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Processo n.º 827/2009 Data do acórdão: 2012-3-29 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– assistente
– tempestividade do requerimento da instrução
– recurso do despacho de pronúncia
– caso julgado formal
– despacho de declaração de abertura da instrução
– art.o 575.o do Código de Processo Civil
– abuso de confiança
– art.o 199.o, n.o 1, do Código Penal,
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– depósito de dinheiro
– entrega por título não translativo da propriedade
– depósito irregular
– art.o 1131.o do Código Civil
– intervenção do direito penal
– conflito pecuniário
S U M Á R I O
1. Quanto à questão relativa à (in)tempestividade ou, pelo menos, (in)oportunidade da apresentação do requerimento de abertura da instrução do assistente, suscitada pelos arguidos apenas no recurso interposto do despacho de pronúncia, o Tribunal de Segunda Instância não pode conhecer dela, porquanto já se formou caso julgado formal sobre a mesma matéria, em virtude da inexistência de impugnação tempestiva, por quem de direito, do despacho judicial de declaração de abertura da instrução (cfr. o art.o 575.o do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal).
2. Não ocorre o vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando não se mostra patente ao tribunal ad quem, depois de examinados todos os elementos probatórios constantes dos autos, que a livre convicção a que chegou o tribunal a quo tenha sido formada com violação de qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de qualquer norma sobre prova legal, ou ainda de quaisquer legis artis em matéria de julgamento de matéria de facto.
3. Como de acordo com os factos pronunciados, a entrega das quantias pelo ofendido aos arguidos para serem guardadas por estes foi feita por forma não translativa da propriedade, então já se verifica o elemento de “entrega por título não translativo da propriedade”, exigido no tipo-de-ilícito objectivo fundamental de abuso de confiança, definido no art.o 199.o, n.o 1, do Código Penal, sem necessidade, pois, de se saber se o depósito das quantias em causa nos presentes autos penais deva ou não ser qualificado como um depósito irregular na acepção do art.o 1131.o do Código Civil. É, pois, pertinente a intervenção do direito penal no conflito pecuniário em questão.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 827/2009
(Autos de recurso penal)
Recorrentes (arguidos): A e B
Recorrido (assistente): C







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com o despacho da M.ma Juíza do 1.o Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Base que os pronunciou como co-autores imediatos de um crime consumado, na forma continuada, de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 4, alínea b), do vigente Código Penal (CP), vieram os dois arguidos do Processo de Instrução n.o PCI-084-08-1.o, aí instaurado a requerimento do ofendido assistente C depois de notificado do despacho do Digno Delegado do Procurador de arquivamento do inquérito, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a revogação do despacho de pronúncia, mediante a invocação de um conjunto de razões sumariadas na parte final da motivação una de recurso, segundo as quais, e na sua essência (cfr. nomeadamente o teor das conclusões da motivação una de fls. 318 a 352 dos presentes autos correspondentes):
– o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo advogado do assistente deveria ter sido rejeitado, por extemporâneo; e se assim não se entendesse, sempre se diria que como o assistente não se mostrou notificado, o seu advogado não podia ter requerido a abertura da instrução;
– os factos descritos no requerimento de abertura da instrução consubstanciam um contrato de depósito irregular, previsto no art.o 1131.o do vigente Código Civil (CC), pelo que se os dois arguidos ora recorrentes se recusassem a realizar a obrigação de restituição da coisa depositada, sempre o assistente poderia socorrer-se dos meios cíveis à sua disposição, não só para obter a restituição, bem como para acautelar a eventual dissipação de bens, daí que não é a acção penal o meio adequado para os fins pretendidos pelo assistente, até porque segundo a doutrina jurídica, os bens fungíveis entregues ao depositário não podem ser objecto de apropriação ilegítima;
