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Processo n.º 278/2011
(Recurso cível)

Data : 16/Fevereiro/2012

ASSUNTOS:
    - Exame de ADN
    - Valor das provas
    - Estabelecimento de filiação
    - Impugnação e investigação de maternidade


SUMÁRIO:

   1. Embora os resultados seroestatísticos tenham uma aceitação crescente nas acções de filiação e constituam um meio de prova muito importante, eles não devem dispensar um conhecimento global do caso e de outros elementos probatórios concorrentes que ajudem a formar a convicção do tribunal.
   
   2. Assim se os AA. se limitam a juntar aos autos um determinado exame, pretendendo com ele provar que os menores não são filhos da pessoa que figura no registo como mãe, mas que a mãe biológica é a irmã dela, mulher do 1º A., pai dos menores, tal exame, sem mais nada não se afigura que possa ser decisivo na demonstração da real filiação, para mais se desse exame não resulta um grau de probabilidade absoluto ou máximo sequer.
                
                Relator,
  


(João Gil de Oliveira)

Processo n.º 278/2011
(Recurso Cível)
Data: 16/Fevereiro/2012

Recorrentes: A
B (menor – representada pelo pai A)
C (menor – representada pelo pai A)

Recorridas (rés): D
          E

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
   
   A, de sexo masculino, casado, B, de sexo feminino, solteira, menor, C, de sexo masculino, solteiro, menor,
   
   Contra
   1.ª R., D, de sexo feminino, casada, e
   
   2.ª R., E, de sexo feminino, casada, da nacionalidade chinesa, todos com os melhores sinais dos autos,
    Vieram intentar a Acção ordinária de declaração sobre a impugnação de maternidade e o reconhecimento de maternidade,
   
   Pedindo que fosse declarado que
   1. A 2.ª e o 3.º A.A. não são filha e filho da 2.ª R. E mas sim da 1.ª R. D;
   2. se mande eliminar a maternidade em relação aos dois menores;
   3. se mande cancelar os referidos registos nos termos dos artigos 67.º alínea b), 66.º alínea a) e 70.º n.º 1 alínea a) do Código de Registo Civil;
   4. se mande registar correctamente a maternidade de D em relação aos menores B e C.

O presente recurso tem por objecto a sentença da primeira instância proferida pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base em 4 de Novembro de 2010 na acção intentada pelos autores (incluindo os 1.º, 2.ª e 3.º A.A., que julgou improcedente a acção.

Para tanto alegam em síntese conclusiva:

