Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso penal
N.º 47 / 2010
Recorrente: A
1. Relatório
A e outro arguido B foram julgados no Tribunal Judicial de Base no âmbito do processo comum colectivo n.º CR4-07-0086-PCC. Afinal, a arguida A foi condenada pela prática de um crime de tráfico ilícito de drogas previsto e punido pelo art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009 na pena de 4 anos de prisão.
Desta decisão a arguida recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. No seu acórdão de 22 de Julho de 2010 proferido no processo n.º 564/2010, julgou-se rejeitar o recurso por manifesta improcedência.
Vem agora a arguida recorrer deste acórdão para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões úteis na motivação do recurso:
- A respeito do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o Tribunal tinha de investigar sobre por quantas vezes e em que quantidade o arguido B ter chegado a fornecer a droga à ora recorrente, especialmente sobre os produtos estupefacientes apreendidos na casa desta, ainda tinha de investigar onde o arguido B tinha adquirido drogas.
- O Tribunal tinha de investigar sobre onde ou de quem o arguido B tinha conseguido produtos estupefacientes para consumo próprio e a respectiva quantidade antes de ter conhecido a ora recorrente.
- Se a recorrente quisesse, de facto, fornecer tais produtos estupefacientes ao arguido B em 12 de Abril de 2005, por que a arguida teria fornecido tais produtos ao arguido B na madrugada e na casa quando seu marido tinha regressado à casa depois do serviço? Face a tantas dúvidas e sem ter as apurado, como o Tribunal a quo podia concluir, de facto, que os produtos estupefacientes apreendidos na casa do arguido B foram adquiridos à recorrente?
- Tais lacunas são suficientes para deduzir que o acórdão proferido pelo Tribunal a quo enfermou do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto.
- Sobre a contradição insanável da fundamentação, não é procedente a afirmação do Tribunal a quo de que o arguido B já demonstrou uma atitude de cooperação com a polícia na investigação por ter confessado à PJ por sua iniciativa própria o lugar onde escondera os produtos em causa e ter os entregado à polícia, pois o arguido B vinha sendo alvo de investigação da Polícia por muitos dias e os produtos estupefacientes estavam escondidos na casa, assim, mesmo sem ele confessar o lugar onde escondera tais produtos, agentes da PJ terão os encontrado na busca. Por isso, segunda a regra da experiência comum e práticas judiciárias de Macau, com tal conduta, o arguido não podia beneficiar da atenuação prevista no art.º 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
- Do acórdão recorrido não constam fundamentos para a decisão de negar o motivo de denúncia caluniosa por parte do arguido B.
- A respeito do erro notório na apreciação, de acordo com as provas produzidas na audiência de julgamento, é certo que não podia provar que os produtos estupefacientes apreendidos na residência do arguido B foram fornecidos pela recorrente na madrugada do dia 12 de Abril de 2005, na residência desta, sita no [Endereço(1)], pelo que está ilógica e contrária à regra da experiência comum esta parte da matéria de facto provada do acórdão recorrido por não encontrar suporte na prova.
- Tanto o Tribunal a quo como o Colectivo recorrido violou o art.º 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 17/2009, conjugado com as normas dos art.ºs 65.º, 40.º e 48.º do Código Penal, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e substituí-lo com uma decisão justa que condena a recorrente na pena de 3 anos de prisão com suspensão da execução da pena.
A recorrente indicou ainda uma série de provas a ser reapreciadas nesta instância.
Pedindo afinal que seja absolvida do crime de tráfico ilícito de drogas previsto no art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, ou determinar a renovação da prova na segunda instância ou o reenvio do processo para novo julgamento, ou revogar o acórdão recorrido, com a atenuação especial da pena e a sua suspensão na execução.
Na resposta, o Ministério Público entende que o recurso deve ser julgado manifestamente improcedente com a consequente rejeição.
Nesta instância, o Ministério Público emitiu o parecer no mesmo sentido, sustentando a inexistência de qualquer dos vícios alegados, e a sua invocação mais não fez do que discordar do julgamento da matéria de facto, afrontando flagrantemente a regra da livre apreciação da prova consagrada no art.° 114.° do Código de Processo Penal, e a pena aplicada não pode deixar de ter-se como justa e equilibrada.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Matéria de facto
O Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância consideraram fixada a seguinte matéria de facto:
“Factos provados:
No dia 13 de Abril de 2005, cerca das 18h30, agentes da Polícia Judiciária interceptaram o arguido B na [Endereço(2)].
Em seguida, agentes da PJ deslocaram-se à residência do arguido B, sita na [Endereço(2)] para efectuar uma busca.
