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Processo nº 282/2011
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 08 de Março de 2012

Assunto:
- Contrato a favor de terceiro
- Trabalhadores não residentes

SUMÁRIO:
- A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de trabalhadores não residentes na RAEM e a entidade patronal desses trabalhadores, no qual esta assume as condições de trabalho a estabelecer com os trabalhadores não residentes que vier a contratar, condições essas que foram aprovadas pela Administração ao abrigo dos Despachos nºs 12/GM/88 e 49/GM/88, representa para os trabalhadores não residentes um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da entidade patronal origina um correspondente direito de indemnização a favor dos trabalhadores não residentes.
- O DL nº 24/89/M não é aplicável, em princípio, às relações laborais de trabalhadores não residentes, as quais deverão ser reguladas por normas especiais (artº 3º, nº 3, al. d) do citado diploma legal). Contudo, nada obsta a aplicação analógica do mesmo no caso da inexistência das ditas normas especiais.
O Relator,
Ho Wai Neng

Processo nº 282/2011
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 08 de Março de 2012
Recorrente: A (Autora)
Recorrida: Guardforce (Macau) - Serviços e Sistemas de Segurança, Lda.
(Ré)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 02/02/2011, julgou-se a acção improcedente e, em consequência, absolveu-se a Ré do pedido.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. A questão central do presente recurso prende-se em saber se a Recorrente, ao longo de toda a relação de trabalho que manteve com a Ré terá auferido um "salário mensal" ou antes "um salário determinado em função das horas de trabalho efectivamente prestado";
2. O Tribunal a quo concluiu "que o salário da autora era determinado em função das horas que efectivamente trabalhasse" e, como tal, "não tem a ré que pagar qualquer quantia à autora";
3. Porém, a douta decisão enferma de vários vícios quer relativos à decisão sobre a matéria de facto, quer respeitantes à concreta interpretação e aplicação do Direito o que, em último caso, conduz à sua nulidade;
4. Com efeito, resulta da matéria de facto assente que foi acordado entre as partes que a Ré pagaria à Autora, como contrapartida da actividade prestada, a título de salário base mensal, a quantia de Mop$1700, de Mop$1800, ou de Mop$2288, conforme o concreto período contratual em causa;
5. Neste sentido, necessariamente se teria de concluir que a Autora teria auferido um salário mensal, por ter sido esta a concreta vontade das partes e, bem assim, por ter sido esta a forma de pagamento entre as partes durante toda a relação de trabalho;
6. Certo é que, se num primeiro momento o Tribunal a quo começou por sublinhar que "na verdade, as partes falam em "salário base mensal", apontando para o salário mensal; acto contínuo, acabou por concluir que "mas logo se encarregaram de dizer que era "para um conjunto de 215 horas", o que aponta para um salário de vencimento mensal mas calculado em junção das horas efectivas de trabalho";
7. Acontece, porém, que é no mínimo estranho que a Autora se tenha disponibilizado a prestar trabalho em troca de um salário determinado em função do período de trabalho que efectivamente presta, ou em função do resultado que efectivamente vai produzir e, ao mesmo tempo, se tivesse comprometido a prestar para o empregador um período de trabalho de "215 horas de trabalho por mês" e de "8 horas de trabalho por dia";
8. Ou melhor, não faz qualquer sentido a Autora ter sido contratada em função das horas que trabalhava e, ao mesmo tempo, se ter comprometido a prestar "8 horas de trabalho por dia" de forma a atingir "215 horas mensais", correspondentes a 26,875 dias de trabalho (se é que isto é possível);
9. Mais estranho se torna, porquanto a própria Ré não conseguiu demonstrar ao Tribunal a quo a que correspondia aquela forma de cálculo e de que modo se teria conseguido determinar tais valores ... de "215 horas por mês", correspondentes a 26,875 dias de trabalho por mês, limitando-se a remeter para o acordo constante do contrato de trabalho que até hoje não se dignou juntar aos autos;
10. Tendo a Autora sido esporadicamente dispensada de trabalhar (sublinhese, dispensada com autorização da Ré) é mais do que natural que a mesma nada tivesse a receber pelo tempo que não trabalhou;
