfr. 442.º do CPC) e não ao levantamento do sigilo bancário como entendido, erradamente, pelo despacho recorrido com vista à produção dos factos por si alegados em sede de contestação.
IV - Ao recorrente assiste o direito de requerer, nos termos da lei processual civil, a prestação de esclarecimentos por parte de terceiro, no caso o Banco da China e o BNU não podendo tal possibilidade ser impedida pelo Tribunal a quo com o fundamento de que se trata uma intromissão na vida privada atenta a natureza dos depósitos efectuados”.
*
Não houve contra-alegações.
*
Foi posteriormente proferida sentença, que julgou improcedentes os embargos.
*
É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso pelo embargante, tendo nele formulado as seguintes conclusões alegatórias:
“I. Entendeu o douto Tribunal a quo que nos presentes autos de Embargo de Terceiro não ficou provada a qualidade de arrendatário da fracção autónoma designada por Xº andar “X”, do prédio sito em Macau, RAE, na Avenida XXX, n.º 38, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 20859 a fls. 37 do livro B46 e inscrita a favor do Embargado sob o n.º 87352G, outrora designada por Xº andar “X” do Edifício XX (Xa Fase) da Avenida XXX, n.º XX (XXX大馬路XX號XX第X期大廈X樓X前座), julgando-os assim improcedentes;
II. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende o Recorrente que o Mmo. Juiz a quo, ao decidir como decidiu, fez uma errada interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis in casu;
III. Da audiência de discussão e julgamento resultou provado que a mãe do ora Recorrente reside na fracção autónoma designada por Xº andar “X”, do prédio sito em Macau, RAE, na Avenida XXX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 20859;
IV. Resultou ainda provado que as rendas têm vindo a ser pagas desde 06 de Setembro de 1994 até ao presente, por meio de depósitos quer no Banco da China, Macau Branch, quer no Banco Nacional Ultramarino em nome do Senhor XXX aliás XXX (XXX);
V. O Senhor XXX, aliás XXX (XXX), era o anterior proprietário da fracção autónoma em causa e é pai do embargado, ora Recorrido;
VI. Não obstante a matéria de facto dada como provada, entendeu o Mmo. Juiz a quo que tais pagamentos não consubstanciam a existência de um contrato de arrendamento fundamentando para tanto que não se pode extrair do pagamento das rendas qualquer relação contratual entre o embargante, ora Recorrente e o proprietário da mesma fracção autónoma;
VII. A fracção autónoma em causa nos autos é a residência da mãe do ora Recorrente que nela reside desde 1970 e onde o Recorrente também reside quando não precisa de se ausentar de Macau, por motivos profissionais;
VIII. Pese embora apenas tenham resultado provados os depósitos efectuados desde 06 de Setembro de 1994 até à presente data, o certo é que, desde 1970 que as rendas da fracção autónoma em causa nos autos têm vindo a ser pagas pelo Recorrente através de depósitos efectuados desde 1970;
IX. Tais factos só não resultaram provados nos presentes autos porquanto entendeu o Tribunal a quo indeferir o pedido do Recorrente para que fosse notificado o Banco da China para vir aos autos juntar os comprovativos dos depósitos efectuados para pagamento das rendas da referida fracção autónoma no período compreendido entre 1970 e Outubro de 1994, despacho do qual foi interposto recurso, tendo sido o mesmo admitido com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 106), sendo que as respectivas alegações deram entrada no Tribunal no passado dia 27 de Outubro de 2010;
