ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório e factos provados
A intentou, no 2.º Juízo Cível, acção declarativa com processo ordinário contra B, pedindo, além do mais, a declaração de nulidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral da ré, de 6 de Junho de 2006, que são do seguinte teor:
“a) Aceitar, com efeitos imediatos, os pedidos de renúncia aos cargos de administradores apresentados pelos Srs. C e Sr. D;
b) Tendo em conta a deliberação tomada em a), eleger, com efeitos imediatos, os seguintes indivíduos que irão preencher os respectivos cargos e que exercerão funções para o período que termina em 31 de Dezembro de 2006:
- Sr. E, casado, de nacionalidade norte-americana, residente em [Endereço (1)], Estados Unidos da América, como administrador;
- Sr. F, casado, de nacionalidade japonesa, residente em [Endereço (2)], Japão como administrador.
c) Considerando que o administrador que ainda continua em exercício de funções, Sr. G, casado, de nacionalidade chinesa, residente em Hong Kong, [Endereço (3)], havia sido eleito para o mandato que terminou em 31 de Dezembro de 2004, foi ainda deliberado por unanimidade reconduzi-lo no exercício do referido cargo para o mandato que termina em 31 de Dezembro de 2006, passando a assumir o cargo de presidente”.
Nessa acção, H veio requerer a sua intervenção como assistente da ré, com o fundamento de que é sua sócia, com acções correspondentes a 31,727% do capital social, sendo também a autora sócia da ré, com acções correspondentes a 68% do capital social. Mais alegou que tem interesse na manutenção das deliberações cuja declaração de nulidade é pedida na acção, já que a composição da Administração, com parte dos Administradores por si indicados (os nomeados pela deliberação em causa), foi uma das condições para a sua entrada como sócia da ré.
Ouvida sobre este requerimento, a autora não impugnou os factos atrás mencionados, particularmente o último, tendo-se limitado a dizer no artigo 12.º da sua resposta que “o alegado pela Requerente nos artigos 6.º a 11.º do seu requerimento de assistência, nomeadamente, as condições e requisitos prévios pelos quais a Requerente adquiriu acções da R., é totalmente irrelevante, quer para a decisão da causa principal quer, principalmente, para a prova de eventual interesse jurídico da Requerente em que a decisão da causa seja favorável à Ré que pretende assistir e, consequentemente, para que seja admitida como assistente da R. nos presentes autos”.
Tendo a sua intervenção como assistente sido indeferida – por despacho de 10 de Fevereiro de 2009 - com o fundamento de que os factos alegados não integram interesse jurídico na manutenção da deliberação, nem haver qualquer relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão da ré, recorreu para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 11 de Fevereiro de 2010, julgou o recurso procedente, admitindo H a intervir nos autos como assistente.
Inconformada, interpõe A ( a autora da acção) recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- O vício apontado às referidas deliberações sociais da R. de 6 de Junho de 2006 é um vício formal ou de procedimento: a falta absoluta de convocação da reunião.
- Sendo um vício de natureza formal a procedência dos autos não impede nem põe em causa, de modo nenhum, a possibilidade da sua reparação, podendo ser tomadas as mesmas deliberações.
- Daí resulta que com a procedência da acção, como bem destacou a Mma. Juiz do Tribunal de Primeira Instância, não fica afectada qualquer relação jurídica de que a H é titular e cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão da R. na causa.
- Igualmente, ao assentar a sua decisão em factos que não foram dados como assentes pelo Tribunal de Primeira Instância, o Tribunal de Segunda Instância modifica a decisão de facto relevante sem que estivessem reunidos os pressupostos para o efeito e sem qualquer fundamentação, violando assim o disposto no artigo 629º do Código de Processo Civil.
- Independentemente dos factos que foram alegados (e não provados) pela H e aceites acriticamente pela Segunda Instância, não existe nos autos nada que sustente um interesse jurídico que legitime aquela sócia a assistir a R. nestes autos, pelo que a decisão do Acórdão em crise violou o disposto nos nos 1 e 2 do artigo 276º do CPC respeitante às condições e requisitos para a admissão como assistente.
- Conforme resulta claro e evidente dos estatutos da R., a sócia H não tem qualquer direito especial de apontar ou nomear quaisquer administradores para o conselho de administração da R ..