   1. Nos termos do artigo 1651.º do Código Civil de Macau, “Nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”.
   2. Como é sabido, nas técnicas científicas nos nossos dias, o único meio de prova científico para provar a relação de filiação é o “teste de filiação”.
   3. O “relatório pericial” do teste de filiação do presente processo (vide o documento 6) concluiu claramente que: há prova “muito forte” para comprovar que D é a mãe biológica de B; há prova “muito forte” para comprovar que D é a mãe biológica de C (sublinhado nosso).
   4. Isto significa que o referido relatório faz prova plena para provar que D é a mãe biológica de B e de C, sendo também o único e exacto método cientificamente comprovado.
   5. Ao abrigo do artigo 356.º n.º 2 do Código Civil de Macau, o referido “relatório pericial” pode ser um documento autêntico.
   6. Nos termos dos artigos 365.º e 366.º do Código Civil de Macau, o facto de D ser a mãe biológica de B e C só pode ser ilidido quando for provado que o referido “relatório pericial” é falso.
   7. Sem ilidir a força probatória do referido “relatório pericial”, a MM.ª Juíza do Tribunal Judicial de Base ilidiu a sua força probatória, o que violou a lei, a lógica e as regras de experiência.
   8. O teste de filiação é o exacto método pericial científico. Com as restrições das lógica, lei e regras de experiência, a MM.ª Juíza não pode negar a força probatória plena do “relatório pericial” do teste de filiação pela livre apreciação das provas.
   9. Pelo que, a MM.ª Juíza cometeu erro na apreciação da prova, violando os dispostos legais da força probatória.
   10. Além disso, a sentença recorrida também enferma do vício da insuficiência de apreciação da prova.
   11. As técnicas científicas não podem ser completamente compreendidas e conhecidas por homem comum, advogado ou juiz, pelo que, no caso de ter qualquer dúvida sobre as técnicas científicas, o juiz deve, por sua iniciativa, proceder à instrução, ordenando que o técnico que elabora o relatório pericial preste esclarecimento.
   12. Nos termos dos artigos 433.º, 508.º n.º 4 e 509.º do Código de Processo Civil de Macau, caso tenha qualquer dúvida ou suspeita sobre a razão de verosimilhança do “relatório pericial”, o juiz pode ordenar, por sua iniciativa, ao técnico que elabora o relatório pericial que compareça na audiência de julgamento ou preste esclarecimentos ou aditamentos.
   13. Contudo, sem proceder à instrução nem apreciar as provas nos termos da lei,
   14. A MM.ª Juíza do Tribunal Judicial de Base chegou a julgar na sentença: “segundo o qual, a razão de verosimilhança de a 1.ª R. ser a mãe biológica da 2.ª A. é de 658,601 e a do 3.º A. é de 80,210.
   Com base no facto de que a 2.ª e o 3.º A.A. são irmãos germanos, parece que existe uma distância muito grande entre os valores acima referidos (…)”, negando o “relatório pericial do teste de filiação” que é o único e exacto método cientificamente comprovado. Isto violou completamente o princípio de apreciação da prova.
   15. O mais importante é, a sentença enferma do vício previsto no artigo 571.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil ou outro vício gerador de nulidade.
   16. Em primeiro lugar, existe contradição na sentença proferida pela MM.ª Juíza: “(…) Por outro lado, consultando os autos em que o 1.º A. foi condenado (Processo n.º CR4-07/0153/PCC), este Tribunal verificou que o 1.º A. tinha dito que as 1.ª e 2.ª R.R. são irmãs, por isso, mesmo que no referido relatório pericial, o valor da razão de verosimilhança entre a 1.ª R. e a 2.ªA. seja mais elevado, não se pode excluir que o valor da razão de verosimilhança mais elevado é causado pela relação de parentesco entre as 1.ª e 2.ª R.R. (…)” (sublinhado nosso).
   17. O pressuposto do presente processo é que os dois menores são irmãos germanos. In casu, não há qualquer impugnação sobre tal relação, o que estamos a impugnar é: Quem é a mãe deles.
   18. Pelo que, já que são irmãos germanos, porquê é que existe uma distância tão grande entre os valores da razão de verosimilhança da mãe deles (mesma examinada do teste de filiação)? Se a grande distância entre os referidos valores afecta o resultado pericial? Quais são os motivos científicos?
   19. As 1.ª e 2.ª RR. são irmãs, por isso, é o facto é que elas têm laços de parentesco. Além disso, também é o facto é que os dois menores são da mesma mãe (1.ª R. ou 2.ª R.). Assim, porquê é que o valor da razão de verosimilhança entre a 2.ª A. B a 1.ª R. (D) é de 658,601 enquanto o entre o 3.º A. C e a 1.ª R. (D) é de 80,210?
   20. O entendimento da MM.ª Juíza é manifestamente contraditório, isto é, “mesmo que no referido relatório pericial, o valor da razão de verosimilhança entre a 1.ª R. e a 2.ªA. seja mais elevado, não se pode excluir que o valor da razão de verosmilhança mais elevado é causado pela relação de parentesco entre as 1.ª e 2.ª R.R. (…).