X. Quando o Recorrente tomou de arrendamento a fracção autónoma em causa nos autos em 1970, estava em vigor o Decreto nº 43525 de 07 de Março de 1961 do Ministério do Ultramar, Direcção-Geral da Justiça;
XI. Nos termos do art. 8º do referido diploma legal, pese embora a exigência de título escrito, o arrendamento seria reconhecido em juízo, por qualquer outro meio de prova, quando se demonstrasse que a falta era imputável ao senhorio ou ao arrendatário e, neste caso, só seria admissível a alegação quando acompanhada do recibo de renda, passado por quem tivesse direito ao gozo do prédio ou pelo seu representante e que o selo em caracteres chineses usado pelo senhorio ou pelo seu cobrador valeria como assinatura no recibo;
XII. Ainda nos termos daquele art. 8º do mesmo diploma, equivaleria ao recibo o depósito feito dentro dos três meses posteriores ao vencimento da primeira renda, desde que não fosse impugnado ou a impugnação improcedesse;
XIII. No entender do Recorrente, o recibo da renda referente ao período de 04 de Setembro de 1994 a 03 de Outubro de 1994, junto ao apenso de Embargos de Terceiro a fls. 10, bem como todos os restantes documentos comprovativos dos depósitos das rendas efectuados após Outubro de 1994 até ao presente junto do Banco Nacional Ultramarino em nome do Senhor XXX aliás XXX (XXX), são meios probatórios bastantes para a prova da existência de um vínculo contratual entre o então proprietário da fracção e o ora Recorrente;
XIV. Tais depósitos nunca foram impugnados por quem quer que fosse, equivalendo, por isso, os mesmos aos recibos das rendas;
XV. O Meritíssimo Juiz a quo andou mal ao não ter reconhecido a existência de uma relação contratual de arrendamento entre o Recorrente e o Recorrido, e bem assim a sua qualidade de arrendatário da fracção autónoma em causa nos autos, nos termos do disposto nos nºs. 1 e 2 do art. 8º do Decreto nº 43525 de 07 de Março de 1961 do Ministério do Ultramar, Direcção-Geral da Justiça, bem como do art. 21 º da Lei nº 12195/M de 14 de Agosto e do art. 1032º do actual Código Civil;
XVI. Ao ter decidido como decidiu, o Meritíssimo Juiz a quo violou o disposto no art. 8º do Decreto nº 43525 de 07 de Março de 1961 do Ministério do Ultramar, Direcção-Geral da Justiça, bem como no art. 21º da Lei nº 12195/M de 14 de Agosto e no art. 1032º do actual Código Civil;
XVII. Deverá assim o Venerando Tribunal de Segunda Instância, revogar a sentença ora posta em crise e substitui-la por outra, na qual seja reconhecido o vínculo contratual de arrendamento entre o Recorrente e o Recorrido bem assim a sua qualidade de arrendatário da fracção autónoma designada por Xº andar “X”, do prédio sito em Macau, RAE, na Avenida XXX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 20859 ao Recorrente, e, consequentemente, decidir pela procedência dos embargos de terceiro”.
*
O embargado respondeu ao recurso, nos seguintes termos conclusivos:
“ a) O Embargante, ora Recorrente, nos autos de Embargos de Terceiros, suscitou a suspensão da execução para a entrega certa da fracção “G3” do Xº andar “X” para habitação, com entrada pelo nº XX da Avenida XXX, do prédio em regime de propriedade horizontal nº 7 da Rua do XXX e nºs XX a XX da Avenida XXX, alegando a existência de um contrato de arrendamento, com o fundamento de ter feito depósitos em nome do pai do Embargado XXX aliás XXX (XXX), anterior proprietário desta fracção.