11. Tal não poderá, todavia, servir de argumento a que o salário da Autora seria determinado em função das horas que efectivamente trabalhava, porquanto a mesma solução vale para os trabalhadores que auferem um salário mensal: isto é, em caso de dispensa, não há lugar a pagamento de salário;
12. Tendo ficado provado que durante todo o período da relação laboral a "Ré sempre fixou o local e horário de trabalho da Autora de acordo com as suas exclusivas necessidades" (cfr. ponto 3 da matéria assente), em caso algum o Tribunal a quo poderia ter concluído que o salário da Autora era determinado "em função das horas efectivas de trabalho" pois, se assim, fosse, a Autora seria livre de ir trabalhar ou não conforme fosse a sua disposição diária ou horária;
13. E, a este concreto respeito, nunca será demais sublinhar que acaso a Recorrente (e as largas centenas de guardas de segurança que com ela prestaram trabalho para a Ré) tivesse sido remunerada em função das horas de trabalho que efectivamente prestava, seria a própria actividade da Ré, enquanto empresa de prestação de serviços de segurança 24 horas por dia, que necessariamente sairia prejudicada ... porquanto a Ré nunca poderia saber com quantos trabalhadores (in casu, guardas de segurança) poderia contar de modo a cumprir integralmente as largas centenas de contratos de vigilância de instalações públicas e privadas que detinha e detém em Macau;
14. A não se entender assim, existem na douta Sentença um conjunto de vícios que conduzem à sua nulidade, porquanto a matéria de facto dada por assente (em especial os pontos 3, 6, 7, 8, 9, l0, 11, 12, 13 e 15) estará em contradição com a decisão, nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 571.° do Código do Processo Civil;
15. Acaso se tivesse de concluir que a Autora foi remunerada em função das horas de trabalho que efectivamente prestava, então pelo trabalhado prestado em dia de descanso semanal teria de ser aplicado por analogia o disposto na al. a) do n.º 6 do art. 17.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, o que não foi feito pelo Tribunal a quo;
16. Sendo certo que, da aplicação analógica resultaria uma solução mais favorável para a Autora do que a solução alcançada pelo douto Tribunal a quo;
17. De onde, também por aqui a douta Decisão terá levado a cabo uma errada interpretação e aplicação do Direito, maxime do art. 17.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, em claro prejuízo para a Autora e, em consequência, deve a mesma ser substituída por outra que interprete e aplique correctamente o referido preceito;
18. Não é líquido, ou isento de dúvida, que o trabalho prestado de modo voluntário não confere ao trabalhador o direito a gozar de um outro dia de descanso compensatório;
19. Mas mais estranho se torna que o "julgamento" de um único caso de um trabalhador contra a Ré tenha conseguido demonstrar a existência de um verdadeiro uso ou mesmo de um costume, completamente criado e enraizado na consciência de todos os trabalhadores da Ré, no sentido de não gozarem de um dia de descanso semanal por vontade própria;
20. Para que tal pudesse ter sido possível seria, no mínimo, exigível ao Tribunal a quo averiguar se tal prática constante e reiterada teria expressa correspondência na convicção da sua obrigatoriedade junto da maioria dos trabalhadores da Ré ... tal qual determina a boa interpretação jurídica ..., ou, mais simples, no mínimo, determinar se aquele "uso" seria um dos quais a Lei das Relações de Trabalho confere validade jurídica, por remeter para ele de modo directo;
21. De onde, não tendo sido feita nem a prova da convicção da obrigatoriedade do uso, nem remetendo a Lei para a sua admissibilidade, em caso algum o Tribunal a quo poderia ter concluído pela existência do mesmo e, como tal, também nesta parte está a douta Sentença inquinada por má aplicação da Lei e do Direito o que conduz à sua nulidade;
22. Acaso a Autora tivesse auferido "um salário determinado em junção do tempo de trabalho", então, como compensação devida pelo período de descanso anual e pelos feriados obrigatórios que a mesma teria direito a receber uma quantia determinada em função da média diária dos últimos três meses de trabalho efectivamente prestado, ou do período durante o qual a relação de trabalho tenha efectivamente permanecido, quando de duração inferior, incluindo-se na determinação da referida média, num e noutro caso, o trabalho extraordinário;