– o assistente nunca demonstrou qualquer interesse na descoberta da verdade; e pelos registos e testemunhos então carreados aos autos, verifica-se que efectivamente, os dois arguidos movimentaram diariamente e durante longos períodos, alguns superiores a 12 horas seguidas, muitos milhares de dólares de Hong Kong, sendo certo que, por um lado, o arguido A tinha capacidade financeira para compra dos bens (jóias e carro, etc.) cujos recibos se encontram nos autos, e, por outro, o arguido B, antes de conhecer o assistente, já tinha uma conta bancária de mais de 140 mil dólares de Hong Kong e, curiosamente, após conhecer o assistente, o seu saldo foi diminuindo, pelo que caso este arguido se tivesse apropriado das quantias que lhe foram entregues pelo assistente, não teria tido necessidade de levantar dinheiro da sua conta bancária; em síntese, nenhuma prova, à excepção do testemunho do próprio assistente, foi produzida que demonstrasse que os bens comprados pelos arguidos foram pagos com o dinheiro do assistente;
– os arguidos foram pronunciados pela prática do crime de abuso de confiança, e designadamente, foi-lhes imputado que “durante o jogo, o assistente ganhou e entregou o dinheiro aos arguidos para estes guardarem”, que “o assistente apenas pediu a restituição de pequenas quantias para jogar”, e que “o assistente pediu o dinheiro e insistiu na sua devolução, mas os arguidos não devolveram”; tais conclusões foram extraídas unicamente pelos factos relatados directamente pelo assistente, não tendo sido corroborados por quaisquer elementos de prova existentes nos autos, mas apenas tendo por base unicamente a versão dos factos apresentada pelo próprio assistente; não existem nos autos quaisquer indícios da prática de factos criminalmente puníveis por parte dos arguidos;
– o Tribunal a quo violou os art.os 270.o, 271.o e 100.o, n.o 7, do vigente Código de Processo Penal (CPP) e o art.o 199.o do CP, tendo cometido erro notório na apreciação da prova.
Ao recurso dos dois arguidos, respondeu (a fls. 368 a 369) o Digno Delegado do Procurador arquivador do inquérito no sentido de revogação do despacho de pronúncia (devido à não colheita ainda de novos elementos susceptíveis de provar directamente algum acto criminoso por parte dos arguidos), com consequente entendida manutenção do arquivamento do inquérito, apesar de ser tempestivo o requerimento de abertura da instrução.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 384 a 386), opinando, na sua essência, que o requerimento de abertura da instrução era tempestivo, que em face dos elementos probatórios constantes dos autos, inclina ela em considerar que é maior a possibilidade de apropriação, pelos arguidos, das quantias que lhes foram entregues pelo assistente, e que, não obstante, não se verifica ainda o tipo legal de abuso de confiança, por a doutrina jurídica preconizar que o mútuo de coisas fungíveis e o depósito irregular são afastados deste tipo-de-ilícito, daí que os arguidos não devem ser pronunciados.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
– em 23 de Agosto de 2007, C (ofendido e ulteriormente constituído assistente e ora recorrido), de nacionalidade japonesa com residência no Japão, apresentou à Polícia Judiciária queixa criminal contra A e B (arguidos ora recorrentes), alegando que estes dois lhe tinham burlado um total de um milhão e cem mil dólares de Hong Kong (cfr. o teor de fl. 2 a 2v), e encontrando-se juntas aos autos as fotocópias de duas “livranças” exibidas pelo ofendido à Polícia Judiciária, respectivamente assinadas por esses dois denunciados (cfr. as fotocópias a fls. 8 e 9, cujos originais foram juntos a fls. 255 e 256);
– no mesmo dia, o ofendido, na Polícia Judiciária, procedeu à identificação concreta dos ditos dois denunciados, primeiro através do reconhecimento por fotografias (cfr. o auto de fl. 10), e depois mediante o reconhecimento de pessoas (cfr. os autos de fls. 19 a 19v e de fls. 47 a 47v);