b) O Embargante, para além de provar a existência dos depósitos a título de renda, não fez a prova de que a falta pela não celebração por escrito do contrato arrendamento pudesse ser imputada ao anterior proprietário ou ao actual proprietário, ora Recorrido;
c) Das respostas aos quesitos nºs 1 e 2, não foi provado que tivesse havido uma negociação verbal entre o anterior proprietário do Embargado, ora Recorrido e o Embargante e que lhe tenha dado de arrendamento a fracção autónoma em questão;
d) Todavia, se em vez de se ter feito uma interpretação e aplicação das normas do Código Civil de Macau, tivesse sido feito uma interpretação e aplicação das normas do artigo 8º do Decreto nº 43 525, também o Embargante, ora Recorrente, não poderia servir-se dos depósitos a título de renda para fundamentar a existência de um contrato de arrendamento;
e) Porque o nº I do artigo 8º do citado Decreto, estipula que o contrato de arrendamento é celebrado por escrito, a não ser que se demonstre que a falta pela não celebração desse contrato pudesse ser imputada ao senhorio;
f) Facto não provado, e que por' isso não é possível ao Embargante, ora Recorrente, servir-se dos depósitos a título de renda para fundamentar a existência de um contrato de arrendamento entre ele e o Recorrido (nºs 2, 3 e 4 do artigo 8º);
g) Na sessão da Audiência de Julgamento dos autos de Embargos de Terceiro ficou provado que tanto o pai do Recorrido, como ele tentaram várias vezes contactar com o Embargante ou com a mãe que aí reside, quer através de cartas, quer através de uma Notificação Judicial Avulsa feita pelo Tribunal Judicial de Base, e nunca foi possível, por estes nunca lhes abrir a porta;
h) Dest´arte aplicando tanto as normas do artigo 8º do Decreto nº 43 525 ou do artigo 1032º do Código Civil de Macau, o Embargante não fez a prova da existência de um contrato arrendamento;
i) Assim sendo, entendeu bem a Mm3 Juiz em julgar improcedente os autos de Embargos de Terceiros por ter chegado à conclusão que o Embargante não provou a existência de contrato de arrendamento entre ele A e o pai do autor XXX”.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
“Da matéria de Facto Assente:
- Na execução apensa para entrega de coisa certa foi realizada diligência para entrega efectiva ao exequente da fracção autónoma designada por Xº andar “X”, do prédio sito em Macau, ERA, na Avenida XXX, n.º XX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 20859 a fls. 37 do livro B46 e inscrita a favor do Embargado sob o n.º 87352G, outorga designada por Xº andar “X” do Edifício XX (Xa Fase) da Avenida XXX, n.º XX (XXX大馬路XX號XX第X期大廈X樓X前座) (alínea A) dos factos assentes).
- A diligência foi realizada no dia 05 de Fevereiro de 2010, data em que o embargante dela tomou conhecimento, assim como da pendência da presente execução (alínea B) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Na fracção autónoma reside a mãe do embargante - XXX (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Em 6 de Setembro de 1994, o embargante depositou no Banco da China, Macau Branch a quantia de MOP$540,00, a título de renda da fracção autónoma de 4 de Setembro de 1994 a 3 de Outubro de 1994 (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O embargante procedeu ao depósito de rendas junto do Banco Nacional Ultramarino em nome do Senhor XXX aliás XXX (XXX), o que tem vindo a fazer desde 20 de Outubro de 1994 até ao presente (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- O embargado, na qualidade de actual proprietário, da fracção em questão, após a ter adquirido, enviou cartas para o endereço desta fracção autónoma para que contactassem com ele para a celebração do contrato de arrendamento por escrito, e nunca obteve resposta às cartas que enviou (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- Em 14 de Abril de 2008, o embargado requereu ao Tribunal Judicial de Base a notificação judicial avulsa da XXX para celebrar o contrato de arrendamento por escrito, o que não foi possível por nunca ninguém ter respondido aos chamamentos do oficial, que aí se deslocou várias vezes (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- O embargante não cohabita com a sua mãe XXX, como alega (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- O oficial do tribunal que se deslocou a essa fracção para efectuar a Notificação Judicial Avulsa não conseguiu efectuá-la porque nunca ninguém o atendeu (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- Depois de o pai do embargado lhe ter vendido a fracção este tentou infrutíferas vezes contactar com o embargante ou quem estava a residir nessa fracção para que com ele celebrasse um contrato de arrendamento por escrito (resposta ao quesito da 12º da base instrutória).