   21. Por um lado, a MM.ª Juíza entende que existe problema uma vez que há uma grande distância entre os valores da razão de verosimilhança, por outro lado, a MM.ª Juíza também entende que é a relação de parentesco entre as 1.ª e 2.ª R.R. que causa uma grande distância entre os “valores da razão de verosimilhança”.
   22. Sendo isso a contradição entre os fundamentos invocados pela MM.ª Juíza e a decisão por si proferida.
   23. Porquê é que existe esta contradição ou mal-entendimento?
   24. A razão mais importante é que a MM.ª Juíza não sabe claramente o que é a “razão de verosimilhança” nem a relação entre a “razão de verosimilhança” e as conclusões, o que assim tem a aludida contradição.
   25. De facto, não existe relação conexa directa entre os valores da “razão de verosimilhança” e as “conclusões”. A “razão de verosimilhança” é apenas um valor e quando atinge um determinado critério, chega assim a uma conclusão exacta.
   26. Assim, o que é a “razão de verosimilhança”? Qual é a relação entre os valores da “razão de verosimilhança” e as “conclusões”? Se os valores da razão de verosimilhança afectam o resultado? Face às questões acima referidas, pode-se exigir que a entidade que elabora o “relatório pericial” preste os aditamentos.
   27. A segunda contradição: “ (…) Além disso, nos autos não se encontra o relatório pericial do teste de filiação entre a 2.ª R. e a 2.ª A. e entre a 2.ª R. e o 3.º A., nem outra prova para comprovar que a 2.ª R. nunca tinha estado grávida nem tinha dado à luz a 2.ª e o 3.º A.A. ou a 1.ª R. tinha estado grávida e tinha dado à luz a 2.ª e o 3.º A.A., como por exemplo, os pressupostos do posse do referido estado, por isso, este Tribunal entende que só o relatório pericial em questão não é suficiente para provar que a 1.ª R. é a mãe biológica da 2.ª e do 3.º A. A. e assim ilidir o facto de a 2.ª R. ser a mãe dos dois A.A. (…)”.
   28. Assim, se basta para provar que a 2.ª A. e o 3.º R. é a filha e o filho da 1.ª R. quando consegue provar que a 2.ª R. nunca tinha estado grávida nem deu à luz nenhum/a filho/a?
   29. Se os factos que provam que a 1.ª R. tinha estado grávida e deu à luz a 2.ª A. e o 3.º A. chegam para provar que a 2.ª A. e o 3.º A. são a filha e o filho da 1.ª R.? Não é necessário fazer o teste de filiação?
   30. Nos termos do artigo 1651.º do Código Civil de Macau, “Nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”.
   31. Como é sabido, nas técnicas científicas nos nossos dias, o único meio de prova para provar a relação de filiação é o “teste de filiação”.
   32. O relatório pericial do teste de filiação do presente processo (vide o documento 6) concluiu claramente que: há prova “muito forte” para comprovar que D é a mãe biológica de B; há prova “muito forte” para comprovar que D é a mãe biológica de C.
   33. Sem outra prova mais científica, nunca pode a MM.ª Juíza ilidir a conclusão do “relatório pericial” do teste de filiação do presente processo.
   34. A terceira contradição é: “Apesar de o 1.º A. alegar que foi condenado pela prática do crime de falsificação de documento por ter declarado que a 2.ª R. é a mãe biológica dos 2.ª e 3.º A.A., este Tribunal entende que tal facto ainda não é suficiente para ilidir a análise acima referida.
   Segundo o processo penal acima referido, o 1.º A. foi efectivamente condenado nos referidos autos e nos factos provados nele constantes também se consta que a mãe da 2.ª e do 3.º A. A. é a 1.ª R. em vez da 2.ª R, contudo, tais factos foram provados só com base na confissão do 1.º A. e não há outros elementos nos referidos autos, como o relatório pericial do teste de filiação, para provar os factos confessados pelo 1.º A., bem como as testemunhas também não foram ouvidas na audiência de julgamento devido à confissão integral e sem reservas do 1.º A.
   Quanto à relação pessoal, a confissão do 1.º A. não é suficiente para provar o referido facto, por isso, este Tribunal não pode aplicar o artigo 578.º do Código de Processo Civil para provar que a mãe da 2.ª A. e do 3.º A. é a 1.ª R. em vez da 2.ª R.”
   35. . O objecto do presente processo é provar que a 1.ª R. (D) é a mãe biológica de B e de C, ou seja, o “relatório pericial” do teste de filiação, em vez do processo penal do 1.º A. A.
   36. O processo penal do 1.º A. A é apenas uma prova para comprovar o decurso do incidente.
   37. De facto, sem outra prova mais científica para ilidir as conclusões do “relatório pericial” do teste de filiação, nunca pode a MM.ª Juíza ilidir tais conclusões: há provas “muito fortes” para provar que D é a mãe biológica de B; há provas “muito fortes” para provar queD é a mãe biológica de C.
   38. Pelo tudo acima exposto, nos termos do artigo 571.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, os fundamentos da sentença proferida pela MM.ª Juíza estão em oposição com a decisão ou a produção de prova não é suficiente ou violou as disposições legais da força probatória, por isso, a sentença deve ser nula ou é anulada.

