Processo n.º 453/2009 Data do acórdão: 2012-3-29
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– assistente
– requerimento de abertura da instrução
– acusação em sentido material
– despacho de aperfeiçoamento
– rejeição do requerimento
– indeferimento do requerimento
– art.o 265.o, n.o 3, alínea b), do Código de Processo Penal
– art.o 271.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– art.o 271.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. A emissão do despacho judicial de aperfeiçoamento sobre o requerimento de abertura da instrução já representou que esse requerimento não foi rejeitado nos termos do art.o 271.o, n.o 2, do vigente Código de Processo Penal (CPP).
2. Conforme o estatuído no n.o 1 do art.o 271.o do CPP, embora o requerimento para abertura da instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, mas já deve conter, em súmula, e para já, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação.
3. In casu, como o requerimento de abertura da instrução, na versão finalmente dada pelo assistente, não traz nada em concreto a nível de factos para efeitos de aferição do dolo na prática dos actos integradores do tipo-de-ilícito objectivo do crime imputado, isto significa que do mesmo requerimento não consta “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena”, ao arrepio do exigido na alínea b) do n.o 3 do art.o 265.o do CPP, de cuja observância o requerimento de abertura da instrução do assistente, sendo um libelo acusatório em sentido material, também não pode ficar isento.
4. Como o assistente ora recorrente não deu satisfação total ao despacho de aperfeiçoamento então proferido sobre o seu requerimento de abertura da instrução com cominação expressa de indeferimento do requerimento, ele tem que ver o seu requerimento finalmente indeferido.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 453/2009
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A
Recorridos (arguidos): B
C
D
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o despacho proferido pela M.ma Juíza de Instrução Criminal a fls. 134 a 134v dos autos penais subjacentes na parte em que se lhe indeferiu o requerimento de abertura da instrução, veio recorrer o assistente A para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo concluído e peticionado na sua motivação de modo seguinte:
– <<[...]
1) Por douto despacho judicial não foi atendido o pedido formulado pelo ora recorrente no sentido de ser aberta a instrução no âmbito do inquérito nº491/2008 da segunda secção do Ministério Publico, tendo antes sido notificado para apresentar a sanação do mesmo;
2) O recorrente deu cumprimento ao ordenado e no respectivo requerimento escreveu, além do mais, o seguinte:
a) Porém, no dia 24 de Novembro de 2006 procedeu-se à penhora do Estabelecimento Comercial referido em segundo lugar, tendo-se efectuado a inventariação dos bens nele existentes. (Doc. N° 1 junto com a participação).
b) Na mesma data foi efectuada a notificação da requerida B mãe da D a qual estava presente quando da efectivação daquela diligência, no sentido de que, “o estabelecimento agora penhorado deve prosseguir sob a sua gestão, o seu normal funcionamento”.
c) Ora, na mesma data, a requerida D com a colaboração dos restantes requeridos, em total desobediência àquela decisão judicial, encerrou o dito estabelecimento, dando sumiço ao seu recheio, devidamente inventariado apesar de dele não poderem dispor, distruindo-o totalmente.
d) Os actos referidos no art. 8° integram um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo art. 199° do C.P. de Macau e outro de desobediência previsto e punido nos termos do art.312° do mesmo C.P. de Macau e o art.319° do mesmo C.P. de Macau.
3) Em momento ulterior o recorrente requereu fossem consideradas eliminadas as expressões “destruindo totalmente”, constantes do art. 10° desse requerimento e manifestou a vontade de não imputar aos arguidos os crimes dos arts.312° e 319° do Código Penal.
4) Tal requerimento, assim rectificado foi indeferido pelo douto despacho recorrido.
5) Ao contrário do que se afirma no despacho recorrido, o recorrente indicou o crime imputado aos arguidos (art.199° do Código Penal fez indicação da disposição legal aplicável).
6) O despacho recorrido não está fundamentado por que não explica a que (título os móveis referidos no requerimento em questão foram entregues à arguida A.
7) Os mesmos móveis foram penhorados pelo que o direito de propriedade da executada sobre os mesmos ficou paralizado.
8) Uma vez apreendidos, eles foram entregues à executada A mas por título que não implicou o pleno gozo dos direitos de propriedade.
