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Processo nº 683/2011 Data: 15.03.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
Juros.



SUMÁRIO

1. O vício da “insuficiência da matéria de fato provada para a decisão” apenas se verifica quando Tribunal não emite pronúncia sobre matéria objecto do processo.

2. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

De facto, é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

3. A construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).

Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro

4. A indemnização pecuniária por facto ilícito, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, vence juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o respectivo montante, nos termos dos artigos 560.º, n.º 5, 794.º, n.º 4 e 795.º, n. os 1 e 2 do Código Civil, seja sentença de 1.ª Instância ou de tribunal de recurso ou decisão na acção executiva que liquide a obrigação.

O relator,

______________________


Processo nº 683/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação pública e em audiência colectiva respondeu A, com os restantes sinais dos autos, vindo, a final, a ser condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “burla (de valor elevado)” p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, na condição de pagar à lesada, no prazo de 3 anos contados a partir da data do trânsito em julgado da decisão, a indemnização no montante de HKD$100.000,00 e RMB¥20.000,00, e juros; (cfr., fls. 182-v s 183 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para, concluir nos termos seguintes:

“i. O prazo de juros vencidos fixado pelo acórdão recorrido viola a jurisprudência unificada do processo n.º 69/2010 de 2 de Março de 2011.
ii. A recorrente não confessou a conduta de burla que lhe era imputada na acusação. Aliás, a mesma reconheceu e repetidamente declarou que iria pagar toda a dívida referida neste processo à lesada, senhora B; A lesada também afirmou varias vezes no julgamento: “no momento de empréstimo (ocorrência do caso), a recorrente prometeu o reembolso de capital e juros, por uma só vez, em Abril de 2008”; Durante o julgamento, a recorrente prometeu o reembolso mensal de 5000,00 à lesada até integral pagamento.
iii. A qualificação do crime de burla na lei vigente: o agente tem a intenção de enganar os terceiros através da prática da respectiva conduta, isso é o pressuposto para constituir o crime de burla. O crime de burla é aquele que, para além de ter a finalidade da posse ilegal, também a de posse ilegal dos patrimónios de outrem; para constituir este crime, deve se verifica ao agente, subjectivamente, a “representação” e a “intenção”. No entanto, a recorrente agiu sem dolo.
iv. Segundo o ponto 12 na página 12 do acórdão, a recorrente pediu empréstimo à lesada para fazer investimento, mas não que a enganou para que esta participasse num projecto de investimento não existente. A recorrente também prometeu o reembolso após uma semana. E o ponto 13 na página 12 do acórdão: a recorrente declarou que o parente tinha acidente de viação e precisou urgentemente de dinheiro, pelo que aquela pediu empréstimo de RMB¥20.000,00 à ofendida.
v. Nos termos do art.º 211.º, n.º 1 do CP, constitui crime de burla quando o acto de burla determinar a disposição patrimonial “errada” do lesado, e o “enriquecimento ilegítimo” do agente, fazendo com que o património do lesado sofra prejuízo quanto à “quantidade”. O ponto-chave é que o património da lesada não sofreu prejuízo em relação à quantidade, mas tornou-se numa relação de direitos e obrigações que vence juros. Por isso, deve a credora fazer interpelação à devedora de acordo com o direito das obrigações previsto no Código Civil.
vi. O acórdão recorrido, na falta do elemento constitutivo de tipo de crime, violou manifestamente o princípio fundamental do direito penal previsto pelo art.º 1.º do CP, isto é, o princípio da legalidade.
vii. Pelo que tal acórdão padece do vício referido no art.º 400.º, n.º 1 do CPP.
viii. O Tribunal recorrido ignorou o depoimento conclusivo da lesada no julgamento, isto é, “queria mais juros e tinha confiança nela”. A recorrente nunca negou a dívida, e tendo sempre a intenção de a pagar. Vamos ver com atenção os pontos 12 e 13 na página 12 do acórdão, ambos usam “pedir empréstimo”. Devemos esclarecer que o ponto 12: emprestar dinheiro à recorrente para que esta investisse em seu nome próprio, e o ponto 13º: “...ajudar para arranjar o dinheiro”.
ix. Nestes termos, podemos concluir que a recorrente foi condenada pela prática do crime de burla por causa das duas vezes de empréstimo referidas nos pontos 12º e 13º, que fazem parte dum série de actos de pedir empréstimo. Além disso, a lesada voluntariamente emprestou dinheiro à recorrente, que fez investimento em seu próprio nome e emprestou-o aos parentes na terra para caso emergente. De acordo com os respectivos dispostos no Código Civil, a qualificação jurídica dos dois empréstimos acima referidos entre a recorrente e a lesada trata-se do “contrato de mútuo oneroso”, com juros à taxa fixa de 2 por cento ao mês. De facto, o património da lesada não diminui em relação à sua “quantidade”.
x. Face ao exposto, não se verificam, evidentemente, os elementos constitutivos do crime de burla de valor elevado previsto no art.º 211.º, n.º 3 do CP. Pelo que se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º400.º, n.º 2, al. a) do CPP. Pelo que, deve absolver a recorrente do crime que lhe era imputado.
xi. Tanto o atestado médico passado pelo médico A, especialista de psiquiatria, como o “relatório escrito dos dados de caso individual” feito pela senhora B, assistente da Família Afectuosa e Solidária — Centro de Aconselhamento sobre o Jogo e de Apoio à Família de C mostram que a recorrente é um jogador de azar patológico. Um dos sintomas do jogo de azar patológico: pedir empréstimo para jogar, querendo ganhar o que foi perdido. O Tribunal recorrido não considerou que a recorrente tinha se tornado um jogador de azar patológico desde cerca de 2005. O acórdão recorrido também ignorou que o acto de pedir empréstimo aos familiares e amigos com várias desculpas é um sintoma de jogador de azar patológico. De acordo com as regras de experiência comum, podemos saber que o Tribunal recorrido reconheceu erradamente que a recorrente tinha praticado o crime de burla.
xii. A recorrente pediu empréstimo várias vezes à lesada para jogar, actos esses são característicos para jogador de azar patológico, mas o acórdão recorrido dividiu estes actos e erradamente condenou a recorrente pela prática de crime de burla que lhe era imputado nos pontos 12 (empréstimo de HKD$100.000,00) 13 (empréstimo de RMB¥20.000,00) da acusação.
xiii. O acórdão ignorou também que a lesada afirmou muitas vezes no julgamento: as partes acordaram em reembolso das importâncias de empréstimo por uma só vez em Abril de 2008 (capital e juros à taxa fixa de 2 por cento ao mês); e a recorrente também declarou reconhecer as dívidas. Isso é evidentemente um litígio de empréstimo, mas tratado pelo Tribunal recorrido com direito penal, o qual violou o princípio de este ser o último meio de intervenção. Pelo que a recorrente deve ser absolvida do crime que lhe era imputado.
xiv. Pelo que se verifica neste acórdão o vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. c) do CPP.
xv. Face ao exposto, no que toca à medida da pena, o Tribunal recorrido não atendeu à prevenção geral e especial que é defendida pelo CP, nem à personalidade da agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste..., pelo que é demasiado pesada a pena lhe aplicada, isto é, pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, o qual viola o pensamento jurídico nas alíneas b), c), d) e e) do artigo 65 do CP. Pelo que deve a pena ser atenuada de forma adequada”; (cfr., fls. 193 a 212 e 252 a 276).