- Assim, alegado móbil que pretensamente levou a H a adquirir acções da R. e entrar no seu capital social e que o Tribunal de Segunda Instância aceitou por mera alegação, é juridicamente irrelevante pois só seria relevante se estivesse reflectido nos estatutos da sociedade R. esse direito especial a nomear, apontar ou manter um determinado número de administradores.
- O facto da H concordar com o sentido das deliberações nulas por as mesmas constituírem a (alegada) causa ou móbil de determinada decisão por si tomada - a entrada no grémio social da R. - não pode relevar para sustentar ou fundamentar o seu interesse jurídico de ser admitida a assistir a R. nos autos, uma vez que não é um interesse jurídico que releve ou seja juridicamente tutelado para os termos e efeitos do disposto no artigo 276° do CPC.
- Se tal fosse permitido, conforme sustenta a mesma decisão da Mma. Juiz do Tribunal Judicial de Base “(...) seria permitir uma indiscriminada intervenção principal ou acessória dos sócios da sociedade sempre que as sua deliberações são postas em causa, pois todos os sócios votam num ou noutro sentido por determinada causa. Seria, no fundo, uma forma directa de se tornear a imposição legal prevista no art.º 231º n.o 1 do Código Comercial” (cfr. despacho de folhas 251v e 252 junto aos autos).
- Destarte, é forçoso concluir que o Acórdão em crise, ao decidir pela admissão da sócia H como assistente da R. nos autos, é ilegal, quer por assentar em fundamentos de facto diferentes daqueles em que assentou a decisão da Primeira Instância, tendo pois alterado a matéria de facto relevante sem os devidos pressupostos e em violação do disposto no artigo 629.° do CPC, quer, por manifesta violação do disposto no artigo 276.°, n.º 1 e 2 do CPC, relativamente aos pressupostos da admissão de assistente.
II – O Direito
1. As questões a apreciar
Trata-se de saber se a admitida assistente, pelo Acórdão recorrido, demonstrou ser titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da manutenção da deliberação impugnada.
2. Assistente
O assistente é uma parte acessória que intervém, espontaneamente, na causa para auxiliar qualquer das partes principais. Como requisito exige-se que tenha “interesse jurídico em que a decisão da causa seja favorável a essa parte” (artigo 276.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Dispõe o n.º 2 do mesmo artigo 276.º que “Para que haja interesse jurídico, basta que o assistente seja titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”.
Recordam CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA1 que «Para que o assistente possa auxiliar uma das partes principais tem de ter interesse jurídico em que a decisão da causa seja favorável a essa parte. Como sublinha RODRIGUES BASTOS2 terá de tratar-se de “interesse tutelado pelo direito. Está, portanto, naturalmente fora de causa o interesse puramente afectivo, do familiar ou do amigo, que, por razões de exclusiva amizade, desejem o triunfo de um dos litigantes, ou o doutrinário que visa apenas a satisfação de ver consagrada uma tese que defendeu no campo da ciência”.
O n.º 2 foi introduzido no Código de 1961 para pôr fim a uma querela doutrinária entre os que defendiam que o assistente só teria interesse jurídico quando a decisão da causa comprometesse o seu próprio direito e outros que entendiam que esse interesse existia logo que a decisão afectasse a consistência prática ou económica do direito do terceiro. “Concretamente a questão punha-se quanto à admissibilidade como assistente do credor nas questões patrimoniais do devedor; ele poderia ser completamente estranho ao litígio, mas da decisão poderia resultar reforço ou diminuição do património do devedor, e nessa medida estaria o seu interesse em auxiliá-lo no pleito”3.
Foi esta a tese que veio a prevalecer. Assim, o terceiro não tem interesse jurídico apenas quando a decisão da causa comprometer o seu próprio direito, mas também quando a decisão afectar a consistência ou realização prática do seu direito».
3. O caso dos autos
No caso dos autos há dois factos particularmente relevantes para decidir a questão.
Por um lado, na acção foi pedida a declaração de nulidade da deliberação que nomeou novos administradores da ré, sendo que a assistente da ré, é sócia desta, pretendendo a improcedência da acção.