9) A mesma entrega implicou a afectação desses bens à satisfação dos direitos do recorrente
10) Dando sumiço a esses bens os arguidos, sabendo da penhora, apropriaram-se ilegitimamente dessas coisas móveis que tinham sido entregues por título não translativo de propriedade.
11) Há indícios de os arguidos terem cometido o crime imputado.
12) Por isso, a instrução não podia ser rejeitada.
13) O douto despacho recorrido violou o disposto nos arts.87°, n° 3, arts.271, nº2 e arts.265, nº3, c) do Código de Processo Penal.
Assim, em provimento do recurso, deve ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se seja admitida a instrução requerida.
Se assim não for entendido, deve ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se que se profira outro, mas devidamente fundamentado [...]>> (cfr. sobretudo o teor literal de fls. 142 a 144 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu primeiro o Ministério Público no sentido de improcedência da pretensão do recorrente, nos termos expostos na sua resposta, concluída de seguinte maneira:
– <<[...]
1) Nos termos do art.27l nº1 do CPP, o requerimento para abertura da instrução deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação.
2) Nos presentes autos, o requerimento da abertura da instrução do assistente violou o art.271 nº1 e art. 265 nº3 al.c do CPP.
3) Pelo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmar-se a douta decisão recorrida>> (cfr. especialmente o teor literal de fl. 148v dos autos).
Responderam também os três arguidos recorridos chamados B, C e D para pedir a manutenção da decisão recorrida, mediante a invocação de um conjunto de razões assim sumariadas na parte final da sua resposta:
– <<[...]
1.ª- O Recorrente não alegou no requerimento de abertura de instrução factos susceptíveis de integrar o conceito jurídico “apropriação ilegítima”;
2.ª- O Recorrente prescindiu expressamente, entre outros, do artigo 11º do seu requerimento de abertura de instrução através do requerimento de fls. 114.
3.ª- O Recorrente motiva o seu recurso com fundamento na não consideração pela decisão recorrida do alegado nesse artigo 11º;
4.ª - O Recorrente não alegou no requerimento de abertura de instrução as normas jurídicas aplicáveis;
5.ª- A douta sentença recorrida não violou as normas invocadas pelo Recorrente>> (cfr. o teor literal de fl. 151 a 152 dos autos).
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto o seguinte parecer:
– <
Vejamos.
Como é sabido, o requerimento para abertura da instrução do assistente, como acusação em sentido material, define e fixa o objecto do processo.
Daí, também, naturalmente, que deva conter a descrição dos “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança” (cfr. arts. 265°, nº. 3-b e 289°, nº. 3, do C. P. Penal).
E, no âmbito dessa factualidade, deve ter-se como imprescindível a relacionada com o respectivo elemento subjectivo.
Está-se perante um crime doloso.
E, com Figueiredo Dias − R.L.J., 105°, pg. 142 − «temos hoje por absolutamente indefensável, em qualquer campo do direito penal, a velha e ultrapassada ideia de um “dolus in re ipsa” que sem mais resultaria da comprovação da simples materialidade de uma infracção...».
Na realidade, nunca como hoje se procurou afirmar, com tanta intensidade, o princípio da culpa como princípio fundamental do direito penal.
Verifica-se, “in casu”, que o requerimento em causa é totalmente omisso nessa matéria.
Não podem, pois, deixar de extrair-se as devidas consequências (cfr., a propósito, ac. do S.T.J. de Portugal, de 22/10/2003, proc. nº. 2608/3ª − citado por Maia Gonçalves, C. P. Penal, 17ª Ed. − 2009, pg. 696).
Deve, pelo exposto, ser negado provimento ao recurso.