Pelo acima exposto, solicitam que se julgue procedente o presente recurso e se:

1. Julgue procedente o presente recurso, devendo a sentença recorrida ser declarada nula, revogada ou anulada por violação do artigo 571.º n.º 1 alínea c).
2. Julgue que os menores B e C não são a filha e o filho de E mas sim de D.
3. Ordene eliminar a maternidade em relação aos dois menores B e C.
4. Mande cancelar os respectivos registos nos termos dos artigos 67.º alínea b), 66.º alínea a) e 70.º n.º 1 alínea a) do Código de Registo Civil.
5. Mande registar correctamente a maternidade deD em relação aos B e C, ou
6. Mande remeter o processo ao Tribunal Judicial de Base para nova produção de prova do “relatório pericial”, para que seja proferida uma decisão favorável aos recorrentes.

Foram colhidos os vistos legais
   II - FACTOS
  
Vêm provados os seguintes factos:

- B nasceu em Macau em 6 de Setembro de 1995,
- C nasceu em Macau em 26 de Maio de 1997.
- Nos assentos de nascimento da Conservatória de Registo de Nascimento, os dois menores foram registados como filha e filho de A e de E.
- O 1.º A. A e a 1.ª R., D procederam ao registo de casamento em 15 de Novembro de 1993 no Governo Popular da Vila He Cheng do Distrito He Cheng da Província de Guangdong.
- Em 8 de Julho de 2009, a Polícia Judiciária de Macau elaborou o relatório pericial do teste de filiação entre B e D e entre C eDa fls. 21 a 31 dos autos.
- Em 10 de Janeiro de 1996, o 1.º A., A, ao proceder ao registo de nascimento da sua filha B, declarou que o nome da mãe desta é E.
- Em 11 de Junho de 1997, o 1.º A., A ao proceder ao registo de nascimento do filho C, declarou que o nome da mãe deste é E.”
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa, no essencial, por uma única questão:
    Os exames de ADN são elemento bastante, enquanto prova única, para comprovar a maternidade?
    2. E a resposta que damos é aquela que resulta da lei, vertida no artigo 558º do CPC, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
    A considerar-se o referido exame como um documento atestado por um laboratório de uma entidade pública, no âmbito das suas competências, a PJ, ficamos a saber que o exame foi realizado e produziu aquele resultado - probabilidade muito forte dentro de uma tabela em que abaixo desse nível aparece limitada, moderada, moderada forte, forte e acima desse nível aparece ainda uma probabilidade extremamente forte - , mas nada mais, visto o disposto do valor probatório de tal documento previsto no artigo 365º do CC.
    Diga-se que o que temos nos autos é a junção de um exame e nem sequer de uma perícia se trata, sendo que mesmo esta ao abrigo do disposto no artigo 383º do CC é livremente apreciada pelo Tribunal.
    Por outro lado, o artigo 1651º do CC estabelece que nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados.
    E no artigo 1652º: salvo nos casos especificados na lei, a prova da filiação só pode fazer-se pela forma estabelecida nas leis do registo civil.
    De todos este normativos resulta que o facto que se pretende demonstrar - que os menores não são filhos da 2º ré, mas sim da primeira - não está comprovado automaticamente por via do referido documento, já que não se trata de uma prova necessariamente tarifada, isto é que o facto seja demonstrado ou presumido pelo documento que atesta a realização do exame com o apontado resultado.

