Processo n.º 826/2011 Data do acórdão: 2012-2-23
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– art.o 25.o, n.o 1, do Estatuto do Advogado
– usurpação de funções de advogado
– art.o 322.o, alínea b, do Código Penal
– crime público
– tentativa
– indícios suficientes
– actos próprios da profissão de advogado
– art.o 1.o do Estatuto do Advogado
– art.o 11.o, n.o 1, do Estatuto do Advogado
– profissão de advogado
– profissão liberal remunerada
– consulta jurídica gratuita
– informações jurídicas preliminares
– mera arrogação do título profissional
– exercício concreto da profissão
– publicidade de oferta de serviço jurídico
– art.o 9.o, n.o 1, do Código Deontológico
S U M Á R I O
1. O art.o 25.o do vigente Estatuto do Advogado (EA) prevê um tipo legal especial de usurpação de funções (de advogado), algo distinto, portanto, do tipo legal, geral, de usurpação de funções previsto no art.o 322.o do actual Código Penal (CP).
2. Ambos os delitos são de natureza pública e não admitem a figura de tentativa.
3. Os indícios suficientes são extraídos através do exame global e crítico, feito com devida razoabilidade baseada nas regras da experiência da vida humana, dos elementos carreados aos autos.
4. A resposta ao que se entende por “actos próprios da profissão de advogado” encontra-se já tecida na letra do art.o 1.o e do n.o 1 do art.o 11.o do EA: “O exercício da advocacia inclui o mandato judicial, a consultadoria jurídica e a representação voluntária” (art.o 1.o); e “Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau podem, em todo o Território e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada” (art.o 11.o, n.o 1).
5. Com efeito, da conjugação estes dois preceitos, se retira que a profissão de advogado em Macau é em si uma profissão liberal remunerada cujo exercício compreende o mandato judicial, a consultadoria jurídica e a representação voluntária.
6. Assim, são actos próprios da profissão de advogado ou do exercício da advocacia o mandato judicial, a consultadoria ou consulta jurídica e a representação voluntária exercidos em regime de profissão liberal remunerada.
7. A prestação de informações jurídicas preliminares acerca da matéria de constituição de sociedade comercial e de arrendamento comercial em Macau, por mais preliminares que sejam, não deixe de fazer parte ainda da actividade de consulta jurídica.
8. Entretanto, não se vislumbra qualquer norma legal actualmente vigente a proibir a prestação gratuita, em Macau, de consulta jurídica por qualquer pessoa particular não previamente inscrita na Associação dos Advogados de Macau, pelo que essa prestação gratuita não pode ser atingida pelo tipo legal especial do n.o 1 do art.o 25.o do EA.
9. Como a consulta jurídica gratuita prestada em Macau por uma pessoa particular não previamente inscrita na Associação dos Advogados de Macau não pode ser considerada como acto próprio da profissão de advogado, essa prestação da consulta já faz falhar, desde logo, a verificação do elemento de “exercer profissão” (de advogado) postulado na na parte inicial da alínea b) do art.o 322.o do CP, em relação a essa pessoa particular.
10. A mera arrogação do título profissional, por si só, ou seja, quando desligada do exercício concreto da profissão em questão, não conduz à consumação do crime de usurpação de funções previsto na alínea b) do art.o 322.o do CP.
11. A simples publicidade, feita por uma entidade particular não previamente inscrita na Associação dos Advogados de Macau, de oferta de serviço jurídico não pode ser qualificada como um acto próprio da profissão de advogado, precisamente porque é o próprio art.o 9.o, n.o 1, do vigente Código Deontológico que veda a todo o advogado a prática deste tipo de actos publicitários.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 826/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): Associação dos Advogados de Macau
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o despacho judicial de 8 de Novembro de 2011 que decidiu não pronunciar os arguidos A e B pelo denunciado crime de usurpação de funções, veio a assistente Associação dos Advogados de Macau (AAM) recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, a fim de pedir a revogação dessa decisão com almejada pronúncia dos dois arguidos, pela prática do crime de usurpação de funções, “p.e.p. nos artigos 25.º do Estatuto do Advogado e 322.º b) do Código Penal nos termos requeridos pela ora Recorrente no seu Requerimento de Abertura de Instrução”, tendo, para o efeito, concluído a sua motivação de moldes seguintes (e vertidos a fls. 213 a 220 dos presentes autos penais correspondentes):
– <<[…]
I. Vem o presente recurso interposto do Despacho de Não Pronúncia dos arguidos A e B proferido pelo douto Tribunal a quo a fls. 184v e 185 dos presentes autos.