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Em resposta, considera o Exmo. Magistrado do Ministério Público que o recurso deve ser julgado improcedente; (cfr., fls. 213).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Independentemente da matéria alegada pela recorrente, ou com parte dela talvez conexionada, cremos merecer reparo o decidido, desde logo no que tange ao não preenchimento de todos os elementos constitutivos da infracção imputada - burla - , mais concretamente que a determinação da ofendida às várias entregas de do dinheiro em questão à arguida tenha resultado de “erro ou engano sobre factos que astuciosamente” esta tenha provocado.
Pese embora no douto acórdão em crise se tenha estabelecido que “A arguida, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo e de violar direitos patrimoniais de terceiro, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinou prejuízo patrimonial a outrem”, a verdade é que, de toda a matéria tida como comprovada resulta, com clareza que, do que se tratou, independentemente dos fins para que a arguida alegava tratarem-se os variados empréstimos, era disso mesmo que se tratava: de meros empréstimos efectuados pela ofendida à arguida, confiante na devolução dos mesmos, na maioria com juros “por entender boa a condição oferecida pela arguida”, por acreditar que a mesma “iria cumprir o compromisso”, “entendendo razoável a condição”, querendo com isto referir (e, tal resulta claro na exposição dos fundamentos” que, para além de confiar na devolução dos empréstimos, almejava a ofendida obter lucros advenientes dos juros que acertava com a arguida.
Ou seja, o que perpassa por todo o narrado é que a arguida emprestou, por variadíssimas vezes, dinheiro à ofendida, com os mais variados pretextos, vendo-se bem que não era com fé nesses pretextos que os empréstimos eram concedidos, mas sim com o fito da obtenção, através dos mesmos, de lucros juros provenientes dos juros respectivos, ou porque, pura e simplesmente, confiava naquela.
Assim, aquela predisposição, aquela determinação para a entrega das quantias em causa não resultou e quaisquer artifícios, ardis ou astúcia que tivessem levado ao logro, ao engano da ofendida, tendo esta agido apenas na base da confiança que depositava na arguida, no sentido de que a mesma devolveria o dinheiro, até com juros.
É certo que os “motivos” adiantados pela arguida para os empréstimos que obtinha não seriam verdadeiros: de todo o modo - e isso o que releva - não foram, notoriamente, tais motivos que determinaram (pelo menos isso não resulta, com clareza, do acórdão) a ofendida à prática dos factos que lhe determinaram prejuízo patrimonial, mas, quando muito, a confiança que depositava na ofendida, independentemente das razões que esta oferecesse para os empréstimos pretendidos. E isso, manifestamente, não constitui burla.
Daí que se não veja preenchido, como se referiu, o tipo de ilícito por que a arguida foi punida.
Razões por que se entende merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 278 a 279).