Durante a busca, o arguido B retirou por sua iniciativa própria, um pacote de planta junto da janela da cozinha, 11 pílulas de cor de laranja clara e 15 boquilhas de papel; mais retirou dois pacotes de mortalhas para enrolar fumo do caixote de lixo do seu quarto de dormir; todos os objectos acima referidos foram entregues à PJ pelo arguido.
Submetidos a exame laboratorial, a planta acima referida contém Canabis, substância essa controlada na tabela I-C anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com o peso líquido total de 23,215g; as pílulas acima referidas contêm Nimetazepam, substância essa controlada na tabela IV anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com o peso líquido total de 1,840g; nas boquilhas acima referidas encontram-se vestígios de Canabis.
Produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pelo arguido B na madrugada do dia 12 de Abril de 2005 à arguida A, na residência desta sita no [Endereço(1)].
O arguido B adquiriu tais produtos em causa principalmente para seu próprio consumo e de vez em quando fornecia também à arguida A para o consumo desta.
As boquilhas e papeis para enrolar fumo acima referidos constituem artefactos utilizados pelo arguido B para o consumo de droga.
Dia 13 de Abril de 2005, cerca das 22h20, segundo informações prestadas pelo arguido B e com sua colaboração, agentes da PJ interceptaram a arguida A junto ao portão do [Endereço(1)].
Em seguida, agentes da PJ efectuaram uma busca na residência da arguida A, sita no [Endereço(1)], durante a qual, foram encontradas, no quarto de dormir, 7 pílulas de cor de laranja, um pacote de planta, um cigarro manualmente enrolado, 6 pacotes de mortalhas para enrolar e 6 boquilhas.
Submetidos a exame laboratorial, as 7 pílulas de cor de laranja clara acima referidas contêm Nimetazepam, substância essa controlada na tabela IV anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com o peso líquido total de 1,180g; o pacote de planta acima referida contém Canabis, substância essa controlada na tabela I-C anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com o peso líquido total de 4,608g; o cigarro manualmente enrolado acima referido contém Canabis, substância essa controlada na tabela I-C anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com o peso líquido total de 0,235g; as 6 boquilhas e 6 pacotes de mortalhas para enrolar acima referidas contêm vestígios de Canabis.
Os produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pela arguida A a um indivíduo cuja identidade ainda não foi apurada para o próprio consumo.
As mortalhas de enrolar e boquilhas de mortalhas acima referidas constituem artefactos da arguida A para o consumo de droga.
Agindo assim, a arguida A e o arguido B agiram de forma livre, voluntária e consciente.
Os arguidos bem sabiam a natureza e as características das drogas acima referidas.
Os arguidos bem sabiam que as suas condutas não eram permitidas pela lei.
Sabiam perfeitamente que suas condutas eram proibidas e punidas pela lei.
Mais se provou:
Segundo os respectivos registos criminais, ambos os arguidos são primários.
Factos não provados:
Não há outros factos relevantes a provar.”
2.2 A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Para invocar este vício, a recorrente entende que o tribunal recorrido não apurou, em relação a outro arguido B, os factos indispensáveis para o julgamento de direitos, tais como quantas vezes e as quantidades de droga que este forneceu à recorrente, por que meio ele adquiriu droga, bem como antes de conhecer a recorrente onde e por quem adquiriu a droga e as respectivas quantidades, e a razão de fornecimento de droga pela recorrente na casa desta ao referido arguido depois de o marido dela voltar a casa do trabalho na madrugada.
De acordo com a matéria apurada pelo tribunal colectivo de primeira instância, não se vislumbra qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto.
Realmente, ficou provado nomeadamente que a recorrente forneceu Canabis e comprimidos contendo Nimetazepam ao arguido B, tal já é suficiente para integrar o crime de tráfico ilícito de drogas previsto no art.° 8.°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009.
A matéria ora invocada pela recorrente acima referida, para além de não constituir objecto do presente processo, não é necessária para apurar a responsabilidade penal da recorrente nem para a verificação do mesmo crime de tráfico ilícito de drogas, pois para isso basta a existência, por exemplo, de fornecimento, venda, compra, cedência ou simples posse de droga, sem autorização, fora das situações de consumo próprio. O modo de aquisição de droga pelo agente não faz parte dos elementos típicos do crime, embora pode relevar para outros efeitos legais.
2.3 Contradição insanável da fundamentação e violação do art.° 410.°, n.° 3 do Código de Processo Penal
A recorrente considera que existe incompatibilidade inultrapassável entre os factos provados e a fundamentação, quando o tribunal colectivo deu como provado que foram apreendidas várias drogas na residência do arguido B e valorizou a atitude colaboradora deste após a sua detenção, que consiste em comunicar à polícia o lugar onde se escondeu as drogas e as entregou, sem qualquer motivo para imputar o crime à recorrente.