II. Após análise dos elementos carreados para os autos, nomeadamente os depoimentos da responsável pela COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, D, e do Dr. E, o douto Tribunal a quo concluiu que não existem factos concretos ou indícios suficientes que sustentem que a responsável pela sociedade referida se arrogou expressamente possuir a qualificação de advogada e nem ofereceu serviços que só os advogados podem prestar, servindo apenas como uma plataforma de ligação e coordenação entre os seus clientes e outros advogados.
III. Salvo devido respeito por melhor opinião, a ora Recorrente está em crer que as próprias conclusões do despacho recorrido seriam suficientes para que tivesse sido proferido Despacho de Pronúncia, ao que acresce que quer em sede da fase de Inquérito, quer na fase de Instrução, foram recolhidos indícios suficientes da prática por parte dos arguidos do crime de usurpação de funções, p. e p. pelos artigos 25.º, n.º 1 do Estatuto do Advogado e 322.º, alínea b) do Código Penal.
IV. O presente procedimento criminal foi aberto na sequência de participação criminal apresentada pela ora Recorrente contra a COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, e contra os seus legais representantes A e B, pela prática de factos que são passíveis de consubstanciar a prática do crime de usurpação de funções p. e p. pelos artigos 25.º, n.º 1 do Estatuto do Advogado e 322.º, alínea b) do Código Penal.
V. Por Despacho proferido em 31 de Janeiro de 2011, foi determinado o arquivamento do inquérito, sendo que a Recorrente, inconformada com tal arquivamento, requereu a Abertura de Instrução, a qual foi admitida somente quanto aos arguidos A e B e rejeitada relativamente à COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, por se entender que a mesma, enquanto pessoa colectiva, não pode ser sujeito activo do crime ora em apreço.
VI. Nas fases de Inquérito e Instrução foi possível apurar que a COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, da qual são representantes legais A e B, arguidos nos presentes autos, tem como objecto social a actividade de “one stop commercial services”, que, distribuiu um panfleto publicitário relativo à prestação de serviços de apoio na constituição de sociedades e serviços jurídicos, donde consta especificamente: “Setting up a company in Macau with no headheache!”, ou seja, “Constituição de uma sociedade em Macau sem dores de cabeça”; “Our professionals can assist you in every single step of the formation of your company”, ou seja, “Os nossos profissionais ajudá-lo-ão em todos os passos da constituição da sua sociedade”; e “Accounting and legal services”, ou seja, “Serviços de contabilidade e jurídicos”.
VII. Mais se apurou que os arguidos não estão inscritos como advogados junto da Associação dos Advogados de Macau, ora Recorrente, e nem a COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA está registada como sendo um escritório de advogados.
VIII. Por outro lado, a testemunha D ou D1, confirmou que um dos objectos da sociedade é assistir os clientes para a constituição de sociedades; que quando os clientes precisam de serviços jurídicos a sociedade lhes recomenda Advogados inscritos na Associação dos Advogados de Macau; que, no que respeita à prestação de serviços jurídicos a sociedade é apenas um agente que passa os processos aos advogados inscritos em Macau; e, que dispunha de recibos de transferência dos clientes para os escritórios dos Advogados, tendo-se prontificado a apresentá-los, e
IX. A testemunha E, Ilustre Advogado, confirmou que os seus serviços já haviam sido solicitados pela Senhora D1, aliás D, no sentido de assistir clientes da Primeira Denunciada, nomeadamente, na constituição de sociedades, tendo sido inclusive junto o documento de fls. 153 a 156 relativo a correspondência trocada entre a COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, um dos seus clientes e o Ilustre Advogado Dr. E, donde constam respostas directas da COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA a perguntas como se é possível estabelecer em Macau uma filial ou escritório de representação da nossa sociedade de Hong Kong, ao que foi respondido que não havia qualquer problema nisso.
X. Indícios suficientes na acepção dos artigos 265.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Penal, e artigo 289.°, n.° 2 do mesmo diploma legal, não se tratam de prova cabal da prática do crime, tal prova é reservada para a fase de julgamento.
XI. Nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 1, do artigo 11.° e 18.° do Estatuto do Advogado, doravante simplesmente designado por E.A., na versão que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 42/95/M, de 21 de Agosto, só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau podem, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada, sendo que o exercício da procuradoria, designadamente judicial, administrativa, fiscal e laboral, e de consultadoria jurídica a terceiros, só pode ser exercida por advogados inscritos na Associação dos Advogados de Macau, onde se abrangem também os gabinetes formados exclusivamente por advogados e as sociedades de advogados.
XII. São, entre outros, actos próprios da profissão de advogado para efeitos do referido artigo 11.° do E.A., o exercício do mandato forense, a consulta jurídica, em qualquer área do direito, a elaboração de contratos e a prática de actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais, como é o caso da constituição de sociedades e one stop commercial services.