3. Terá algum interesse fazer uma retrospectiva da evolução que o estabelecimento da filiação tem sofrido para melhor se compreender a situação presente, servindo-nos de uma síntese colhida da Jurisprudência comparada, mas com projecção igualmente em Macau.
    No século XVIII, a investigação da paternidade, que até então era geralmente admitida, sofreu grandes limitações, nos diferentes regimes jurídicos que, à semelhança do código civil francês, optaram por censurar as formas desorganizadas da moral, da sexualidade e da família.

Valorizava-se a liberdade individual do progenitor no sentido de querer atribuir ao filho natural um estatuto social e económico semelhante ao dos nascidos dentro do casamento, bem como proteger a família legítima e impedir que filhos de condição inferior à do pretenso pai pudessem beneficiar das vantagens sociais e económicas, decorrentes da sua ascendência.

Em Macau, o Código Civil de 1867 reflectiu esta filosofia e, nesta ordem de ideias, proibia a investigação de paternidade, excepto se houvesse escrito do pai, posse de estado, estupro violento ou rapto. O Visconde de Seabra justificava as restrições legais alegando que, não sendo possível (cientificamente) demonstrar a existência de vínculo biológico, o reconhecimento judicial da paternidade envolvia um perigo acrescido de erro judiciário que o direito não devia assumir. Daí que, só em casos excepcionais, em que o próprio pai aceitava correr o risco ou devia ser penalizado por uma conduta ilícita, se devesse admitir a investigação de paternidade.

Com o Código Civil de 1966, na sua versão original, apesar de se terem introduzido algumas alterações (designadamente no elenco dos casos de admissibilidade da investigação), o sistema manteve-se, no essencial, inalterado (cf. primitiva redacção dos arts. 1859º e ss.).

O direito da filiação sofreu, no entanto, uma profunda revisão (cf. DL nº 496/77, de 25 de Novembro), concretizando os princípios da igualdade entre os cônjuges e da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.

Foi na Reforma de 1977 que se fez sentir o peso que as normas constitucionais têm no direito da família em geral, e no da filiação em particular.
    Após a Reforma de 1997, o direito da filiação abriu-se à verdade biológica. A lei passou a admitir livremente a prova da relação biológica e, em alguns casos, passou a inverter o ónus da prova. Consagrou-se expressamente o princípio da admissibilidade dos meios científicos de prova (art. 1801º, do CC), sobretudo das perícias genéticas, com elevado índice de fiabilidade probatória e cuja realização veio alterar profundamente os termos em que até aí se colocava a questão da produção da prova nas acções de filiação.

Por sua vez, alargou-se a esfera dos interesses relevantes e o progenitor foi perdendo o exclusivo do poder de decisão. Autonomizou-se o interesse do filho em determinar um devedor de alimentos e em reconhecer o seu lugar no parentesco. Ganhou maior relevância a prova do vínculo biológico.
    Registou-se um movimento ascendente de certos valores que reclamam a liberdade do estabelecimento jurídico do parentesco. O direito à identidade e à integridade pessoal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, contêm a faculdade básica de procurar o reconhecimento público da «localização social» do indivíduo; este lugar, que investe o cidadão num conjunto de direitos e obrigações, num estatuto jurídico, exprime-se usualmente pelo nome e pelos apelidos de família.

Além disto, o princípio da não discriminação entre os filhos nascidos dentro ou fora do casamento também rejeita as normas que condicionam a investigação da paternidade.

Por sua vez, no direito internacional, em diversos textos jurídicos se pode ancorar o direito de cada pessoa ao conhecimento da sua ascendência biológica.

Pode citar-se, entre muitos outros, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, aprovada e ratificada por Portugal (cf. Lei nº 65/78, de 13 de Outubro) em cujo art. 8º se dispõe que qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar não podendo, em regra, haver ingerência da autoridade pública no exercício desse direito.1
4. Mas a par desta evolução que vai ao encontro da defesa de um direito indissociável da personalidade e que passa pela busca da verdade biológica esta não pode ser feita a qualquer custo e sofre as limitações, também em nome daquela personalidade, decorrentes das garantias de certeza, apanágio do Direito hodierno.
Extrai-se do artigo 1651º do Código Civil o princípio da liberdade de prova, não obstante, no âmbito do processo de investigação da filiação ser não só admissível, como até, sempre que possível, exigível, a realização de testes de ADN, visto o contributo que a ciência presta no sentido do apuramento da verdade material.
Só que os tribunais não podem ficar reféns desses avanços da ciência, não sendo poucos os casos em que o que é verdadeiro cientificamente hoje já não o é amanhã. Ainda há menos de quatrocentos anos Galileu era condenado pelo Santo ofício por, ao defender o heliocentrismo, desafiar uma verdade científica até aí absoluta.