23. De onde, provado que a Autora gozou de descanso anual e de feriados e que os mesmos foram remunerados (Cfr. pontos 17, 22 e 23 da matéria de facto assente) o Tribunal a quo tinha de apurar se a concreta forma de remuneração respeitou o regime imperativo constante do n.º 4 do art. 26.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril;
24. Certo é que dos documentos juntos pela Ré em sede de audiência e julgamento não ficou demonstrado que a Ré pagou à Autora uma qualquer quantia por 6 dias de férias anuais, somente se mostrando que as quantias pagas a título de feriados remunerados variavam entre Mop$41,86 (para um feriado ocorrido no mês de Março) a Mop$1379 (como forma de remunerar os 3 dias de feriado por ocasião do ano novo lunar);
25. Tendo o referido documento sido aceite e junto aos presentes autos, deveria o seu concreto conteúdo ser tido em conta para a descoberta da verdade material e, também por aqui ser a Ré condenada a pagar à Autora as quantias reclamadas em sede de Petição Inicial, sob pena de o Tribunal a quo ter deixado de se pronunciar sobre uma questão que deveria ter apreciado, o que conduz à nulidade da douta Decisão, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 571.° do Código de Processo Civil.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene a Ré no pedido.
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A Ré, ora recorrida, respondeu à motivação do recurso do Autor, nos termos constantes a fls. 165 a 184, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
1. Entre 1 de Fevereiro de 1992 e 13 de Abril de 2007, a Autora prestou para a Ré funções de “guarda de segurança”.
2. Trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré.
3. A Ré sempre fixou o local e horário de trabalho da Autora de acordo com as exclusivas necessidades.
4. Em 15 de Fevereiro de 2007, no decurso da relação de trabalho que ao tempo unia a Autora à Ré, a Autora assinou um documento de onde consta que aceitava receber da Ré a quantia de MOP$13,958.00, a título de compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal.
5. Tal quantia foi, efectivamente recebida pela Autora.
6. Autora e Ré acordaram que, entre Fevereiro de 1992 e Setembro de 1995, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$1.800,00 (mil e oitocentas patacas) – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensal e oito horas de trabalho diárias, acrescidas de MOP$10,00, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$88,00, por cada dia de trabalho prestado.
7. Autora e Ré acordaram que, entre Outubro de 1995 a Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$1700 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$8, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$95, por cada dia de trabalho prestado.
8. Autora e Ré acordaram que, entre Julho de 1997 a Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$1800 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$9.3, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$104.20, por cada dia de trabalho prestado.
9. Autora e Ré acordaram que, entre Abril de 1998 a Junho de 2002, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$2000 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$9.3, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$111.60, por cada dia de trabalho prestado.
10. Autora e Ré acordaram que, entre Julho de 2002 a Dezembro de 2002, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$2000 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$10, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$114.40, por cada dia de trabalho prestado.
11. Autora e Ré acordaram que, entre Janeiro de 2003 a Fevereiro de 2005, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$2000 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$11, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$118.40, por cada dia de trabalho prestado.
12. Autora e Ré acordaram que, entre Março de 2005 a Fevereiro de 2006, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$2100 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$11.3, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$123.60, por cada dia de trabalho prestado.
13. Autora e Ré acordaram que, entre Março de 2006 a Dezembro de 2006, como contrapartida da actividade prestada pela autora, a Ré lhe pagaria, a título de salário base mensal, a quantia de MOP$2288 – para um conjunto de 215 horas de trabalho mensais e oito horas de trabalho diárias – acrescidas de MOP$11.5, por cada hora de trabalho prestada para além das oito horas de trabalho diárias, o que perfaz em média a quantia de MOP$134, por cada dia de trabalho prestado.