- Na execução da diligência foram efectuados várias chamamentos, ninguém respondeu e só após o arrombamento é que se verificou que a fracção em questão estava ocupada por XXX e XXX (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- O embargado sempre identificou o arrendatário por um nome XXX, que não corresponde nem ao nome do Embargante, nem ao da sua mãe (resposta ao quesito da 21º da base instrutória),
- A notificação judicial avulsa destinava-se a notificar a XXX (resposta ao quesito da 23º da base instrutória),
***
III- O Direito
1- Do recurso interlocutório
Com este recurso pretende o recorrente reagir contra o despacho de fls. 90, que indeferiu requerimento formulado por si mesmo no sentido de que o tribunal oficiasse a dois bancos (Banco da China e Banco Nacional Ultramarino) para a junção aos autos de elementos bancários em sua posse:
- Do BNU, e para prova do depósito de rendas por si efectuado, extracto da conta bancária com o nº XXXXXXXXXX referente ao período de Outubro de 1994 até à data do referido requerimento;
- Do Banco da China, também para prova de depósitos de rendas por si efectuados, os comprovativos desses depósitos à ordem de XXX ou XXX, no período compreendido entre 1970 e Outubro de 1994 com a menção e identificação de cada um e do número da conta em que eles eram efectuados.
Sobre a primeira pretensão, o tribunal “a quo” decidiu:
“Trata-se de informação que, para além dos depósitos das rendas, implica intromissão na vida privada e violação do segredo profissional que, nos termos do art. 442º, nº3 do Código de Processo Civil justificariam pedido de escusa e cessação do dever de cooperação do Banco em causa. Acresce que o embargante não disse que não tem os comprovativos de depósito que afirma ter feito nem que os não pode obter por si, pelo que não se justifica a intervenção do Tribunal em substituição da parte.
Indefere-se, também, pelos motivos expostos, esta parte do requerimento em apreço”.

Sobre a segunda, foi dito:
“Também nesta parte do requerimento não se mostra justificada a intervenção do Tribunal em substituição da parte. Com efeito, o requerente não alega que não tem os comprovativos em causa nem que não pode obtê-los directamente do Banco referido. Nem o Tribunal deve, antes de demonstrado que é impossível à parte ou mais difícil que ao Tribunal e ao Banco em causa impor a tal Banco, para descanso da parte que tem o ónus da prova, que procure “genericamente”documentos com mais de 30 anos e espalhados por um período de mais de 20 e que a parte poderia ter em seu poder. Crê-se ser o critério de decisão norteado pelo princípio da cooperação disciplinado e título principal no art. 8º do Código de Processo Civil e o equilíbrio da situação que o Tribunal só intervenha em substituição da parte se a esta não for exigível que o faça e que não se incomodem terceiros para descanso não justificado de quem tem primeiramente o dever de actuar. Também pelas razões expostas se indefere esta parte do requerimento em apreço”.
Apreciemos.
Não é raro que entre o dever de administrar a justiça - que, inter alia, se descobre no dever de descobrir a verdade material – e o de respeitar o sigilo, se instalem verdadeiros conflitos. Entidades a quem são pedidos elementos na senda da descoberta da verdade, vazada em princípio no art. 442º do CPC, protegem-se no dever de sigilo (profissional, médico, confessional, etc.) para sonegarem elementos e informações solicitadas pelo tribunal. Comum é, a este propósito, o sigilo bancário.
Ora, o que o despacho em análise fez foi apelar ao primado do princípio da reserva do sigilo para negar a pretensão do requerente. Ao fazê-lo, porém, ter-se-á precipitado, se nos é permitido dizê-lo.