5. Tem-se como pacífico, é certo, que se pode provar a paternidade biológica através de adequados exames laboratoriais.2
Só que no nosso caso, ainda que o exame tenha sido o adequado e adequadamente realizado, não se assumindo como já acima se disse com o valor pericial, pois que não produzido conforme as regras dos artigos 490º e segs do CPC, o resultado obtido ainda deixa margem a alguma dúvida, porquanto apesar do resultado se traduzir numa muito forte probabilidade sobre a maternidade apuranda, acima desse grau ainda há uma extremamente forte probabilidade.
Regista-se que a parte se limitou a juntar esse documento como prova, importando não esquecer que nesse exame se visava a comprovação de que os menores, 2º e 3º AA não eram filhos da 2ª Ré, não se tendo incomodando em comprovar esse facto e sabendo-se que da perícia podia resultar uma resposta excluindo essa maternidade; o que, sem dúvida, reforçaria a tese sustentada na acção, de que os menores são filhos da esposa do 1º A., a 1ª ré e não já da sua irmã, a 2ª ré.
Digamos que a parte A. não se incomodou em carrear e instruir suficientemente o processo e pretende agora que o Tribunal, suprindo o que não é suprível, apenas com base naquele exame dê a maternidade requerida e a impugnada como estabelecida uma, confirmada a outra.

6. Ainda que não seja obrigado a fazer uso da opinião perita, o juiz terá de argumentar criteriosamente a sua posição no caso de manifestar discordância em relação a esta.
Para que os direitos de cidadania não sejam postos em causa pelos usos sociais da ciência e da tecnologia, tornam-se prementes novas formas de regulação que deveriam, em princípio, assumir a forma de uma cooperação mútua entre os dois campos do saber que são a ciência e o direito, mas também a de uma abertura à participação pública na definição de estratégias de regulação e capacidade de incorporar nesse processo os saberes «profanos» e locais daqueles que estão directamente expostos às consequências dos usos da ciência e da tecnologia. 3