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Realizada a audiência de julgamento do recurso, e nada obstando passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão dados como provados os factos seguintes:

“1)
  Desde há muitos anos que a arguida A começou a acompanhar amigos do interior da China a jogar nos casinos de Macau, pelo que ela perdeu toda a sua poupança (vd. fls. 79v e 96v).
  Em Dezembro de 2007, a arguida conheceu o colega B quando trabalhava no departamento de XX do The XX Macao-Resort-Hotel (ofendido, vide fls. 16, 79v e 96v).
2)
  A fim de adquirir dinheiro para recuperar o dinheiro perdido nos jogos, desde Dezembro de 2007 e Março de 2008, a arguida usava, por várias vezes, de enganos e meios de taxas de juros elevadas, para induzir a ofendida B a emprestar-lhe dinheiro. No entanto, a ofendida não sabia que aquele dinheiro era usado nos jogos e perdido. A seguir apresenta-se a circunstância concreta (vd. fls. 16 a 18, 79v e 96v):
  1. Em Dezembro de 2007, a arguida pediu empréstimo à lesada para investimento, dizendo que se a ofendida quisesse prestar empréstimo, o juro mensal seria HKD$2.000,00 para cada HKD$100.000,00, juro esse podia ser descontado directamente da verba emprestada. A ofendida concordou com a prestação do empréstimo por entender boa a condição oferecida pela arguida.
  Por isso, em 28 de Dezembro de 2007, a ofendida dirigiu-se ao Banco da China, Sucursal de Macau para transferir HKD$48.000,00 para a conta da ofendida (sic.) (vd. fls. 16 e v, fls. 19).
  Por a verba emprestada ser menos de HKD$100.000,00, em 31 de Dezembro de 2007, a ofendida dirigiu-se, a pedido da arguida, ao Banco Comercial de Macau (BCM) para retirar numerário no valor de HKD$30.000,00 e entregá-lo à arguida (vd. fls. 16v e fls. 20).
  Em 4 de Janeiro de 2008, a ofendida dirigiu-se mais uma vez ao BCM para retirar numerário no valor de HKD$10.000,00 e ao Banco TAI FUNG para retirar HKD$5.000,00, e entregou estes, juntamente com o numerário na sua posse no valor de HKD$3.000,00, à arguida (vd. fls. 16v, 21 e 22).
  Foram descontados os juros de dois meses, no valor de HKD$4.000,00, da verba emprestada pela arguida (vd. 16v, 79v e 96v).
  2. Em 7 de Janeiro de 2008, a arguida declarou que tinha de voltar para a terra por causa do casamento da prima, pelo que pediu à ofendida empréstimo de RMB¥30.000,00 e prometeu o reembolso com a maior brevidade possível. Na altura a ofendida acreditou que a arguida iria cumprir o compromisso, pelo que se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau para retirar RMB¥30.000,00 para entregá-lo à arguida (vd. fls. 16v, 23 e 24,79v e 96v).
  A seguir, a arguida deu à ofendida os recibos dos dois empréstimos acima referidos (vd. 16v, 25 e 26).
  3. No meio de Janeiro de 2008, a arguida disse à ofendida que estava a exercer actividade de mediação de imóveis e pediu-lhe empréstimo de HKD$100.000,00, prometendo-lhe retribuição no valor de HKD$5.000,00, que podia ser descontada directamente do empréstimo. A ofendida entendeu boa a condição oferecida pela arguida, pelo que se dirigiu, em 15 de Janeiro de 2008, respectivamente ao Banco TAI FUNG e BCM para retirar MOP$72.205,00 e HKD$25.000,00 na guia do depósito a prazo, no valor total de HKD$95.000,00, e entregou o dinheiro à arguida (vd. 16v, 27 e 28).
  A seguir, a arguida deu à ofendida um recibo de empréstimo de HKD$100.000,00.
  4. Em 21 de Janeiro de 2008, a arguida pediu à ofendida empréstimo de RMB¥10.000,00, entretanto, com o fim de obter a confiança desta e de continuar pedir-lhe empréstimo, a mesma transferiu, no dia seguinte, HKD$11.000,00 para a ofendida (vd. fls. 17, 79v e 96v).