– no mesmo dia, o ofendido foi levado pela Polícia Judiciária a três casinos em Macau, a fim de proceder ao reconhecimento concreto de locais onde ele chegou a praticar jogos com acompanhamento dos dois denunciados (cfr. o auto de fl. 12);
– no mesmo dia, foi feita busca na residência do denunciado e arguido A (cfr. o auto de fl. 33), da qual resultaram descobertos diversos recibos, emitidos, por lojas de venda de jóias e relógios, no período compreendido entre 7 de Maio de 2007 a 11 de Junho de 2007, de venda de diversos objectos no valor total de cento e sessenta e dois mil, trezentos e cinquenta dólares de Hong Kong (13800 + 7300 + 4250 + 26500 + 32000 + 35500 + 5200 + 9800 + 28000 = 162350), e um contrato de 2 de Julho de 2007 de aquisição de um veículo automóvel por este arguido pelo preço de cento e noventa mil dólares de Hong Kong (cfr. o auto de fl. 33 e os documentos fotocopiados a fls. 34 a 44);
– do relatório lavrado pelo pessoal investigador da Polícia Judiciária em 24 de Agosto de 2007 com base em informações documentais fornecidas por uma testemunha sobre os registos de ganhos e perdas em jogos de um Clube VIP de um casino em Macau, o arguido B perdeu um total de setenta mil em jogos praticados no período de 27 de Maio de 2007 a 31 de Maio de 2007, e o arguido A ganhou um total de cento e noventa mil em jogos praticados no período de 28 de Maio a 9 de Junho de 2007 (cfr. o relatório de fl. 116 a 116v);
– o ofendido prestou, em 25 de Agosto de 2007, declarações no Juízo de Instrução Criminal para efeitos de memória futura (cfr. o auto de fl. 140 a 140v);
– o ofendido tem advogado constituído em 5 de Setembro de 2007 (cfr. a procuração de fl. 160);
– em 28 de Outubro de 2008, foram arquivados os autos de inqúerito penal em questão, por decisão do Ministério Público (cfr. o teor do despacho de arquivamento de fl. 229);
– em 30 de Outubro de 2008, foi registada a carta de notificação desse despacho de arquivamento dirigida à própria pessoa do ofendido na direcção desta no Japão (cfr. o processado a fl. 230 a 230v); na mesma data, foi registada também a carta de notificação do mesmo despacho dirigida ao Exm.o Advogado em Macau do ofendido (cfr. o processado a fl. 234 a 234v); porém, a carta de notificação do próprio ofendido veio devolvida ao Serviço de Acção Penal do Ministério Público em 13 de Novembro de 2008 (cfr. fl. 240);
– em 15 de Dezembro de 2008, o Exm.o Advogado do ofendido apresentou, por telecópia, e em nome deste, o requerimento de abertura da instrução (cujo original se encontrou junto a fls. 250 a 254), para pedir a pronúncia criminal dos dois arguidos, requerimento esse que veio aperfeiçoado em 5 de Fevereiro de 2009 (a fls. 264 a 268), a convite da M.ma Juíza de Instrução Criminal lançado em 15 de Janeiro de 2009 (a fl. 259 a 259v), tendo o mesmo Advogado imputado finalmente aos dois arguidos a co-autoria imediata, na forma consumada, de um crime continuado de burla em valor consideravelmente elevado (do art.o 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), do CP), ou de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado (do art.o 199.o, n.os 1 e 4, alínea b), do CP);
– em 2 de Março de 2009, foi declarada aberta a instrução, tida por apresentada tempestivamente (cfr. o despacho judicial de fl. 270), tendo esta decisão sido objecto de notificação inclusivamente à Exm.a Defensora constituída dos dois arguidos, por carta registada de 3 de Março de 2009 (cfr. sobretudo o processado a fl. 276 a 276v), e sem qualquer impugnação por quem de direito no prazo de dez dias contado da notificação (cfr. o que resulta do processado de fls. 270 a 278, a contrario sensu);
– em 26 de Maio de 2009, quando interrogado pela M.ma Juíza de Instrução Criminal, o arguido A declarou que em 2007, tinha por rendimento mensal (proveniente da sua actividade de troca de fichas de jogos) cerca de oito a nove mil, e que no período de Maio e Julho de 2007, chegou a ganhar cento e tal mil nos jogos em casino (cfr. o auto de fls. 286 a 287v);