XIII. O conteúdo da consulta jurídica, consiste no esclarecimento jurídico e no conselho jurídico, que constituem o cerne da tarefa do advogado, pelo que ao publicitar a prestação de serviços jurídicos, os ora arguidos estão a publicitar a prestação de serviços de consulta jurídica.
XIV. Por outro lado, ao publicitarem a prestação de serviços relativos a constituição de sociedades, os Denunciados estão a publicitar a prestação de serviços relativos à elaboração de contratos e a prática de actos preparatórios tendentes à constituição de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais.
XV. Os serviços jurídicos e de constituição de sociedades, são actos próprios da profissão de advogado, ou seja, apenas os advogados inscritos na Associação dos Advogados de Macau podem, em regime de profissão liberal remunerada, prestar tais serviços aos cidadãos, quer eles sejam residentes de Macau, quer se desloquem a esta Região Administrativa Especial com o propósito de constituir uma sociedade ou obter aconselhamento e serviços jurídicos em qualquer outra área do direito.
XVI. Tais tarefas, quando exercidas profissionalmente, são, por lei, exclusivamente acomedidas aos advogados prende-se com a defesa dos cidadãos e com politicas de garantia de que tais serviços são prestados por quem conhece a Lei e por quem cuja actividade está sujeita a regulamentação ética e deontológica exigente mediante o controle por parte de uma Associação de direito público, estando sujeita a consequências disciplinares a violação de tais regras no acompanhamento de qualquer questão jurídica que seja é confiada.
XVII. A decisão ora em crise não teve devidamente em linha de conta o que são os actos próprios e exclusivos do advogado, e, consequentemente, que as actividades publicitadas pelos Arguidos fazem parte de tais actos reservados aos advogados.
XVIII. Ademais, não obstante qualquer pessoa poder tentar resolver os seus assuntos sem recorrer aos serviços profissionais de advogado, o que é certo é que só os advogados estão legalmente autorizados a prestar, em regime de profissão liberal remunerada, os serviços oferecidos e publicitados pelos Arguidos e que constituem a sua actividade profissional e societária.
XIX. A COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA é uma sociedade comercial com fins lucrativos e por isso não iria incluir no seu objecto social uma actividade que não exerce e nem ia publicitar a prestação de serviços pela sua própria equipa que não presta, sem que isso não lhe trouxesse alguma vantagem financeira.
XX. Pelo que, tendo-se apurado que mesmo antes do encaminhamento dos seus clientes para um advogado, a COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA exerce consulta jurídica, ouvindo e dando resposta às dúvidas jurídicas dos seus clientes − veja-se a resposta contida no e-mail de fls. 155, e que a actividade de “one stop commercial services” está incluída no objecto social da COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA, é porque a referida sociedade se dedica à mesma e não se limita a transferir os seus clientes para um Advogado, sempre que lhes solicitam este tipo de serviços.
XXI. Ao assim agir, é óbvio que os arguidos através da COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA estão implicitamente a arrogar-se na posição legal de prestar as actividades que estão exclusivamente reservadas aos advogados, o que, como bem se sabe, não é verdade.
XXII. Ao contrário do mencionado no despacho em recurso, necessário não é que os arguidos se intitulem expressamente como advogados, já que, nos termos do artigo 322.° do C.P., a prática efectiva dessa actividade não é assim elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, pelo que a simples publicidade e oferta de serviços exclusivos da profissão de advogado constituem, por si só, a prática do crime de usurpação de funções, tanto mais quando a advocacia se trata de uma actividade profissional indispensável para uma eficaz garantia do exercício dos direitos do cidadão, de elevada importância social e de eminente interesse público.
XXIII. Pelo que, mesmo que os arguidos se tivessem limitado à simples publicitação e oferta daqueles serviços, próprios e exclusivos do advogado, tal publicidade por si só é passível de atingir o bem jurídico que a norma em questão também visa acautelar, ou seja, o_interesse, a função e o carácter eminentemente público que esta profissão − de advogado − detém, e a protecção dos interesses e confiança dos cidadãos nestes profissionais,
XXIV. Assim, a ora Recorrente está em crer que os elementos factuais e probatórios existentes nos autos são suficientes para formar um juízo de probabilidade, mais positiva do que negativa, sobre a prática pelos denunciados do crime de usurpação de funções, formando a convicção de que os mesmos irão muito provavelmente ser condenados por isso.
XXV. Demonstrada que está a existência de indícios suficientes de que os arguidos praticaram o crime de usurpação de funções p.e p. nos artigos 25.º do E.A. e 322.º b) do C.P. e que muito provavelmente serão julgados e condenados pela prática de tal crime, a decisão sob recurso padece de erro notório na apreciação dos elementos de prova indiciária carreados para o presente processo.