  5. Em 25 de Janeiro de 2008, a arguida disse que seus amigos estavam a viajar em C da China e precisavam de dinheiro. Pelo que ela quis pedir empréstimo de HKD$12.000,00 à ofendida, que, acreditando que aquela iria devolver o dinheiro, se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau a retirar dinheiro para emprestar-lho. (vd. fls. 17 e 30)
  6. Em 26 de Janeiro de 2008, a arguida disse à ofendida que queria comprar uma fracção de residência em C da China, e tinha de pagar um depósito no valor de RMB¥150.000,00. A mesma disse que se a ofendida lhe emprestasse o dinheiro, daria a este uma retribuição no valor de RMB¥15.000,00. Naquela altura a ofendida entendeu razoável a condição, pelo que concordou com o empréstimo (vd. fls. 17).
  No mesmo dia (26 de Janeiro de 2008), a ofendida dirigiu-se ao Banco TAI FUNG e Banco da China, Sucursal de Macau para retirar, respectivamente, RMB¥7.000,00 e RMB¥18.000,00 (vd. fls. 17)
  A seguir, a ofendida deslocou-se a casa do seu irmão mais novo D para pedir lhe empréstimo de RMB¥70.000,00 (vd. fls. 17 e 47).
  Em 28 de Janeiro de 2008, a ofendida dirigiu-se à loja da Casa de E sita na XX para trocar RMB¥13.000,00, e a uma máquina de ATM junto da XX para retirar RMB¥7.000,00, arranjando em total RMB¥115.000,00 em numerário para entregar à arguida, altura em que esta prometeu que se vendesse a fracção acima referida no meio de Abril de 2008, dar-lhe-ia RMB¥10.000,00 como retribuição. A arguida também assinou um recibo de empréstimo e entregou-o à ofendida. (vd. fls. 17 e 31)
  7. Em 21 de Fevereiro de 2008, a arguida pediu empréstimo à lesada para investimento, dizendo que precisou da ajuda dela. A mesma prometeu o juro mensal de HKD$2.000,00 para cada HKD$100.000,00 emprestado pela ofendida, e que lhe desse, por uma só vez, juros correspondentes a dois meses no valor de HKD$4.000,00. A ofendida entendeu boa a condição, pelo que se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau para transferir HKD$100.000,00 para a conta n.º 161110094276 do mesmo banco aberta pela arguida.
  8. Em 25 de Fevereiro de 2008, a arguida pediu à ofendida empréstimo de HKD$50.000,00, e prometeu juro mensal de HKD$2.000,00, descontado directamente da importância emprestada. Naquele tempo a ofendida achou razoável a condição, pelo que se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau a retirar HKD$48.000,00 na guia do depósito a prazo, e entregou o dinheiro à arguida (vd. fls. 17).
  9. Em 28 de Fevereiro de 2008, a arguida disse que seus amigos do interior da China estavam a viajar em Wynn Macau, pelo que queria pedir-lhe empréstimo de HKD$20.000,00. A ofendida acreditou que a arguida iria reembolsar o montante, pelo que se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau para transferir a verba para a conta da arguida (vd. fls. 17v e 33).
  10. Em 4 de Março de 2008, a arguida disse à ofendida que tinha de ir a Shen Zhen da China por causa dum evento importante, e queria pedir-lhe empréstimo de HKD$20.000,00 pela necessidade emergente do dinheiro. A ofendida acreditou que a arguida iria reembolsar o montante, pelo que se dirigiu ao Banco da China, Sucursal de Macau para retirar RMB¥17.500,00 para entregá-lo, juntamente com HKD$2.500,00 em numerário na sua posse, à arguida (vd. fls. 17v e 34).
  11. Em 10 de Março de 2008, a arguida disse que 4 colegas chineses seus não tinham dinheiro suficiente para reservar quartos no The XX Macao-Resort-Hotel, pelo que pediu à ofendida empréstimo de MOP$5.000,00 (vd. fls. 17v e 35).
  Em 11 de Março de 2008, a arguida alegou que os supracitados colegas precisam de dinheiro na sua visita a Macau, pelo que pediu mais uma vez à ofendida empréstimo de HKD$60.000,00 (vd. fls. 17v e 36).