Por outro lado, a composição da Administração da ré, com parte dos Administradores indicados pela assistente (os nomeados pela deliberação em causa), foi uma das condições para a sua entrada como sócia da ré.
Em breve parêntesis dir-se-á que este facto está provado porque alegado no requerimento de constituição de assistente e não impugnado pela autora, nos termos das disposições dos artigos 245.º, n.º 3, 405.º, n.º 1 e 410.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, esta última norma aplicável por analogia.
Na verdade, se nos incidentes da instância - como é o caso desta forma de intervenção de terceiros, acessória, que é a assistência – a falta de oposição ao articulado determina, nos termos do artigo 245.º, n.º 3, o efeito previsto no artigo 405.º do Código de Processo Civil, ou seja o reconhecimento dos factos articulados pelo requerente do incidente, também a falta de impugnação pelo requerido dos factos articulados pelo requerente determina o efeito previsto no artigo 410.º, n.º 2 do mesmo diploma, por aplicação analógica, ou seja o reconhecimento dos factos articulados pelo requerente do incidente, não impugnados pelo requerido.
E se tal facto não foi considerado no despacho de 1.ª instância, devia tê-lo sido, pelo que nada obsta a que o TSI o considere, tal como o TUI o pode fazer. Isto da mesma maneira que um facto que, indevidamente, não foi levado ao despacho dos factos assentes (artigo 430.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) pode, como tal, isto é, como facto assente, ser considerado pelos tribunais de recurso.
A pretensão do assistido (a ré) na acção é, evidentemente, a improcedência da acção.
Ora, a assistente, como sócia da ré e com o seu manifesto interesse na manutenção da Administração, é titular de uma relação jurídica (a relação de sócia da sociedade) cuja consistência prática ou económica depende da manutenção da deliberação impugnada, pelo menos, em parte.
Logo, tem legitimidade para se constituir como assistente.
Os demais factos considerados pelo Acórdão recorrido não relevam no que à questão concerne, pelo que estão prejudicadas as questões suscitadas a propósito pela recorrente.
É inteiramente irrelevante a alegação da recorrente de que a deliberação em causa uma vez declarada nula ou anulada, pode ser repetida, isto é, pode voltar a ser tomada com o mesmo sentido. O que é que isso prova? Mas se a deliberação for mantida, isso satisfaz um interesse da assistente.
Como também é irrelevante o argumento de que não existe um direito especial nos Estatutos da ré a favor da assistente de nomear um certo número de administradores. O que é certo é que foi nesse pressuposto (acordo verbal, ao que parece) que a assistente terá entrado como sócia e isso é o bastante para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 276.º do Código de Processo Civil, embora tal não confira à assistente um direito subjectivo de nomeação de administradores.
Também não há que falar em tornear ou deixar de tornear o disposto no n.º 1 do artigo 231.º do Código Comercial, que dispõe sobre a legitimidade passiva (a própria sociedade) nas acções de declaração de nulidade ou de anulação das deliberações sociais. Essa norma respeita à legitimidade da parte principal passiva em tais acções e não bule com a legitimidade para a intervenção como assistente nessas mesmas acções. Já o artigo 276.º do Código de Processo Civil respeita à legitimidade como parte acessória (activa e passiva) na generalidade das acções e, naturalmente, aplica-se às acções de declaração de nulidade ou de anulação das deliberações sociais.
Dizer que a aplicação do artigo 276.º do Código de Processo Civil representa tornear ou defraudar o artigo 231.º do Código Comercial, seria o mesmo que dizer que a aplicação do artigo 276.º do Código de Processo Civil representa tornear ou defraudar o artigo 58.º do Código de Processo Civil (que dispõe sobre a legitimidade das partes principais na generalidade das acções) ou as normas especiais que dispõem sobre a legitimidade processual das partes principais, em determinadas acções. O que seria absurdo.
Não merece, pois, provimento o recurso.
III – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Macau, 21 de Julho de 2010.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil de Macau, Anotado e Comentado, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2008, Volume II, p. 202 e 203.
2 RODRIGUES BASTOS, Notas..., vol. II, pp. 121 e 122.
3 RODRIGUES BASTOS, Notas..., vol. II, p. 122.
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Processo n.º 33/2010