14. Desde o início da relação de trabalho entre a Autora e a Ré, a primeira nunca gozou de qualquer dia de descanso semanal, tendo a Autora recebido da Ré, em contrapartida, por cada hora de trabalho prestado no dia de descanso semanal, a quantia que nos demais dias próximos recebia pelo trabalho prestado além de oito horas diárias.
15. A Autora foi esporadicamente dispensada de trabalhar por autorização da Ré, nada recebendo a Autora pelo tempo em que não trabalhasse.
16. Nunca a Ré conferiu à Autora, em troca do trabalho prestado em dia de descanso semanal um qualquer outro dia de descanso compensatório.
17. Ao longo da relação laboral, a Autora gozou dias de descanso anual e feriados.
18. Sendo que os mesmos foram remunerados.
19. A Autora, voluntariamente, não gozou dias de descanso semanal.
20. Entre os trabalhadores da Ré criou-se e enraizou-se um uso e costume de trabalharem sem gozar dias de descanso semanal, não por solicitação da Ré, mas por vontade própria.
21. A Autora disponibilizou-se a trabalhar nos dias de descanso semanal.
22. A Autora sempre foi compensada pela Ré pelo trabalho prestado em dia de feriado obrigatório remunerado.
23. A Ré nunca impediu a Autora de gozar os dias de descanso anual.
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III – Fundamentos
O tribunal a quo considerou que a remuneração da Autora não era mensal, mas sim calculada em função do trabalho efectivamente prestado, por entender que tal corresponde à vontade real das partes.
Salvo o devido respeito, somos de opinião contrária.
A questão de saber se o salário dos guardas de segurança da Ré é mensal ou calculado em função do trabalho efectivamente prestado já não é novidade para este Tribunal, pois teve oportunidade de se pronunciar em vários processos congéneres.
A título exemplificativo, cita-se o Ac. deste Tribunal de 16/06/2001, proferido no Proc. nº 838/2010, onde se pronunciou que:
“Ora, in casu, os vários valores mensalmente pagos respeitam aos vários períodos de tempo sucessivos, quais são: de JUL 1997 a MAR1998, de ABR1998 a FEV2005, de MAR2005 a FEV2006 e de MAR2006 a DEZ2006.
Isto é, aos vários espaços de tempo, uns mais longos outros mais curtos, todos temporalmente quantificados em mês no calendário dos correspondentes anos civis.
Nota-se que durante toda a extensão de cada um desses espaços de tempo, o autor auferia sempre um salário num constante valor de dinheiro (MOP$1.800,00, MOP$2.000,00, MOP$2.100,00 e MOP$2.288,00).
E entende-se por mês cada uma das 12 divisões do ano solar, sete com 31 dias, quatro com 30 dias e uma com 28 dias ou (nos anos bissextos) 29 dias.
Pergunta-se será possível que num espaço de tempo mais ou menos longo, por exemplo o compreendido entre ABR1998 e FEV2005, o Autor auferia, a título de salário, em todos os meses, sempre o mesmo constante valor de MOP$2.000,00, se este valor mensal fosse determinado de acordo com as horas de trabalho efectivamente prestadas pelo Autor?
Ou seja, será possível que, num período de 83 meses (de ABR1998 a FEV2005), o Autor e a Ré, conseguiram engendrar o número das horas de trabalho efectivamente prestadas, em cada um dos 83 meses de duração variada (uns com 31 dias, outros com 30, 28 ou 29 dias), por forma a corresponder exactamente a um salário no valor sempre igual de MOP$2.000,00, nem mais nem menos uma pataca?
Naturalmente as regras da experiência da vida levam-nos a responder negativamente a essa interrogação.
Uma vez que, não tendo todos estes meses o mesmo número de dias, uns com 31, outros com 30, 28 ou 29, só através de uma variação intencionalmente manipulada e bem calculada do número das horas de trabalho é que se torna possível manter sempre inalterado o quantum salarial (MOP$2.000,00) durante tantos meses.
Não cremos que foi o que aconteceu.