XXVI. A decisão sob recurso viola assim o disposto nos artigos 289.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, vem como os artigos 11.°, 18.° e 25.° do Estatuto do Advogado e 322.°, alínea b) do Código Penal.>>
A propósito do recurso, responderam os dois arguidos (unamente a fls. 224 a 225) no sentido de concordarem com o entendimento da Mm.a Juíza de Instrução Criminal, enquanto a Digna Delegada do Procurador autora do despacho de arquivamento do inqúerito penal em questão pugnou (a fls. 227 a 227v) pela improcedência da argumentação da recorrente assistente.
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 236 a 236v), considerando materialmente improcedente o recurso, não obstante entender que a preocupação da assistente se mostrava compreensível.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos legais, e concluídas a deliberação e votação, cumpre decidir do recurso, nos termos constantes do presente acórdão, lavrado pelo primeiro juiz-adjunto, nos termos do art.o 417.o, n.o 1, do vigente Código de Processo Penal (CPP).
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Examinados global e criticamente, à luz das regras da experiência da vida humana em normalidade das situações, todos os elementos probatórios então carreados aos autos penais subjacentes à presente lide recursória (neles se incluindo o teor de fls. 2 a 25v, 36, 39 a 44, 151 a 156 e 169 a 169v), é de dar por suficientemente indiciada, e apenas suficientemente indiciada, a seguinte factualidade:
– a “Companhia de Serviços Comercial C (Macau), Lda” (doravante abreviada como Companhia), constituída em Janeiro de 2008 com a ajuda do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, tem por objecto social “serviced office, virtual office e one stop commercial service”, dedicando-se à prestação de serviços a nível empresarial aos seus clientes, por exemplo, auxiliar os clientes na constituição de sociedade comercial em Macau, fornecer o serviço de secretariado e tradução aos clientes, e dar de arrendamento a sede da Companhia para funcionar como o domicílio comercial dos clientes, e recomendar, na qualidade de intermediária, advogados aos clientes se estes tiverem necessidade;
– chegaram a ser colocados alguns panfletos publicitários no átrio do edifício da sede da Companhia, com o seguinte teor, designadamente:
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– os denunciados e arguidos A e B são administradores da Companhia, desempenhando, respectivamente, as funções de chefe da administração e de supervisor financeiro da Companhia, e deslocando-se ambos a Macau só uma vez por ano, sensivelmente;
– em meados 2008 a 2009, a sr.a D (também conhecida por D1), como empregada da Companhia – com o posto, no início, de gerente de promoção de negócios, e, depois, de gerente geral – chegou a recomendar clientes da Companhia ao Exm.o Advogado Dr. E para constituição de sociedade comercial em Macau, o qual não tinha qualquer relação informal nem formal nem profissional com a Companhia;
– no contacto estabelecido com os clientes da Companhia, a sr.a D chegou a prestar-lhes informações jurídicas preliminares acerca da matéria de constituição de sociedade comercial e de arrendamento comercial em Macau;
– A, B e D não estavam inscritos na AAM.
Outrossim, do exame dos autos sabe-se que:
– em Junho de 2010, a AAM apresentou ao Ministério Público participação criminal contra a Companhia, A e B, “com vista ao apuramento da sua responsabilidade criminal pela prática do crime de usurpação de funções p. e p. pelos artigos 25.o, n.o 1 do Estatuto do Advogado e 322.o, alínea b) do Código Penal” (cfr. o teor de fls. 2 a 9 dos autos);
– por despacho proferido em 31 de Janeiro de 2011 (a fl. 61), decidiu a Digna Delegada do Procurador titular do inquérito penal em questão arquivar os autos nos termos do art.o 259.o, n.o 2, do CPP, para aguardar pela eventual reabertura do inquérito no futuro se houvesse novos elementos probatórios;
– na sequência disso, a AAM requereu a abertura da instrução (cfr. nomeadamente o petitório de fls. 114 a 136, apresentado a convite judicial), para rogar a emissão do “despacho de pronúncia dos ora Denunciados pela prática do crime de usurpação de funções, p. e p. no artigo 322.o, alínea b), do Código Penal e 25.o do Estatuto do Advogado”;
– por despacho judicial de 10 de Maio de 2011 (de fls. 139 a 139v), foi rejeitado esse requerimento somente na parte respeitante à Companhia, por entender inexistir norma legal expressa aplicável ao caso que fosse susceptível de fazer responsabilizar penalmente essa pessoa colectiva em sede do tipo legal de usurpação de funções denunciado pela AAM, rejeição parcial essa que não foi impugnada pela AAM;