Sustenta a recorrente que o referido arguido já tem sido alvo de investigação pela polícia e para ele era necessário identificar uma pessoa com a maior probabilidade de posse de droga de modo a eximir a própria responsabilidade penal.
Também não se verifica nenhuma contradição na fundamentação no acórdão de primeira instância.
Para além de não ter sido provada a invocada intenção hipotética do arguido B, a posição da recorrente consiste simplesmente em apresentar a sua visão do caso, a fim de pôr em causa a livre convicção do tribunal, que não é admitido por prescrição do art.° 114.° do Código de Processo Penal (CPP).
Em relação à intenção de denúncia caluniosa do arguido B contra a recorrente, o tribunal recorrido tomou posição expressa sobre a consequência da sua invocação e o vício em causa, pelo que não há qualquer violação do art.° 410.°, n.° 3 do CPP.
2.4 Erro notório na apreciação da prova
A recorrente entende que era impossível ao tribunal colectivo de primeira instância dar como provado que as drogas apreendidas a outro arguido foram fornecidas pela recorrente na casa desta, alegando que foi o tal arguido que inicialmente ensinou a recorrente a consumir Canabis, o tribunal colectivo não apurou outras circunstâncias do fornecimento das drogas, a recorrente negou o fornecimento das drogas ao arguido, não há outra prova para demonstrar o fornecimento das drogas pela recorrente ao arguido para além de dois agentes da Polícia Judiciária testemunharem na audiência que foi o arguido a referir tal facto, a confirmação pelo marido da recorrente da inexistência de entrega de qualquer objecto pela recorrente ao arguido, a confirmação do sogro da recorrente de que o arguido não levou qualquer objecto ao sair da sua casa.
Mais uma vez, a recorrente limita, com a invocação do vício, a questionar a convicção do tribunal.
Segundo a motivação de facto constante do acórdão de primeira instância, o tribunal colectivo valorou o depoimento do arguido B que indicou a recorrente como fornecedora das drogas, considerando que não há indício de qualquer motivo de denúncia caluniosa contra a recorrente, ao contrário de não valorar o depoimento da recorrente, que se apresentou contraditório e explicar em que termos.
Com esta fundamentação de facto não se verifica nenhum erro na apreciação da prova. As provas invocadas pela recorrente são apenas para sustentar a sua própria convicção, insusceptível de impor à convicção do tribunal, ao abrigo do mencionado art.° 114.° do CPP.
2.5 Medida da pena e a suspensão da execução
A recorrente considera a pena de 4 anos de prisão fixada pelas instâncias demasiado severa, invocando sobretudo a sua situação pessoal e familiar, ser cidadã comum, sem característica de criminoso, comprimento da medida de coacção e a manutenção de boa conduta.
À recorrente foi aplicado o novo regime sobre o tráfico ilícito de drogas previsto na Lei n.° 17/2009 por ser concretamente mais favorável e foi condenada pela prática de um crime de tráfico ilícito de drogas previsto no seu art.º 8.º, n.º 1, punível com a pena de 3 a 15 anos de prisão.
Na fixação da pena concreta, é sempre atendido o prescrito no art.° 65.° do Código Penal, tal como foi cumprido pelos tribunais de instâncias.
No presente caso, é de destacar, antes de mais, o facto fundamental de fornecimento de 23,215g de Canabis e 11 comprimidos contendo Nimetazepam, com o peso líquido de 1,84g, pela recorrente a outro arguido. A favor da recorrente nada de relevo se provou.
Considerando todas as circunstâncias da prática do crime pela recorrente, mostra-se justa e equilibrada a pena de 4 anos de prisão fixada pelas instâncias.
Por a pena concreta ser superior a 3 anos de prisão, não está preenchida a condição de suspensão da execução da pena de prisão prevista no art.° 48.°, n.° 1 do Código Penal.
Assim, o presente recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
E o pedido de renovação da prova não pode ser atendido, pois este Tribunal de Última Instância, no julgamento do recurso correspondente ao terceiro grau de jurisdição, conhece apenas de matéria de direito (art.º 47.º, n.º 2 da Lei n.º 9/1999), sem poder de cognição para reapreciar as provas.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, é a recorrente condenada a pagar 4 UC.
Custas pela recorrente com a taxa de justiça fixada em 5 UC.
Aos 29 de Setembro de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.º 47 / 2010 1