– no mesmo dia 26 de Maio de 2009, quando interrogado pela M.ma Juíza de Instrução Criminal, o arguido B declarou que ele nunca praticou jogos em casino, e que em 2007, por ter ajudado o ofendido a trocar fichas de jogos, ganhou cerca de cento e vinte mil (cfr. o auto de fls. 288 a 289v);
– após feito o debate instrutório em 9 de Setembro de 2009 (cfr. a respectiva acta lavrada a fls. 300 a 307), decidiu a M.ma Juíza de Instrução Criminal pronunciar os dois arguidos como co-autores imediatos, na forma continuada, de um crime consumado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado do art.o 199.o, n.o 4, alínea b), do CP, por entender haver indícios suficientes dos seguintes factos descritos no respectivo despacho originalmente escrito em chinês (a fls. 305v a 307) (e agora traduzidos literalmente para português pelo ora relator):
– 1.o) o assistente C veio para Macau em princípios de 2007 para jogar em casino, e conheceu o arguido A. O arguido A começou a trocar fichas de jogos para o assistente, e nessa altura apresentou o arguido B para conhecimeto do assistente;
– 2.o) no dia 1 de Maio de 2007, o assistente entregou cento e vinte mil dólares de Hong Kong ao arguido A para serem guardados pelo arguido A, e pediu ao arguido A a assinatura de uma livrança no valor de cento e vinte mil dólares de Hong Kong, tendo então o arguido A mandado o arguido B para assinar a livrança em causa;
– 3.o) em 12 de Maio de 2007, o assistente entregou quinhentos mil dólares de Hong Kong ao arguido A para serem guardados por este em nome do próprio assistente. O assistente entregou o numerário referido ao arguido A na presença do arguido B, e o arguido A assinou uma livrança no valor de quinhentos mil dólares de Hong Kong para fins comprovativos;
– 4.o) ulteriormente, o assistente chegou a ganhar dinheiro em jogos, tendo entregue o dinheiro de ganho aos dois arguidos para ser guardado por estes em nome do próprio assistente;
– 5.o) até finais de Junho de 2007, tirando a parte do dinheiro devolvida pelos dois arguidos ao assistente a pedido deste para jogar em casino e realizar despesas do quotidiano, o dinheiro entregue pelo assistente à guarda dos dois arguidos devia restar ainda, pelo menos, em seiscentos e vinte mil dólares de Hong Kong;
– 6.o) posteriormente, apesar de várias interpelações por parte do assistente, os dois arguidos, até à data presente, ainda não devolveram tais seiscentos e vinte mil dólares ao assistente;
– 7.o) os dois arguidos sabiam que a conduta deles não era permitida por lei e era sujeita à punição legal, e, não obstante, executaram conjuntamente e por acordo os referidos actos criminosos, tendo feito ilegitimamente suas as quantias que o assistente lhes entregou para serem guardadas por eles, por forma não translativa da propriedade;
– 8.o) ambos fizeram directa e necessariamente com que o assistente tenha ficado com seiscentos e vinte mil dólares de Hong Kong de prejuízo, pelo menos;
– 9.o) os arguidos A e B, de modo livre, voluntário e consciente, praticaram de propósito os actos acima referidos.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesta ordem de ideias, observa-se que os dois arguidos acabaram por colocar material e concretamente apenas as seguintes questões como objecto do recurso deles:
– a defendida rejeição do requerimento de abertura da instrução, por este ter sido apresentado fora do tempo ou, pelo menos, apresentado antes da ainda não notificação pessoal do próprio assistente do despacho de arquivamento do inquérito penal;
– a devida subsunção dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução na figura de contrato de depósito irregular, previsto no art.o 1131.o do CC, o que torna inadequada a acção penal em causa;
– e o assacado erro notório por parte do Tribunal a quo na apreciação da prova (não podendo o juízo de pronúncia penal então emitido ser fundado na versão dos factos apresentada pelo próprio assistente, o qual, aliás, nunca demonstrou qualquer interesse na descoberta da verdade).