– a final, foi feito o debate instrutório em 8 de Novembro de 2011 com emissão (a fls. 184 a 185) do despacho, originalmente redigido em chinês, de não-pronúncia relativamente aos arguidos A e B, com fundamento judicial nuclear em que apesar de nos seus panfletos publicitários a Companhia ter declarado ao público que podia fornecer serviço profissional de apoio, incluindo o serviço jurídico, não havia, até à fase processual em questão, factos concretos ou indícios suficientes a fazer crer que a responsável da Companhia chamada D tenha afirmado aos clientes que ela tinha a qualificação de advogado, ou tenha praticado efectivamente a actividade reservada exclusivamente a advogado em termos susceptíveis de fazer com que os clientes tenham sido induzidos em erro sobre a sua qualificação profissional, sendo que resultavam mais dos autos que tal responsável da Companhia tranferiu a actividade da Companhia em matéria jurídica respeitante, por exemplo, à constituição de sociedade comercial, a advogado de profissão, tendo desempenhado, em grande medida, o papel de plataforma e fornecimento de apoio, daí que inexistiam, até à fase processual em causa, indícios suficientes de os dois representantes legais A e B da Companhia terem cometido o crime de usurpação de funções, “p. e p. pelo art.o 322.o, alínea b), do <> de Macau e pelo art.o 25.o do Estatuto do Advogado”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre observar que o art.o 25.o do vigente Estatuto do Advogado (doravante abreviado como EA) prevê um tipo legal especial de usurpação de funções (de advogado), algo distinto, portanto, do tipo legal, geral, de usurpação de funções previsto no art.o 322.o do CP.
De facto:
O art.o 25.o do EA, com a epígrafe de “Usurpação de funções”, reza que:
– <<1. Quem praticar actos próprios da profissão de advogado, se intitular advogado, utilizar título equivalente em qualquer língua, ou usar insígnia sem estar inscrito na associação pública profissional, será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
2. A pena prevista no número anterior é também aplicável:
a) Às pessoas que dirijam escritórios que funcionem com os agentes previstos no número anterior;
b) Aos advogados que neles trabalhem;
c) Aos que lhes facultem conscientemente os respectivos escritórios;
d) Àqueles que, a qualquer título, retirem benefícios da associação a que se refere o n.o 3 do artigo 18.o.>>
Enquanto o art.o 322.o do CP, não obstante com a mesma espígrafe de “Usurpação de funções”, prevê que:
– <
a) sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos próprios de funcionário ou de força de segurança pública, arrogando-se, expressa ou tacitamente, essa qualidade,
b) exercer profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou as não preenche, ou
c) continuar no exercício de funções públicas depois de lhe ter sido oficialmente notificada demissão ou suspensão de funções,
é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.>>
É, agora, momento de responder à recorrente AAM se nos autos há, como ela defende, indícios suficientes da verificação do crime de usurpação de funções (sendo líquido que já não pode fazer parte no objecto dessa indagação a própria pessoa colectiva da Companhia, devido ao sentido e alcance do caso julgado formal já formado no então despacho judicial de rejeição parcial da abertura da instrução).
Pelo critério de especialidade, há que analisar esta questão cerne do recurso sub judice, primeiro à luz do tipo-de-ilícito, de natureza pública, plasmado no art.o 25.o do EA.
Pois bem, segundo o elenco dos indícios suficientes (sendo de abraçar a definição doutrinária do conceito de “indícios suficientes” sobejamente referenciada na motivação do recurso) que este Tribunal ad quem consegue, e apenas consegue, colher do exame global e crítico, feito com devida razoabilidade baseada nas regras da experiência da vida humana, dos elementos então carreados aos autos e já descritos na parte II do presente acórdão, foi a sr.a D quem prestou informações jurídicas preliminares aos clientes da Companhia acerca da matéria de constituição de sociedade comercial e de arrendamento comercial em Macau.
Entretanto, do mesmo conjunto dos indícios suficientes, já não decorre que D tenha chegado a intitular-se advogada, ou utilizar título equivalente em qualquer língua, ou usar qualquer insígnia correspondente.
Assim sendo, passa-se a abordar a aplicabilidade, ou não, a essa senhora, da hipótese prevista na parte inicial do n.o 1 do art.o 25.o do EA.
A este propósito, cabe estudar primeiro o que se deve entender por “actos próprios da profissão de advogado”.
E a resposta encontra-se já tecida na letra do art.o 1.o e do n.o 1 do art.o 11.o do EA: “O exercício da advocacia inclui o mandato judicial, a consultadoria jurídica e a representação voluntária” (art.o 1.o); e “Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau podem, em todo o Território e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada” (art.o 11.o, n.o 1).