Com efeito, ao negar liminarmente a satisfação do pedido, o tribunal não só fez tábua rasa do princípio da cooperação patenteada no citado normativo (ter-lhe-á faltado sensibilidade para colaborar com a parte no sentido de a auxiliar a provar um facto essencial em ordem à descoberta da verdade), como desempenhou o papel que somente à entidade privada cumpria desempenhar. Isto é, fez suas as palavras que o Banco Nacional Ultramarino poderia vir a usar. Antecipou-se a um juízo de resistência, de escusa ou de cessação do dever de cooperação que o BNU poderia efectivamente invocar.
Ora, é aqui mesmo que não podemos deixar de mostrar a nossa discordância relativamente à decisão recorrida. Na verdade, como poderia o tribunal adivinhar que o BNU se iria opor à revelação do extracto de conta bancária com o nº XXXXXXXXXX? Como pôde o tribunal “a quo” prever que aquela instituição bancária iria opor escusa e impossibilidade do dever de cooperação?
Convém não esquecer que o direito ao sigilo não é absoluto e deve ceder perante o direito assegurado pelo Estado de acesso à justiça em função da contingência do caso concreto (v.g., na jurisprudência comparada, Acs. da RL de 4/10/2001, C.J. 2001, 4º vol. pag. 116 e de 5/03/2002, C.J., 2001, 2º vol. pag. 71; 8/07/2004, C.J. C.J. 2004, 4º vol. pag. 71; 21/10/2004, Proc. nº 1153/2004-9).
Deveria o tribunal, tanto quanto a sensatez nos permite pensar, deixar que fosse a instituição bancária a fazer ela mesma o exercício de negação do dever para, posteriormente, o tribunal cumprir a tarefa de apreciar a legitimidade da recusa ao abrigo do art. 442º, nº3 e 4, do CPC (neste sentido, por exemplo, na jurisprudência comparada, Acs. do STJ de 8/04/1997, BMJ nº 466/427; Ac. RC, de 14/02/2006, C.J. 2006, 1º vol, pag. 29; RP 13/11/2006, Proc. nº C.J. 2006, 5º vol. pag. 171; RC. de 13/02/2007, Proc. nº 2328/067YRCBR).
O farol do tribunal não deve ser a verdade formal, a verdade adquirida no processo segundo as regras mais apertadas do ónus de prova, mas deve ser a verdade material, tanto quanto o princípio do inquisitório lhe permite uma actuação de facere comandada pelo art. 6º, nº3 e densificada, entre outros, no art. 462º, ambos do CPC. Deve, portanto, nortear-se pela verdade material e, nesse sentido, tudo fazer para que a justiça se faça e se realize a composição do litígio.
O que pretendia a parte?
Que o Banco BNU viesse ao processo, através de documento, revelar que, desde Outubro de 1994 até Julho de 2010 aquela conta era movimentada a crédito com o depósito de certas importâncias mensais. Tão simples quanto isto. Ora, esta revelação não significaria, necessariamente, a quebra do dever de sigilo, nem a violação da reserva da vida privada do beneficiário dos depósitos, o mesmo é dizer do titular da conta. Ao banco bastaria, caso pretendesse escudar-se no sigilo, enviar um extracto encriptado ou truncado, exibindo somente os movimentos mensais a crédito a título de depósito de renda. Isso era perfeitamente possível pelos meios técnicos actualmente disponíveis. Mas ainda que tal não fosse de todo tecnicamente possível, não deveria o Banco deixar de declarar ao tribunal que desde aquela data eram feitos depósitos pelo cidadão X a favor da conta N a favor do titular Y. Assim, mesmo que o requerente não tenha ido à minúcia de pedir semelhante coisa, ao tribunal cabia reduzir a cooperação do Banco ao limite do possível.
Nada fazer, parece-nos atentar contra o dever de cooperação para com a parte no sentido da demonstração da descoberta da verdade. Violação que só não vai surtir os pretendidos efeitos revogatórios no âmbito do presente recurso, uma vez que a matéria dada por provada ao quesito 7º da Base Instrutória resolveu a contento do recorrente o seu direito à prova da matéria em causa.