Antes pelo contrário, cremos que o facto de ter sido sempre no mesmo valor o salário mensalmente auferido pelo autor durante todo o período de tempo em causa deve-se à circunstância de o Autor ter auferido um salário mensal, independente do número dos dias em cada mês. ”
Não se vê qualquer razão plausível para alterar a jurisprudência já fixada.
Verificado que o salário da Autora é mensal, vamos agora apreciar se os pedidos da Autora procedem.
Como é sabido, o DL nº 24/89/M não é aplicável, em princípio, às relações laborais de trabalhadores não residentes, as quais são reguladas por normas especiais (artº 3º, nº 3, al. d) do citado diploma legal).
Porém, até à entrada em vigor da Lei nº 21/2009, não existiam no ordenamento jurídico de Macau as ditas normas especiais, pois, quer o Despacho nº 12/GM/88, quer o Despacho nº 49/GM/88, ambos regulam essencialmente a forma de contratação dos trabalhadores não residentes. Quanto às condições de trabalho, nada dizem respeito, apenas estabelecendo que compete à DSTE verificar e informar se se encontram satisfeitos os requisitos mínimos exigíveis para o efeito (al. d) do nº 9 do Despacho nº 12/GM/88 e b.4 do nº 2 do Despacho nº 49/GM/88).
Quid iuris?
Tem-se entendido, quer ao nível da jurisprudência, quer da doutrina, que o regime geral da relação laboral é susceptível de aplicar, por analogia, aos casos especiais quando se verificar a falta de regulamentação específica para o efeito.
Por exemplo, o Prof. Jorge Leite, sustenta que são aplicáveis aos contratos de regime especial “as leis gerais que os excluem do seu âmbito de aplicação, quando não haja lei especial, na medida em que a falta de regulamentação se analise numa inconstitucionalidade por omissão ou mesmo numa inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade” (Direito do Trabalho, Serviços Sociais da U.C., Serviço de Textos, Coimbra, 1993, pág 145).
Além disso, temos ainda o Ac. deste Tribunal, de 17/11/2011, proferido no Proc. nº 491/2011, onde analisou, de forma pormenorizada e cuidadosa, a questão em causa.
Com a devida vénia e a propósito de situação igual à que ora nos ocupa, transcreve-se a jurisprudência citada:
“É verdade que do artº 3º/3-d) do D. L. Nº 24/89/M resulta que este diploma não se aplica às relações de trabalho entre empregados e trabalhadores não residentes, as quais são reguladas pelas normas especiais que se encontram em vigor.
Todavia, o problema é que não existe normas especiais reguladoras das relações de trabalho entre empregados e trabalhadores não residentes durante o período a que se reportam os factos dos presentes autos.
Para a recorrente, na circunstância da falta das normas especiais, será aplicado o regime contratualmente assumido e aceite pelas partes e bem assim os princípios gerais de direito de trabalho assumidos pelo nosso direito, como sejam, nomeadamente os previstos no artº 5º da Lei nº 4/98/M.
Na esteira desse raciocínio, defende que in casu o cálculo da remuneração a pagar ao trabalhador pelo trabalho extraordinário e pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal ser aplicado de acordo com aquilo que as partes acordaram, ou seja, o pagamento do mesmo como se um dia de trabalho normal se tratasse, o qual se encontra já pago, devendo a Ré, ora Recorrente ser absolvida do pedido.
Para nós, a boa solução quanto ao regime aplicável só poderá ser encontrada mediante a cuidadosa averiguação da razão de ser subjacente ao acima referido artº 3º/3-e) do D.L. nº 24/89/M.
Ou seja, temos de procurar saber primeiro qual é a razão que levou o nosso legislador a decidir a retirar a aplicabilidade do decreto às relações de trabalho entre empregados e trabalhadores Ac. 491/2011-36 não residentes e remetê-las para a lei especial.
A resposta está expressamente dita na Lei nº 4/98/M de 27JUL.