Com efeito, da conjugação estes dois preceitos, se retira que a profissão de advogado em Macau é em si uma profissão liberal remunerada cujo exercício compreende o mandato judicial, a consultadoria jurídica e a representação voluntária (sendo, por outro lado, certo que um profissional liberal, como o próprio termo já indica, não está nem precisa de estar sujeito à direcção efectiva de outrem no exercício da sua actividade profissional). Ou seja, são actos próprios da profissão de advogado ou do exercício da advocacia o mandato judicial, a consultadoria ou consulta jurídica e a representação voluntária exercidos em regime de profissão liberal remunerada.
No caso concreto dos autos, embora a prestação de informações jurídicas preliminares acerca da matéria de constituição de sociedade comercial e de arrendamento comercial em Macau, por mais preliminares que sejam as mesmas, não deixe de fazer parte ainda da actividade de consulta jurídica, como não se conseguiu colher dos autos indícios suficientes de que a sr.a D tenha prestado essas informações, para já, em contrapartida de alguma remuneração paga pelos seus clientes por causa dessa consulta jurídica, essa sua actividade não deve ser considerada atingida pela norma do n.o 1 do art.o 11.o do EA.
Efectivamente, não se vislumbra qualquer norma legal actualmente vigente a proibir a prestação gratuita, em Macau, de consulta jurídica por qualquer pessoa particular não previamente inscrita na AAM.
Com o que se conclui que a parte inicial do n.o 1 do art.o 25.o do EA também não pode fazer questão em relação à consulta jurídica então materialmente prestada pela sr.a D, a qual, como tal, e também por força da já acima entendida não aplicabilidade, a ela, da restante parte da norma do n.o 1 do mesmo art.o 25.o, não pode ser considerada como agente do crime de usurpação de funções aí especialmente previsto, pelo que logicamente também não se pode aplicar a alínea a) ou a alínea c) do n.o 2 desse art.o 25.o para fazer responsabilizar criminalmente os dois arguidos denunciados pela AAM. Por outro lado, não estando suficientemente indiciada qualquer relação formal ou informal ou profissional entre o Exm.o Advogado Dr. E e a Companhia, nem é aplicável aos dois arguidos denunciados a alínea d) do n.o 2 do art.o 25.o.
Em suma, não se pode pronunciar os dois arguidos em sede do tipo legal de usurpação de funções, p. e p. pelo art.o 25.o do EA.
Sendo inviável, nos termos analisados, a emissão de juízo de pronúncia criminal contra os dois arguidos administradores da Companhia sob a égide do tipo legal do art.o 25.o do EA, resta saber se é possível configurar alguma responsabilidade penal deles (ou até da referida sr.a D) aos olhos sancionatórios do tipo legal, igualmente de natureza pública, do art.o 322.o, alínea b), do CP (não estando, nota-se, em causa, no caso dos autos, a situação prevista na alínea a) ou na alínea c) deste preceito incriminador).
Pois bem:
– e mesmo oficiosamente falando, se em sintonia com o atrás concluído, a consulta jurídica então prestada pela sr.a D não pode ser considerada como acto próprio da profissão de advogado (sobretudo por ausência, para já, de indícios suficientes de que ela tenha recebido alguma remuneração paga pelos clientes da Companhia por mor dessa consulta jurídica), já falha, desde logo, a verificação do elemento de “exercer profissão” (in casu, de advogado), postulado na na parte inicial da alínea b) do art.o 322.o do CP, em relação a essa senhora;
– e no concernente aos dois arguidos denunciados pela recorrente, naufraga a pretensão desta de emissão, por parte do presente Tribunal ad quem, da decisão de pronúncia pelo cometimento do crime previsto na mesma alínea b) do art.o 322.o do CP, uma vez que não se conseguiu extrair dos autos quaisquer indícios suficientes de que os dois arguidos tenham prestado qualquer consulta jurídica a alguém em Macau;
– outrossim, no plano exclusivamente jurídico falando, com abstracção, pois, do caso concreto ora em análise, a mera arrogação do título profissional, por si só, ou seja, quando desligada do exercício concreto da profissão em questão, não conduz à consumação do crime de usurpação de funções previsto na alínea b) do art.o 322.o do CP, delito esse em relação ao qual não é admissível, nos termos do art.o 22.o, n.o 1, do CP, a figura de tentativa, tal como o que acontece no tangente ao crime especialmente tipificado no art.o 25.o do EA;
– sendo de notar que a simples publicidade de oferta de serviço jurídico nos termos então feitos através dos panfletos da Companhia não pode ser qualificada como um acto próprio da profissão de advogado, precisamente porque é o próprio art.o 9.o, n.o 1, do vigente Código Deontológico que veda a todo o advogado a prática deste tipo de actos publicitários.