*
Talvez o mesmo não possamos dizer, infelizmente, da diligência que o recorrente queria que o tribunal realizasse em vista da prova da matéria do quesito 5º da Base Instrutória.
Aqui, então, cremos ser ainda menos razoável a posição do tribunal “a quo”, por duas razões. Em primeiro lugar, porque o recorrente apenas pretendia os “comprovativos dos depósitos”, e não o extracto da conta. Quer dizer, aparentemente, não se poriam desta vez questões relativas a direitos de personalidade, nem de reserva da vida privada, financeira ou económica do titular da conta. Em segundo lugar, porque o requerente tinha justificado a razão de ser do pedido: não dispunha de cópias dos depósitos que vinha fazendo desde 1970, enquanto o banco certamente teria os respectivos originais em arquivo. Quer isto dizer que o interessado deu uma justificação perfeitamente aceitável para a formulação de tal pedido, mesmo sem ter que o fazer.
Portanto, se o requerente pediu a cooperação ao tribunal, por que razão então este lha recusou?
Por o recorrente não ter alegado não possuir os comprovativos? Sim, essa foi parte da justificação utilizada. Mas, se é assim, não atentou o tribunal que este mesmo requerimento já tinha sido apresentado na petição inicial (ver fls. 8 e 9), onde claramente era dito que ele, embargante, “…já não tem na sua posse os tais comprovativos…”. Quer dizer, a sua posição já tinha sido manifestada em tais termos pretensivos que o tribunal não poderia desconhecê-la.
Por o recorrente não ter dito ser-lhe impossível obter os documentos directamente junto do Banco? Sim, essa foi também justificação apresentada no despacho recorrido. Só que, nesse caso perguntamos: era necessário trazer mais fundamentação ao pedido para além daquela que já estava manifestada? Se o recorrente queria que o processo viesse a conhecer os comprovativos originais dos documentos, que melhor forma de os obter senão pedi-los directamente ao Banco através do tribunal? Para quê argumentar a dificuldade em tê-los obtido por si mesmo directamente junto da instituição bancária!
Em nossa opinião, não é necessário que o interessado alegue e prove que o terceiro, em cuja posse estão os documentos, se negou a fornecer-lhos, porque a lei não faz depender a entrega ao tribunal de tal condição (art. 458º, do CPC).
Aliás, até se percebe por que motivo nem sequer é necessário que o interessado faça essa diligência prévia junto do possuidor dos documentos e de entre as razões que se pode apontar quanto a essa desnecessidade pode aduzir-se a que se prende com a eventual demora que essa diligência poderia provocar na instauração do processo (quando o interessado é autor) ou na defesa a apresentar nele (quando o interessado é demandado), com graves repercussões em matéria de caducidade ou de produção de danos, em especial quando os processos têm carácter urgente.
É por isso que a doutrina, na análise que faz de preceito semelhante ao art. 458º do CPCM, nem estabelece essa necessidade de diligência prévia junto do possuidor por parte do interessado em obter os documentos, nem pressupõe que o possuidor lhos não confie directamente1. Basta que estejam em poder de terceiro para que o particular que deles queira fazer uso tenha legitimidade para pedir a colaboração do tribunal, que não lha deverá negar.
Lembremos que há jurisprudência que até desonera o interessado de alegar ou provar a impossibilidade ou dificuldade de acesso aos documentos em poder de terceiros, nos termos do art. 531º do CPCP, semelhante ao art. 454º do CPCM (Ac. RP de 22/11/1993, Proc. nº JTRP00011470/ITIJ/Net).
Mas, no caso, o requerente até justificou o pedido com o facto de não possuir os documentos em causa, os quais estavam na posse do banco.