Essa lei, intitulada “Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais”, estabelece no seu artº 9º que:
(Complemento dos recursos humanos locais)
1. A contratação de trabalhadores não residentes apenas é admitida quando, cumulativamente, vise suprir a inexistência ou insuficiência de trabalhadores residentes aptos a prestar trabalho em condições de igualdade de custos e de eficiência e seja limitada temporalmente.
2. A contratação de trabalhadores não residentes não é admitida quando, apesar de verificados os requisitos constantes do número anterior, contribua de forma significativa para a redução dos direitos laborais ou provoque, directa ou indirectamente, a cessação, sem justa causa, de contratos de trabalho.
3. A contratação de trabalhadores não residentes depende de autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
4. O recurso à prestação de trabalho por trabalhadores não residentes pode ser definida por sectores de actividade económica, consoante as necessidades do mercado, a conjuntura económica e as tendências de crescimento sectoriais.
É bem óbvia a intenção do legislador no sentido de que a contratação dos trabalhadores não residentes tem sempre natureza complementar dos recursos humanos locais.
O que justifica que a sua regulação seja remetida para uma lei especial e a diferenciação no tratamento dos trabalhadores locais e dos não residentes.
Da leitura dos normativos desse artº 9º, nota-se que não é admissível o recurso à importação da mão-de-obra por motivo da redução de custos na produção ou na exploração, mas sim por razões estritas da falta de recursos humanos locais disponíveis.
Assim, se o recurso a trabalhadores não residente não puder ter por objectivo reduzir custos da entidade patronal a fim de aumentar a sua competitividade no mercado ou maximizar os seus lucros, a diferenciação no tratamento dos trabalhadores locais e dos não residentes só se justifica no que diz respeito à sua contratação ou importação, e nunca aos seus direitos, deveres e garantias fundamentais.
Aliás estas ideias estão bem patenteadas no texto do artº 9º/1 da mesma lei de base, pois ai estão enfatizadas as condições de igualdade de custos na contratação de trabalhadores não residentes.
Por outro lado, a Lei Básica manda no seu artº 40º a continuação da aplicação das disposições constantes do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, mediante leis da Região Administrativa Especial de Macau.
Nos termos do artº 7º do Pacto, estabelece-se que os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa gozar de condições de trabalho equitativas e satisfatórias que assegurem, em especial:
a) Uma remuneração que proporcione como mínimo a todos os trabalhadores:
i) Um salário igual pelo trabalho de igual valor, sem distinções de nenhuma espécie; em particular, deve assegurar-se às mulheres condições de trabalho não inferiores às dos homens, com salário igual para trabalho igual;
ii) Condições de vida dignas para eles e para as suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto.
b) Segurança e higiene no trabalho;
c) Iguais oportunidades de promoção no trabalho à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que não sejam os factores de tempo de serviço e capacidade;
d) O descanso, usufruir do tempo livre, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas pagas, assim como a remuneração dos dias feriados.
O que foi justamente concretizado no artº 5º da Lei de Base acima referida.
Reza esse artº 5º com a epígrafe Direitos Laborais que:
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, nacionalidade ou território de origem, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade;
b) À igualdade de salário entre trabalho igual ou de valor igual;
c) À prestação do trabalho em condições de higiene e segurança;
d) À assistência na doença;
e) A um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas, bem como a receber remuneração nos dias feriados;
f) À filiação em associação representativa dos seus interesses.
2. É garantida especial protecção às mulheres trabalhadoras, nomeadamente durante a gravidez e depois do parto, aos menores e aos deficientes em situação de trabalho.
Por força dessas normas de origem constitucional e da lei ordinária que vimos supra, temos sempre a obrigação de salvaguardar o princípio da igualdade de salário entre trabalho igual ou de valor igual.
Defende agora a recorrente que na falta das normas especiais reguladoras da forma da compensação de trabalho prestado pelo Autor, enquanto trabalhador não residente, em dias de descanso semanal, deve aplicar-se o acordo contratualmente estipulado, isto é, o pagamento como se um dia de trabalho normal se tratasse.
Só aceitariamos essa tese se do contratualmente acordo resultasse uma forma da compensação mais favorável ao Autor do que o mínimo exigido pela lei geral.