Por todo o exposto, improcede a pretensão da AAM formulada no recurso, sem necessidade de abordagem, por estar logicamente prejudicada, do demais alegado na sua motivação, sendo, por conseguinte, de manter a decisão recorrida de não-pronúncia, ainda que com base na fundamentação acima explanada, algo diferente da invocada pela Mm.a Juíza a quo.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas pelo recurso, dada a isenção subjectiva da assistente.
Fixam em mil patacas os honorários totais do Exm.o Defensor Oficioso dos dois arguidos, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 23 de Fevereiro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Vencido seguir declaração)
Processo nº 826/2011
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Vem a Associação dos Advogados de Macau, assistente, recorrer do despacho de não pronúncia proferido pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal.
Está em causa saber se nos autos existem “indícios suficientes” da prática por parte dos arguidos do crime de “usurpação de funções” que pela ora recorrente lhes é imputado.
Preceitua o art. 289° do C.P.P.M. que:
“1. Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não-pronúncia.
2. Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.
(…)”.
Entendendo o Mmo JIC que inexistentes eram tais “indícios”, e, atento o n.° 2 do transcrito preceito legal, proferiu o despacho ora recorrido.
Cremos, porém, que não é de manter o assim decidido.
Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista.
Resulta (nomeadamente) dos autos que os arguidos, (certo sendo que apenas em relação a estes cumpre decidir), são os legais representantes da “COMPANHIA DE SERVIÇOS COMERCIAL C (MACAU), LDA”, e que, esta, tendo como objecto social “one stop comercial services”, publicita, (também nomeadamente), a prestação de serviços em todas as fases para a constituição de sociedades assim como de “serviços jurídicos”.
Dos mesmos autos resulta também que a dita sociedade, através de (pelo menos) uma sua trabalhadora, solicitou os serviços de um advogado local para a assistência na formalização de constituição de sociedades.
Ora, nos termos do art. 1° do “Estatuto do Advogado”, (versão dada pelo D.L. n.° 42/95/M de 21.08):
“O exercício da advocacia inclui o mandato judicial, a consultadoria jurídica e a representação voluntária”.
Em sintonia com o assim estatuído, preceitua o art. 11° do mesmo diploma que:
“1. Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau podem, em todo o Território e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada.
2. Os docentes universitários de Direito que se limitem a dar pareceres jurídicos escritos não se consideram em exercício da advocacia e não são, por isso, obrigados a inscrever-se na associação pública.
3. O exercício de consulta jurídica por licenciados em Direito que sejam funcionários públicos não impõe a obrigação de inscrição na associação pública”.
Também, em conformidade com o art. 18° do mesmo Estatuto:
“1. O exercício da procuradoria, designadamente judicial, administrativa, fiscal e laboral, e de consulta jurídica a terceiros, só pode ser exercida por advogados inscritos na Associação dos Advogados de Macau.
2. Consideram-se abrangidos pela estatuição do número anterior os gabinetes formados exclusivamente por advogados e as sociedades de advogados.
3. Incorrem na pena de suspensão os advogados que, em violação do presente Estatuto e com prejuízo da sua independência técnica e plena isenção, exerçam a sua actividade sob a direcção efectiva de terceiro não inscrito na Associação dos Advogados de Macau, ou o façam em associação de qualquer espécie com quem não esteja inscrito na referida Associação.
4. Não ficam abrangidos pela proibição do n.º 1 os serviços de consulta jurídica mantidos pela Administração, no âmbito da sua política de acesso dos cidadãos ao Direito”.
E, nos termos do seu art. 25°:
“1. Quem praticar actos próprios da profissão de advogado, se intitular advogado, utilizar título equivalente em qualquer língua, ou usar insígnia sem estar inscrito na associação pública profissional, será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
2. A pena prevista no número anterior é também aplicável:
a) Às pessoas que dirijam escritórios que funcionem com os agentes previstos no número anterior;
b) Aos advogados que neles trabalhem;
c) Aos que lhes facultem conscientemente os respectivos escritórios;
d) Àqueles que, a qualquer título, retirem benefícios da associação a que se refere o n.º 3 do artigo 18.º”.
No caso dos presentes autos, não sendo os arguidos advogados, (ou advogados estagiários), inscritos na Associação dos Advogados de Macau, nem sendo a sociedade da qual são representantes legais, uma “sociedade de advogados”, cremos pois que inegável é que com a atrás descrita factualidade, em causa está o crime de “usurpação de funções”, p. e p. pelo art. 25° do aludido Estatuto de Advogados, com referência ao art. 322°, al. b) do C.P.M..