Quanto àquela primeira questão relativa à (in)tempestividade ou, pelo menos, (in)oportunidade da apresentação do requerimento de abertura da instrução, este TSI não pode conhecer dela, porquanto já se formou caso julgado formal sobre a mesma matéria, em virtude da inexistência de impugnação tempestiva, por quem de direito, do despacho judicial, de 2 de Março de 2009 (de fl. 270), de declaração de abertura da instrução – cfr. o art.o 575.o do vigente Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
E a propósito do vício de erro notório na apreciação da prova, esgrimido pelos dois recorrentes, cabe, desde já, notar que não se mostra justo criticar que o ofendido ora assistente nunca demonstrou qualquer interesse na descoberta da verdade. É que ele chegou a: a) proceder à identificação concreta dos dois denunciados ora arguidos recorrentes, primeiro através do reconhecimento por fotografias, e depois mediante o reconhecimento de pessoas; b) exibir duas “livranças” (ulteriormente referidas nos factos pronunciados); c) proceder ao reconhecimento concreto de locais onde ele tinha praticado jogos com acompanhamento dos dois arguidos; e d) prestar declarações ao Juízo de Instrução Criminal para efeitos de memória futura.
Quanto ao próprio vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, entende o presente Tribunal ad quem, depois de examinados todos os elementos probatórios constantes dos autos (dos quais se salientam as duas “livranças” exibidas pelo ofendido assistente como assinadas respectivamente pelos dois arguidos, por um lado, e, por outro, um contrato de compra de carro assinado em 2 de Julho de 2007 e os diversos recibos relativos às compras em lojas de venda de jóias e relógios, feitas no período de 7 de Maio a 11 de Junho de 2007, todos descobertos na residência do arguido A, em confronto com o nível de rendimento declarado por este arguido como concretamente auferido, nessa altura, da sua actividade profissional de troca de fichas de jogo, e o montante total de dinheiro por ele obtido como proveniente dos jogos em casino praticados no período de 28 de Maio a 9 de Junho de 2007, para além de o declarado pelo arguido B à M.ma Juíza de Instrução Criminal no sentido de que ele nunca praticou jogos em casino não corresponder aos dados registados por um casino e referidos no relatório de fl. 116 a 116v), que não se mostra patente que a livre convicção a que chegou a M.ma Juíza a quo tenha sido formada com violação de qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de qualquer norma sobre prova legal, ou ainda de quaisquer legis artis em matéria de julgamento de matéria de facto, sendo, pois, razoáveis, aos olhos de qualquer homem médio colocado na situação concreta daquela M.ma Juíza, os indícios suficientes de factos criminosos por ela colhidos e descritos no despacho de pronúncia, pelo que não podem os dois arguidos aproveitar a presente sede recursória para criticar, gratuitamente, que o juízo judicial de pronúncia penal então emitido foi fundado na versão dos factos apresentada pelo próprio assistente.
Da acima concluída improcedência do vício de erro notório na apreciação da prova, decorrem intactos os indícios suficientes descritos no despacho de pronúncia, o que permite o tratamento, agora, da questão de subsunção de factos à figura de depósito irregular do art.o 1131.o do CC.
Pois bem, como de acordo com os factos pronunciados (aqui mantidos intocados por razões já acima expostas), a entrega das quantias pelo ofendido aos arguidos para serem guardadas por estes foi feita por forma não translativa da propriedade, então já se verifica o elemento de “entrega por título não translativo da propriedade”, exigido no tipo-de-ilícito objectivo fundamental de abuso de confiança, definido no art.o 199.o, n.o 1, do CP, sem necessidade, pois, de se saber se o depósito das quantias em causa nos presentes autos penais deva ou não ser qualificado como um depósito irregular na acepção do art.o 1131.o do CC. É, pois, adequada a intervenção do direito penal no conflito pecuniário em questão.
Em suma, há que naufragar a pretensão formulada pelos arguidos na sua motivação de recurso una.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o pedido formulado pelos dois arguidos no recurso interposto do despacho de pronúncia.
Pagarão os arguidos as custas dos seus recursos, com quatro UC de taxas de justiça individuais.
Macau, 29 de Março de 2012.
________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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