Comparando a forma hipotética de compensações à luz do estabelecido no D. L. nº 24/89/M e a forma defendida pela Ré, nomeadamente no que diz respeito às compensações do trabalho extraordinário e do trabalho prestado em dias de descanso semanal, salta à vista que o preconizado pela ora recorrente se mostra menos favorável ao Autor, o que viola o acima citado princípio da igualdade de salário entre trabalho igual ou de valor igual.
Portanto não é de aceitar a tese da recorrente.
Então como é que vamos preencher a lacuna da lei, resultante da falta das normas especiais a que se refere o artº 3º/3 do D. L. nº 24/89/M.
A este propósito diz o Código Civil no seu artº 9º que:
1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
Ora, in casu, com respeito pelo princípio da igualdade de salário entre trabalho igual ou de valor igual, entendemos que as razões subjacentes ao citado artº 17º do D. L. nº 24/89/M e justificativas da atribuição de uma compensação pelo dobro da retribuição normal valem perfeitamente para a regulação, ora omissa na lei vigente, da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal pelo trabalhadores não residentes.
Nem se diga que a essa solução obsta a circunstância de o próprio D. L. nº 24/89/M ter determinado a sua não aplicação às relações laborais com trabalhadores não residentes, uma vez que a não aplicação é condicional, isto é, só se não aplica se existirem normas especiais nesta matéria.
Não se verificando essa condição, naturalmente nada obsta a aplicação analógica.
Ademais, mesmo que não se recorresse à aplicação analógica do artº 17º do mesmo decreto para a integração da lacuna, a solução seria a mesma, pois pegando do princípio da igualdade de salário entre trabalho igual ou de valor igual, estamos sempre habilitados para criar uma norma de teor igual a fim de a aplicar ao caso sub judice, ao abrigo do disposto no artº 9º/3 do Código Civil”.
É a jurisprudência bem fundamentada que aponta a boa solução do caso com a qual concordamos na sua íntegra e cujo conteúdo aqui, respeitosamente, fazemos nosso.
Encontrado o regime jurídico aplicável, vamos agora determinar o quantum compensatório.
Ficaram provados que ao longo da relação laboral, a Autora gozou os dias de descanso anual e feriados, sendo que os mesmos foram remunerados, o que implica desde logo a improcedência dos pedidos de compensação relativos aos mesmos.
Fica assim apenas por apurar o quantum compensatório do descanso semanal.
Nos termos da al. a) do nº 6 artº 17º do DL nº 24/89/M, o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser pago pelo dobro da retribuição normal aos trabalhadores que auferem salário mensal, que é o caso.
Assim, a Autora tem direito a receber:









Como a Autora já recebeu a quantia de MOP$13,958.00, tendo ainda o direito de receber o montante de MOP$87,981.47.
No que respeita ao dia de descanso compensatório do descanso semanal, cumpre dizer que o mesmo só tem lugar quando a prestação do trabalho foi exigido pela entidade patronal, que não é o caso, pois resulta dos factos provados que “entre os trabalhadores da Ré criou-se e enraizou-se um uso e costume de trabalharem sem gozar dias de descanso semanal, não por solicitação da Ré, mas por vontade própria”.
Nesta conformidade, deixa de haver lugar o dia de descanso compensatório.
No mesmo sentido e a título do estudo do direito comparado, cita-se a doutrina de José Carlos Bento da Silva e Miguel Pacheco Arruda Quental, Manual de Formação de Direito do Trabalho, 2006, pág. 96, obra essa também citada pelo tribunal a quo na sentença recorrida.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida e condenando a Ré a pagar à Autora a quantia acima apurada de MOP$87,981.47, a título de compensação dos dias de descanso semanal não gozados, acrescida de juros de mora calculados nos termos do Ac. da uniformização da jurisprudência do TUI, de 02/03/2011, proferido no Proc. 68/2010.
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Custas pela Autora e Ré em ambas as instâncias na proporção do decaímento.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 08 de Março de 2012.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong



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282/2011