  Em 12 de Março de 2008, a arguida disse que os mesmos colegas não tinham suficiente dinheiro para fazer compras em Macau, pelo que pediu mais uma vez à ofendida empréstimo de MOP$5.000,00 (vd. 17v).
  Em 14 de Março de 2008, a arguida alegou que os colegas referidos precisam de dinheiro para viajar em Macau, pelo que pediu mais uma vez à ofendida empréstimo de HKD$30.000,00 (vd. fls. 17v e 36).
  Naquele tempo, a arguida prometeu o reembolso dos montantes emprestados entre 10 e 14 de Março de 2008 após a volta dos 4 colegas ao interior da China. (vd. fls. 17)
  12. Em 18 de Março de 2008, a arguida disse à ofendida que estava a exercer com amigo(s) actividade de mediação de imóveis e havia uma fracção com um lugar de estacionamento à venda, mas o comprador só queria a residência, pelo que o lugar de estacionamento devia ser adquirido pela arguida própria, que queria pedir empréstimo de HKD$100.000,00 à ofendida pela a insuficiência de fundos. A mesma também prometeu o reembolso após uma semana, e disse que iria dar a comissão da venda desta fracção à ofendida para agradecer-lhe. Por isso, a ofendida dirigiu-se ao Banco da China, Sucursal de Macau para transferir o montante de HKD$100.000,00 para a conta da arguida (vd. fls. 17v,18 e 37).
  13. Em 27 de Março de 2008, a arguida telefonou à ofendida no interior da China, dizendo que um(a) amigo(a) seu(sua) tinha um acidente de viação no interior da China, e precisou urgentemente de pedir empréstimo de RMB¥20.000,00 à ofendida. A arguida disse à ofendida que esta devia, de qualquer forma, ajudar para arranjar o dinheiro, caso contrário, não iria reembolsar o montante anteriormente emprestado. Por isso, a ofendida dirigiu-se ao Agricultural Bank of China sita em C da China para transferir a verba para a conta da arguida (vd. fls. 18 e 38).
  14. Em 28 de Março de 2008, a arguida disse à ofendida que esta precisava de pagar as taxas do seu telemóvel, pedindo que este transferisse HKD$3.800,00 para a conta dela, mais dizendo que caso este não lhe emprestasse a verba, não reembolsaria o montante anteriormente emprestado. Tendo medo de a arguida não reembolsar o dinheiro, a ofendida dirigiu-se ao Banco da China, Sucursal de Macau para transferir a verba referida para a conta daquela (vd. fls. 18 e 39).
(3)
  Durante o período acima referido (de Dezembro de 2007 a Março de 2008), a arguida adquiriu, por meio de enganos e mentiras, o montante no valor total de HKD$759.800,00 da ofendida, incluindo MOP$10.000,00, HKD$584.800,00 e RMB¥165.000,00 (vd. fls. 18, 79v e 96v).
  Tendo perdido todo o montante acima referido nos jogos, a arguida não conseguiu reembolsá-lo, pelo que começou a esconder-se da ofendida e recusar-se a atender suas chamadas desde o início de Abril de 2008 (vd. fls. 18, 80 e 96v).
  Efectuado o reconhecimento da arguida, a ofendida reconheceu que a arguida foi aquela que lhe mentiu várias vezes para lhe pedir dinheiro e não o reembolsou (vd. o auto de reconhecimento de arguido a fls. 77).
  *
  A arguida, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo e de violar direitos patrimoniais do terceiro, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinou prejuízo patrimonial a outrem.
  A mesma agiu de forma livre, voluntaria e consciente ao praticar a conduta acima referida, e bem sabia que conduta esta é proibida e punida por lei.
  A arguida é empregada de hotel com rendimento mensal de MOP$7.800,00.
  A arguida é casada e tem a seu cargo os pais.
  A arguida não reconheceu os respectivos factos e é delinquente primária.
  A ofendida B declarou que deseja ser indemnizado pelos danos sofridos”; (cfr., fls. 178-v a 181-v e 237 a 245).