7. E foi isso mesmo que a Mma Juíza fez. Se não vejamos:
Dos factos provados resulta que ao proceder aos registos de nascimento da 2.ª e do 3.º A.A., o 1.º A. declarou que a 2.ª R. é a mãe biológica destes, razão pela qual constituem a relação de filiação entre a 2.ª R. e a 2.ª A. e a relação de filiação entre a 2.ª R. e o 3.º A.. Aliás, este Tribunal também provou o relatório pericial do teste de filiação entre a 1.ª R. e a 2.ª A. e entre a 1.ª R. e o 3.º A., elaborado pela Polícia Judiciaria em 8 de Junho de 2009, segundo o qual, a razão de verossimilhança de a 1.ª R. ser a mãe biológica da 2.ª A. é de 658,601 e a do 3.º A. é de 80,210.
Com base no facto de que a 2.ª e o 3.º A.A. são irmãos germanos, parece que existe uma distância muito grande entre os valores acima referidos.
Por outro lado, consultando os autos em que o 1.º A. foi condenado (Processo n.º CR4-07/0153/PCC), este Tribunal verificou que o 1.º A. tinha dito que as 1.ª e 2.ª R.R. são irmãs, por isso, mesmo que no referido relatório pericial, o valor da razão de verossimilhança entre a 1.ª R. e a 2.ªA. seja mais elevado, não se pode excluir que o valor da razão de verossimilhança mais elevado é causado pela relação de parentesco entre as 1.ª e 2.ª R.R..
Pelo que, os dois pontos acima referidos reduzem consideravelmente a força probatória do aludido relatório pericial do teste de filiação.
Além disso, nos autos não se encontra o relatório pericial do teste de filiação entre a 2.ª R. e a 2.ª A. e entre a 2.ª R. e o 3.º A., nem outra prova para comprovar que a 2.ª R. nunca tinha estado grávida nem tinha dado à luz a 2.ª e o 3.º A.A. ou a 1.ª R. tinha estado grávida e tinha dado à luz a 2.ª e o 3.º A.A., como por exemplo, os pressupostos do posse do referido estado, por isso, este Tribunal entende que só o relatório pericial em questão não é suficiente para provar que a 1.ª R. é a mãe biológica da 2.ª e do 3.º A. A. e assim ilidir o facto de a 2.ª R. ser a mãe dos dois A.A..
Apesar de o 1.º A. alegar que foi condenado pela prática do crime de falsificação de documento por ter declarado que a 2.ª R. é a mãe biológica dos 2.ª e 3.º A.A., este Tribunal entende que tal facto ainda não é suficiente para ilidir a análise acima referida.
Segundo o processo penal acima referido, o 1.º A. foi efectivamente condenado nos referidos autos e nos factos provados nele constantes também se consta que a mãe da 2.ª e do 3.º A. A. é a 1.ª R. em vez da 2.ª R, contudo, tais factos foram provados só com base na confissão do 1.º A. e não há outros elementos nos referidos autos, como o relatório pericial do teste de filiação, para provar os factos confessados pelo 1.º A., bem como as testemunhas também não foram ouvidas na audiência de julgamento devido à confissão integral e sem reservas do 1.º A..
Quanto à relação pessoal, a confissão do 1.º A. não é suficiente para provar o referido facto, por isso, este Tribunal não pode aplicar o artigo 578.º do Código de Processo Civil para provar que a mãe da 2.ª A. e do 3.º A. é a 1.ª R. em vez da 2.ª R..

8. Dizem os recorrentes que há aqui duas contradições.
Quanto à primeira, a divergência dos valores nada significa em termos científicos e tanto assim que não obstante a diferença dos valores o grau de probalidade é o mesmo; a segunda contradição resultaria de se dizer que faltavam factos demonstrativos do relacionamento entre o 1º A. e a 1ª ré tendentes a demonstrar a posse do referido estado em relação à concepção e nascimento dos 2º e 3º AA. em relação àquela. E se assim era não se tornava necessária a realização de exames.
Não têm razão os recorrentes porquanto não só essas razões não se mostram únicas e determinantes na argumentação da Mma Juíza, como não deixa de ser uma realidade a diferença de valores encontrados, ainda que no mesmo escalão, como, no fundo, o que se diz na sentença, é que aquele elemento probatório não se mostra definitivo, nem sequer em termos da comprovação absoluta daquilo que se pretende demonstrar. Em sete graus possíveis, para se ter como prova única, situa-se apenas ao nível do 2º grau.
9. E as dúvidas adensam-se quando se sabe que o A. foi condenado por falsas declarações sobre essa mesma matéria, que agora pretende servir-se dessa condenação que não pode servir de fundamento para se ter essa matéria como comprovada, aliás, essencialmente com base na sua confissão e não mais provas do que aquelas ora exibidas, quando as duas rés são irmãs entre si, são todos dados como residindo na mesma casa, a ré investiganda de maternidade é a mulher do 1º A.