[...]>> (cfr. o teor literal de fls. 167 a 168 dos autos).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos, pertinentes à solução do recurso:
– Em 13 de Março de 2007, o ora recorrente apresentou participação criminal ao Ministério Público contra os ora três recorridos, pedindo a instauração do procedimento criminal contra estes três, pelo crime de desobediência e pelo crime do art.o 222.o do vigente Código Penal (CP) (cfr. o teor de fls. 1 a 6 dos autos);
– Em 8 de Janeiro de 2008, o Digno Delegado do Procurador decidiu, nos termos do art.o 259.o, n.o 2, do vigente Código de Processo Penal (CPP), arquivar o inquérito entretanto aberto, por entendida inexistência de indícios suficientes da verificação do crime de frustração de créditos do art.o 222.o do CP (cfr. o despacho de arquivamento a fl. 48 dos autos);
– Pediu então o recorrente, em 25 de Janeiro de 2008, e na pena do seu Exm.o Advogado constituído, a abertura da instrução (cfr. o requerimento de fls. 53 a 57, rectificado a fl. 61);
– Entretanto, em 14 de Fevereiro de 2008, a própria pessoa do recorrente, notificado pessoalmente em 4 de Fevereiro de 2008 do despacho de arquivamento (cfr. a certidão de notificação exarada a fl. 67), escreveu ao Ministério Público em 14 de Fevereiro de 2008 para reclamar da decisão de arquivamento (cfr. a exposição escrita a fls. 68 a 70);
– Sobre essa reclamação, o Digno Procurador-Adjunto manteve, em 2 de Julho de 2008, o arquivamento do inqúerito, por concluída inexistência, para já, de qualquer elemento de prova atinente à já declaração de insolvência aludida no tipo legal de frustração de créditos do art.o 222.o do CP, e, por outro lado, por entendida inverificação do requisito de “entrega de coisa móvel” referido no tipo legal de abuso de confiança do art.o 199.o do CP (cfr. o teor de fl. 85 a 85v);
– Em 12 de Setembro de 2008, o recorrente, na pena do seu mesmo Exm.o Advogado, afirmou por escrito que <> (cfr. o requerimento de fl. 95);
– Em 24 de Novembro de 2008, a M.ma Juíza de Instrução Criminal despachou no sentido de convidar o recorrente para em dez dias vir regularizar o conteúdo do seu requerimento de abertura da instrução em observância do art.o 265.o, n.o 3, alínea a), do CPP (por entender que o recorrente não chegou a indicar os dados concretos de identificação das pessoas visadas nos factos por ele imputados), bem como para indicar o motivo de conhecimento dos factos e o grau desse conhecimento por parte das três testemunhas então arroladas, e também para indicar os quesitos objecto da inquirição das testemunhas (cfr. o despacho de fl. 100);
– Em 5 de Janeiro de 2009, na sequência do assim ordenado judicialmente, apresentou o recorrente a seguinte exposição:
– <<[...]
Cumprindo o determinado por V. Exa., vem o requerente e assistente A complementar os dados constantes do seu requerimento anterior e proceder a sanação do pedido de abertura de instrução, o que faz nos termos seguintes.
1°
Vem requerer a instrução relativamente aos requeridos:
1° - D, solteira, maior,
2° - A, casada,
3°- C, solteiro, maior, todos residentes em Macau, Taipa, 氹仔XX街XX號XX花園第XX座XX樓XX.
2°
Uma vez que,
3°
No dia 13 de Janeiro de 2005, o participante intentou acção Executiva contra os participados para deles haver a quantia de MOP$257.500,00 patacas, acrescidos de juros vencidos e vincendos até ao efectivo e integral pagamento das dívidas.
4°
Tal acção corre os seus termos pelo 2° Juízo do Tribunal Judicial de Base da R.A.E.M., sob o n° CV2-05-0004-CEO.
5°
Citado os requeridos, por carta registada, com aviso de recepção, no dia 31 do mês de Janeiro de 2005, os mesmos nada disseram ou requereram, pelo que, nos termos legais, foi devolvido ao assistente, nela exequente, o direito de nomear bens à penhora.
6°
No uso desse direito o assistente deu à penhora, além do mais os seguintes bens:
a) Quaisquer depósitos bancários pertencentes aos réus;
b) Dois estabelecimentos pertencentes à participada D, um denominado “"XX童裝” sito Rua da XX, n° XX, r/c e outro denominado “XX地產” sito no mesmo prédio.
7°
Ordenada a penhora, não foi possível efectuar-se a do Estabelecimento Comercial referido em primeiro lugar por o mesmo se encontrar fechado, tudo indicando que o tinha sido após à citação para os termos daquela execução efectuada em 31 de Janeiro de 2005.
8°
Porém, no dia 24 de Novembro de 2006 procedeu-se à penhora do Estabelecimento Comercial referido em segundo lugar, tendo-se efectuado a inventariação dos bens nele existentes. (Doc. N° 1 junto com a participação).
9°
Na mesma data foi efectuada a notificação da requerida B mãe da D a qual estava presente quando da efectivação daquela diligência, no sentido de que, “o estabelecimento agora penhorado deve prosseguir sob a sua gestão, o seu normal funcionamento”.