O tribunal deve facilitar a posição processual de cada uma das partes, em pé de igualdade, sem favorecimento, nem estorvo de nenhuma delas em relação à outra. Diga-se o que se disser, mas o que é certo é que, ao negar “ajuda processual” a esta parte, fez o tribunal não fez um bom uso dos seus poderes, principalmente se tivermos em conta o resultado da prova adquirida em sede de audiência de discussão e julgamento. Com efeito, tendo sido pretensão do embargante desde a primeira hora demonstrar que desde 1970 até Setembro de 1994 sempre fez os depósitos bancários no Banco da China a título de renda e em nome do então dono da fracção, pai do aqui embargado/recorrido, apenas conseguiu provar o que consta da resposta ao quesito 5º: “Que em 6 de Setembro de 1994, o embargante depositou no Banco da China, Macau Branch, a quantia de Mop$540,00 a título de renda da fracção autónoma de 4 de Setembro de 1994 a 3 de Outubro de 1994”.
Ora, se perdermos algum tempo a pensar nesta resposta restritiva e a compararmos com eventual resposta positiva plena ao quesito 5º tal como estava redigido, logo haveremos de concluir haver entre as redacções uma diferença substantiva de enorme monta. Realmente, é muito diferente para o tribunal convencer-se da existência de uma relação de inquilinato consoante o embargante prove que paga as rendas há mais de 20 anos através do Banco ou que apenas efectuou um depósito referente ao mês de Setembro de 1994 ou que procedeu ao depósito de rendas desde Outubro de 1994 até ao presente.
Ora, se a fls. 6 da sentença (penúltimo e último períodos) o tribunal “a quo” fez um exercício de despojamento da valia da prova à matéria do quesito 7º, isto é, se desprezou a factualidade ali provada (de que o embargante fez o depósito de rendas no BNU desde Outubro de 1994 até ao presente), já não chegou a fazê-lo em relação ao período de 24 anos que decorreu entre 1970 e 1994, porque não teve oportunidade de o realizar. E não teve tal oportunidade porque ao embargante não foi dada a chance de provar aqueles depósitos bancários por o tribunal não ter cooperado com ele e pedido os respectivos comprovativos ao Banco da China.
Perguntamos mais uma vez: será que o tribunal com a prova daqueles depósitos bancários de “rendas” durante cerca de 40 anos (24+16) - ou seja, entre 1970 e 1994 no Banco da China e desde 1994 até à data da sentença no BNU – ainda iria fazer o mesmo exercício mental ou de convicção? Seria ainda capaz de afirmar que não havia ali uma relação de inquilinato? Se somasse estes factos circunstanciais a outros apurados nos autos - tais como:
- O depósito em Setembro de 1994 no Banco da China “a título de renda” (resposta ao quesito 5º);
- O depósito de “rendas” desde Outubro de 1994 até ao presente (resposta ao quesito 7º);
- A tentativa de contacto dos residentes na fracção para “celebração de arrendamento por escrito” (resposta ao quesito 8º);
- A tentativa de notificação judicial avulsa da XXX (a similitude com a nome da mãe do embargante, XXX, é imensa; deverá avaliar-se se se trata da mesma pessoa e o embargado – sob pena de má fé, saberá e dirá se sim ou não, face ao teor do requerimento da notificação judicial avulsa) “para celebrar o contrato de arrendamento por escrito” (resposta ao quesito 9º);
- A tentativa de contactar o embargante por parte do embargado “para que com ele celebrasse um contrato de arrendamento escrito” (resposta ao quesito 14º)
- não seria levado a pensar que, afinal de contas, a situação era de arrendamento? Ou seja, se reunidos todos estes factos provados – e merecem especial referência as diversas ocasiões em que embargado tentou notificar o embargante ou a sua mãe para reduzirem a escrito o arrendamento, dando a entender que sabia da existência de um arrendamento verbal e que o aceitava – chegaria o tribunal à mesma conclusão?