10. A propósito das dúvidas legítimas que a situação suscita e que a Mma Juíza externou, não será despiciendo chamar aqui a seguinte reflexão:
“Os equívocos do caso Castro nos Estados Unidos é um exemplo de que há muita coisa ainda para se aprender. Entre elas a de que não se pode acreditar demasiadamente rápido numa técnica que ainda se consolida e já se rotula com a falsa expectativa de infalibilidade. Não foi por outra razão que naquele país criou-se o TWGDAM (Technical work group for DNA analysis and methods) e na Europa o EDNAP (European DNA profiling group), com a finalidade de examinar cuidadosamente os diversos problemas na aplicação forense da tipagem do DNA, inclusive criando-se mecanismos seguros para um controle de qualidade.
Além das implicações de ordem ética e legal que se verificam na prática, há outros problemas que acreditamos ser de muita importância na prova do DNA pelos Tribunais.
O primeiro deles, com o máximo respeito, é a dificuldade que os magistrados e advogados têm de adentrar nesse mundo insondável da perícia especializada, de métodos e técnicas tão complicados, tanto no que se refere ao aspecto analítico dos resultados, quanto a procedimentos mais particularizados.
Acreditamos que tal fato se verifique não pelos intricados caminhos da prova do DNA, em seus detalhes técnicos e metodológicos, mas pela correria de como estes testes foram impostos e, quando na formação do jurisconsulto, faltam-Ihe os ensinamentos que seus cursos básicos de Direito não conheciam. Diga-se ainda que esta restrição não é apenas dirigida aos estudiosos desta área, mas também aos próprios peritos que funcionam junto a Tribunais e que não tiveram oportunidade de entender, em profundidade, o alcance e os fundamentos da prova do perfil de DNA em questões de investigação do vínculo genético.
Acrescente-se ainda o fato de que a prova do DNA está em acelerada evolução, e muita coisa que foi publicada, mesmo em periódicos sérios hoje não tem mais valor. Por outro lado, muitas das empresas que fabricam o material dos testes do DNA não deixam de insinuar serem os resultados de identificação de paternidade e de maternidade infalíveis e inquestionáveis, o que certamente vem subvertendo o entendimento dos analistas dessa prova.
(...)
Será que os Tribunais estão percebendo corretamente o significado da prova do DNA? Tem sido fácil avaliar sua técnica tão complicada e seus fundamentos tão complexos? Existe, na realidade, o entendimento de que não se pode excluir a possibilidade de um resultado não ser condizente com a verdade que se apura? Seja como for, esperamos que o julgador, na sua sofrida solidão, entenda que a interpretação correta desses valores não é algo intuitivo, e que se exige pelo menos o conhecimento da valorização probabilística da prova de DNA e da sofrível adequação das estruturas médico-legais em nosso país.
Desta forma, nada mais justo que, ao avaliar estes testes, os Tribunais mostrem-se cautelosos, não desprezem o conjunto dos outros elementos probantes e usem o benefício da dúvida em favor da parte mais fraca do processo - o réu.
Em suma, o estudo do perfil de DNA, mesmo sendo um exame importante na questão mais delicada da hemogenética médico-legal, pode-se afirmar com certeza que, diante da metodologia utilizada e da falta de tabelas de freqüências alélicas em amostras representativas da nossa população, não se alcançou ainda um nível de certeza que Ihe empreste um valor probante absoluto e inquestionável...”4
11. Ou como previne o Prof. Guilherme de Oliveira: “É por isto que, embora os resultados seroestatísticos tenham uma aceitação crescente nas acções de filiação e constituam um meio de prova muito importante, é costume dizer-se que eles não devem dispensar um conhecimento global do caso e de outros elementos probatórios concorrentes que ajudem a formar a convicção do tribunal”5
Cremos que nesta conclusão lapidar se encerra tudo quanto se possa dizer e responder às objecções que vêm levantadas pelos recorrentes, sem necessidade de maiores desenvolvimentos.
Donde sermos a concluir no sentido de que não se observa que tenha havido erro na valoração das provas ou os apontados vícios de erro de direito apontados à douta sentença

IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
               Macau, 16 de Fevereiro de 2012,
               João A. G. Gil de Oliveira
               Ho Wai Neng
               José Cândido de Pinho
1 - cfr. resenha in Ac RL, proc. N.º 541.09.4TCSNT.L1-7 de 9/2/2010
2 - Ac. RP, proc. n.º 9920911 de 08/07/1999

3 - Análise Psicológica (2002), 3 (XX): 311-329

4 - Franca, Genival Veloso de - O vínculo genético da filiação pelo DNA: sua aplicação nos tribunais. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 28, 1 fev. 1999. Disponível em: .
5 - Temas de Direito da Família, Coimbra Editora, 1, 2001, 2ª ed., 86
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278/2011 1/25