10°
Ora, na mesma data, a requerida D com a colaboração dos restantes requeridos, em total desobediência àquela decisão judicial, encerrou o dito estabelecimento, dando sumiço ao seu recheio, devidamente inventariado apesar de dele não poderem dispor, distruindo-o totalmente.
11°
Os actos referidos no art. 8° integram um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo art. 199° do C.P. de Macau e outro de desobediência previsto e punido nos termos do art. 312º do mesmo C.P. de Macau e o art.319° do mesmo C.P. de Macau.
Pelo exposto, requer a V. Ex.ª., se digne declarar aberta a instrução, no âmbito da qual pretende que sejam inquiridas as seguintes testemunhas…
[...]>> (cfr. o teor literal de fls. 106 a 109 dos autos);
– Em 15 de Janeiro de 2009, proferiu a M.ma Juíza de Instrução Criminal despacho sobre essa exposição, nele afirmando, na sua essência, que após lido o teor dessa peça, descobe que da mesma não constam factos suficientes para suportar a verificação dos crimes dos art.os 199.o, 312.o e 319.o do CP, ao que acresce a observação de que a nova versão do requerimento tem conteúdo algo diferente do de fls. 53 a 57 quanto aos crimes imputados, pelo que deve o recorrente vir esclarecer quais os crimes é que pretende fazer imputar, e regularizar também o teor do seu requerimento da instrução, sob pena de indeferimento do mesmo (cfr. o despacho de fl. 111);
– Em 21 de Janeiro de 2009, veio o recorrente esclarecer e pedir o seguinte:
– <<[...]
Efectivamente no art.10o do seu último requerimento, invocou-se a distruição do recheio do estabelecimento, facto que não foi incluído na participação.
Assim, requer ... se digne dar sem efeito a parte final do artigo acima referido eliminando-se as expressões “distruindo-o totalmente”. O assistente também não deseja reiterar os factos integradores dos crimes previstos e punidos pelos art.312o e 319o ambos do Código Penal.
Assim, pede o prosseguimento dos autos apenas pelos factos integradores do crime de abuso de confiança, ou seja os factos referidos nos art.3o a 10o (com exclusão das expressões atrás referidas) do seu último requerimento” (cfr. o teor literal da peça de fl. 114);
– Em 23 de Fevereiro de 2009, os três recorridos foram constituídos arguidos (cfr. o despacho judicial de fl. 115v);
– Por despacho de 4 de Maio de 2009 (a fls. 134 a 134v), a mesma M.ma Juíza decidiu autorizar a constituição do recorrente como assistente, e, ao mesmo tempo, indeferir o pedido de abertura da instrução, por seguintes considerações, na sua essência:
– em face do requerimento de fl. 114, só seria possível ao Tribunal ponderar se os factos descritos nos art.os 3.o a 10.o do requerimento de abertura da instrução seriam ou não factos criminosos que sustentariam a verificação do crime de abuso de confiança;
– segundo o art.o 199.o, n.o 1, do CP, quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade incorre no crime de abuso de confiança;
– depois de lido atentamente o teor do referido requerimento da instrução, o Tribunal entende que os art.os 3.o a 10.o das fls. 106 a 109 não integram os factos que sustentam o crime de abuso de confiança e que o requerimento em causa não foi formulado de acordo com o art.o 265.o, n.o 3, alínea c), do CPP, pelo que ao Tribunal é difícil emitir, com base nesses factos, decisão de pronúncia ou de não-pronúncia dos arguidos pelo crime de abuso de confiança. Por isso, fica indeferido o requerimento de abertura da instrução.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Antes do mais, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal ad quem cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, é de observar que o recorrente colocou material e concretamente as seguintes questões como objecto do seu recurso:
– falta de fundamentação para a decisão de indeferimento da abertura da instrução;
– erro de julgamento nessa decisão, por violação, mormente, do art.o 271.o, n.o 2, e do art.o 265.o, n.o 3, alínea c), do CPP.
Começando pela indagação da primeira das questões, entende o presente Tribunal ad quem que a razão não está no lado do recorrente, porquanto lidas as considerações então tecidas pela M.ma Juíza a quo para sustentar a sua decisão de indeferimento do requerimento de abertura da instrução, é patente que ela já cumpriu o dever processual de fundamentação da sua decisão.