De facto, neste útimo comando legal estatui-se que:
“Quem
a) sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos próprios de funcionário ou de força de segurança pública, arrogando-se, expressa ou tacitamente, essa qualidade,
b) exercer profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou as não preenche, ou
c) continuar no exercício de funções públicas depois de lhe ter sido oficialmente notificada demissão ou suspensão de funções, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
E, ainda que não existam indícios no sentido de se poder afirmar que a sociedade em questão, (através dos seus trabalhadores), tem vindo a praticar “actos formais” necessários à constituição de sociedades, dúvidas não parece haver que no âmbito do contacto que tem com os seus clientes, pratica, no mínimo, actos preparatórios para tal fim, prestando também informações (ou conselhos) sobre “questões jurídicas”, nomeadamente, sobre a viabilidade jurídica das pretensões que lhe são apresentadas, afigurando-se-nos que tal se integra na referida “função de consulta jurídica” que, nos termos dos transcritos art°s 1°, 11°, n.° 1 e art. 18°, n.° 1 (do “Estatuto do Advogado”), compete aos advogados ou advogados estagiários.
De facto, para a verificação do crime em questão, necessários são os seguintes elementos:
- o exercício da profissão para que a lei exige título ou o preenchimento de certas condições;
- que o agente se arrogue, expressa ou tacitamente, possuí-las; e
- que não possua aquele título ou não preencha as aludidas condições.
E, como perante análoga situação já decidiu o Tribunal da Relação do Porto:
“Para cometer o crime previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 400 n.2 do Código Penal e 53 n.1 do Decreto-Lei n.84/84, de 16 de Março, não é necessário que o agente se arrogue possuir o título de advogado. Basta que ele, ainda que não invocando o título, apareça a exercer actos próprios daquela profissão, como se possuísse o título ou reunisse as condições que a lei exige. ”; (cfr., Acórdão de 28/06/1995, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido decidiu também a Rel. de Lisboa, afirmando:
“O legislador contenta-se com um arrogo implícito por banda do agente, sendo suficiente, assim, que este, ainda que não invocando a qualidade que pretende impor, exerça os actos próprios dela, como se possuísse título ou reunisse as condições que a Lei para tanto reclama.
O que importa, assim, é o mero exercício de actos próprios da função pública ou da profissão sem título ou condições, desde que a sua expressão pública seja de molde a convencer as pessoas de que se é funcionário ou se reúne as condições legais ou profissionais”; (cfr., Acórdão de 29/11/2001, www.dgsi.pt).
Na verdade, e como se deixou dito, é elemento constitutivo do crime de usurpação de funções na modalidade de exercício ilegal de profissão, que o agente se arrogue possuir o título ou condições exigidas por lei para o exercício da profissão, bastando, porém, que o faça implicitamente, ou seja, praticando os actos próprios da profissão, convencendo as pessoas para quem pratica os actos que tem condições legais para os praticar.
E, se alguém pratica actos próprios de uma determinada profissão, fazendo, por exemplo, anunciar essa prática, logicamente se arroga qualidades para tal.
Por sua vez, e, como se consignou no Ac. do S.T.J. de 11.05.1994, “apenas se exige a vontade de praticar o acto próprio da função ou da profissão, ou seja o dolo genérico, sem necessidade de recebimento de qualquer remuneração ou benefício”; (cfr., www.dgsi.pt).
No caso dos autos, e como se viu, suficientemente indiciado está que os arguidos são os legais representantes da sociedade atrás identificada.
Como tal, razoável parece de considerar que “dirigem” e determinam a sua actividade.
Nesta conformidade, sendo que a mesma sociedade tem como objecto “one stop comercial services”, publicita mesmo a prestação de serviços em todas as fases para a constituição de sociedades assim como de “serviços jurídicos”, e possui profissionais que prestam efectivamente “consultadoria jurídica”, afigura-se-nos pois que não se pode deixar de considerar como indiciados todos os elementos do crime em questão.
Com efeito, o art. 25°, n.° 2, al. a) do Estatuto dos Advogados pune (precisamente) as pessoas que dirigem escritórios que funcionem com agentes que pratiquem actos próprios da profissão de advogado.
E se para a consumação de tal crime, necessário não é o elemento “remuneração”, “benefício” ou qualquer “vantagem patrimonial”, relevante não nos parece também que o exercício das funções usurpadas ocorra ou não no exercício de uma “profissão liberal”.
Aliás, atente-se que no art. 11°, n.° 1 atrás transcrito, consta a expressão “designadamente”.
E, em nossa opinião, há que diferenciar a “prática de actos próprios da profissão de advogado” com a (própria) “profissão de advogado” que, obviamente, é exercida em regime de profissão liberal.
Importa pois não olvidar que o bem jurídico protegido no crime de “usurpação de funções” em questão é a própria “função”, já que com a sua usurpação coloca-se em perigo o prestígio e reputação que a mesma deve merecer e que são garantidos pela qualidade e identificação legalmente atribuídos.
Macau, aos 23 de Fevereiro de 2012
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José Maria Dias Azedo
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