Não podemos responder porque este TSI não pode substituir-se ao TJB. Mas, uma coisa é certa: sabemos que o tribunal não considerou o facto alegado pelo embargante relativo ao depósito de “rendas” entre 1970 e Setembro de 1994 no Banco da China, por aquele ter sido “impedido”, digamos assim, de apresentar os comprovativos desses depósitos bancários! Esse elemento instrutório era de especial relevância, cremos nós, para o tribunal de 1ª instância poder avisadamente e com toda a tranquilidade formular um juízo mais denso, mais sopesado, mais ponderado e mais (juris)prudente. E como não podemos ajuizar por ele acerca da conclusão a que ele chegaria na posse desse importante facto, somos agora nós obrigados a admitir que é possível que outro pudesse ser o resultado decisório (pelo menos para este TSI esse facto é de extrema importância). Repare-se que o tribunal negou a cooperação, mas não a fundou na inutilidade do facto probando para a decisão da causa ou na inidoneidade dos documentos, tal como podia ser feito, nos termos do art. 455º, nº2, ex vi, art. 458º do CPC2.
Portanto, não chega fazer a afirmação de que “uma coisa é o cumprimento de obrigações resultantes de um contrato de arrendamento e outra é a celebração do próprio contrato de arrendamento”, como foi feito na sentença final e com a qual, de resto, genericamente, estamos de acordo. É que, com mais aquele dado a que vimos fazendo referência, se provado, talvez o tribunal “a quo” não tivesse necessidade de apelar à transcrita afirmação de princípio se concluísse que a situação era de, de facto, de arrendamento verbal.
Eis, assim, expostas as razões pelas quais, por violação do arts. 458º e 8º do CPC, somos a concluir pela procedência da impugnação, por ter manifesta relevância e interesse para o recorrente e para o exame e decisão da causa (arts. 147º, nº1 e 628º, nº3, do CPC).
*
2- Recurso da sentença
O conhecimento do recurso interposto da sentença, pelo exposto, fica irremediavelmente prejudicado, face à procedência do recurso interlocutório.
Na verdade, procedente aquele outro, o tribunal “ a quo”, em execução do presente acórdão, deverá retomar o processado a partir de fls. 90, satisfazendo a pretensão probatória em causa no que concerne aos depósitos feitos no Banco da China, conduzindo depois disso o processo até à sua fase derradeira com nova produção de prova - designadamente testemunhal, limitada à alegada matéria da relação locatícia pretensamente existente entre 1970 e 1994, incluindo a matéria do quesito 5º da Base Instrutória, mantendo-se, porém, a prova feita quanto à demais factualidade que não colida com aquela – e nova sentença de acordo com a factualidade que resultar da diligência e da nova prova que o tribunal obtiver sobre a referida matéria.
***

IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1- Conceder provimento ao recurso interlocutório, revogando o despacho recorrido de fls. 91 (3ª parte), e 1ª parte de fls. 92 (referente à diligência requerida junto do Banco da China); e, em consequência,
2- Anular, nos termos do art. 147º, nº1 e 2 do CPC, os actos subsequentes ao referido despacho, incluindo parte do julgamento da matéria de facto, nos termos atrás definidos, bem como a sentença proferida, que na oportunidade deverá ser novamente prolatada, em função da nova prova a obter nos moldes acima definidos.
Custas pelo recorrido.
TSI, 22 / 03 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong (Vencido nos termos de declaração de voto de vencido)
Choi Mou Pan


















Processo nº 632/2011
Declaração de voto de vencido


Vencido por entender que quando a parte pode obter, sem dificuldade séria cuja remoção não lhe seja razoável exigir, os elementos probatórios por si própria, não se justifica a intervenção do Tribunal em substituição da parte para o efeito.

RAEM, 22MAR2012

O juiz adjunto,



Lai Kin Hong

1 Ver o que dizem Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pag. 328; tb. José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil, anotado, vol. 2º, pag. 435.

2 José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil, vol. 22º, pag. 431.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------