Entretanto, já tem razão o recorrente quando afirma que o seu requerimento de abertura da instrução não pode ter sido indeferido pela M.ma Juíza com fundamento em esse requerimento não ter sido formulado de acordo com o art.o 265.o, n.o 3, alínea c), do CPP: Na verdade, no art.o 11.o do requerimento da instrução, na versão então constante de fls. 106 a 109, já foi indicada a norma jurídica do art.o 199.o do CP como incriminadora do crime de abuso de confiança.
E no que ao art.o 271.o, n.o 2, do CPP diz respeito (em sintonia com o qual o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução), cumpre observar que diversamente do opinado pelo recorrente, este preceito processual penal jamais pode fazer questão no momento em que foi tomada a decisão judicial ora recorrida, visto que a emissão, em 24 de Novembro de 2008, do “primeiro” despacho de aperfeiçoamento de fl. 100 já representou congruentemente que o requerimento de abertura da instrução não foi rejeitado nos termos do art.o 271.o, n.o 2, do CPP.
Cabe agora indagar se o requerimento de abertura da instrução deve ser indeferido.
Como se sabe, conforme o estatuído no n.o 1 do art.o 271.o do CPP, embora o requerimento para abertura da instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, mas já deve conter, em súmula, e para já, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação.
In casu, só se concentra na análise do requerimento da instrução formulado em 12 de Setembro de 2008 (a fl. 95), com redacção posteriormente pretendida pelo recorrente nos termos vertidos na exposição de 5 de Janeiro de 2009 (a fls. 106 a 109), e esclarecida subsequentemente na exposição de 21 de Janeiro de 2009 (a fl. 114), posto que à luz das disposições conjugadas do art.o 100.o, n.o 7, segunda parte, e 270.o, n.o 2, do CPP, não é de relevar processualmente o “primeiro” requerimento de abertura da instrução datado de 25 de Janeiro de 2008, por esse requerimento ter sido apresentado pelo Exm.o Advogado do recorrente ainda antes da notificação da própria pessoa deste do despacho de arquivamento do inquérito, com a agravante de que o próprio recorrente, após notificado pessoalmente, em 4 de Fevereiro de 2008, do arquivamento do inquérito, deduziu reclamação dessa decisão do Ministério Público.
Pois bem, no “segundo e último” despacho de aperfeiçoamento, exarado em 15 de Janeiro de 2009 (a fl. 111), já afirmou a M.ma Juíza a quo que descobriu ela que da versão do requerimento de abertura da instrução de fls. 106 a 109 não constavam factos suficientes para suportar a verificação nomeadamente do crime do art.o 199.o do CP, daí que ela convidou o recorrente para regularizar o teor do seu requerimento da instrução, sob pena de indeferimento do mesmo.
Na sequência desse despacho de aperfeiçoamento, veio o recorrente tentar satisfazê-lo através da exposição datada de 21 de Janeiro de 2009 (a fl. 114), porém, em vão, também na óptica do presente Tribunal de recurso, porquanto essa exposição – tal como observou perspicazmente o Digno Procurador-Adjunto no seu judicioso parecer na esteira da conceituada e mui pertinente posição jurídica aí citada – não trouxe nada em concreto a nível de factos para efeitos de aferição do dolo na prática dos actos integradores do tipo-de-ilícito objectivo do abuso de confiança, o que significa que não constou dessa exposição “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ... de uma pena”, ao arrepio do exigido na alínea b) do n.o 3 do art.o 265.o do CPP, de cuja observância o requerimento de abertura da instrução do recorrente, sendo um libelo acusatório em sentido material, também não pode ficar isento.
Pelo que é de validar mesmo o juízo de valor formado pela M.ma Juíza na decisão ora recorrida, no sentido de que os art.os 3.o a 10.o de fls. 106 a 109 não integram os factos que sustentam o crime de abuso de confiança.
Nesta perspectiva, é de manter a decisão de indeferimento do requerimento de abertura da instrução, por falta de satisfação total do concretamente determinado no despacho de aperfeiçoamento de 15 de Janeiro de 2009, já com cominação expressa do indeferimento do mesmo.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao peticionado no recurso, com custas pelo assistente recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 29 de Março de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 453/2009 Pág. 1/18