Do direito

3. Vem a arguida recorrer do Acórdão do T.J.B. que a condenou pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “burla (de valor elevado)” p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, na condição de pagar à lesada, no prazo de 3 anos contados da data do trânsito em julgado da decisão, do montante de HKD$100.000,00 e RMB¥20.000,00, e juros.

No âmbito do seu recurso, coloca a arguida as questões seguintes:

- insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
- erro notório na apreciação da prova;
- erro na qualificação jurídica dos factos;
- excesso da pena; e
- juros.

–– Comecemos pelos imputados “vícios da matéria de facto”.

Aqui, e sem necessidade de alongadas considerações, cremos que evidente é que o recurso não merece provimento.

Vejamos.

No que toca ao vício da “insuficiência da matéria de fato provada para a decisão”, tem este T.S.I. entendido que o mesmo apenas se verifica quando Tribunal não emite pronúncia sobre matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o Ac. de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 15.12.2011, Proc. 796/2011).

Por sua vez, quanto ao assacado “erro notório”, repetidamente tem esta Instância afirmado que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 07.12.2011, Proc. n.° 656/2011 do ora relator).

Na situação sub judice, e motivos inexistindo para se alterar o assim entendido, de uma mera leitura ao Acórdão recorrido se constata que o Colectivo do T.J.B. não deixou de emitir pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, enumerando a que resultou provada, identificando, igualmente, a que resultou não provada, e fundamentando, de forma que nos parece adequada, esta sua decisão.

Quanto ao “erro notório”, a mesma é a solução.

Com efeito, não se divisa onde, como, ou em que termos terá o Colectivo a quo violado as regras sobre o valor da prova tarifada, as regras de experiência ou legis artis.

Nesta conformidade, e não padecendo a decisão da matéria de facto dos imputados vícios, (ou outro, de conhecimento oficioso), continuemos.

–– Da “qualificação jurídica”.

Foi a arguida condenada pela prática de 1 crime de “burla (de valor elevado)” p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M..

Tem este normativo o teor seguinte:

“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa é punível.

3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:

a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida; ou

c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.

Em acórdão deste T.S.I. consignou-se que “a construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo)” e que, “impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro”; (cfr., 24.02.2011, Proc. n.° 727/2010).

Sendo (também aqui) de se manter o assim entendido, cremos que se deve confirmar a decisão recorrida.

De facto, da factualidade dada como provada resulta que a arguida alegando factos e motivos não verdadeiros, fez com que a ofendida, acreditando neles, lhe tenha entregue quantias pecuniárias que fez suas e que utilizou no jogo.

E, assim, provado estando (também) que “a arguida, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo e de violar direitos patrimoniais do terceiro, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinou prejuízo patrimonial a outrem” e que agiu de forma livre e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei, não vemos como não considerar que cometeu a mesma o crime pelo qual foi condenada.

–– Quanto à “pena”.

O crime de “burla de valor elevado”, é punido com a pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Face a esta moldura penal, fixou o Colectivo a quo a pena de 2 anos de prisão, e, atento o preceituado no art. 48° do C.P.M., decidiu suspender a execução de tal pena pelo período de 3 anos, na condição de a arguida efectuar o pagamento da indemnização arbitrada à ofendida nos termos que já se deixaram explicitados.

No ponto em questão, embora peça a recorrente uma atenuação da dita pena, afirmando ser a mesma excessiva, nada ou pouco de concreto alega para tal efeito; (cfr., concl. XV).

Nesta conformidade, ponderando na moldura penal em questão, tendo presente a factualidade dada como provada, e, nomeadamente, o montante do prejuízo causado à ofendida, e as necessidades de prevenção criminal geral e especial, reparo cremos que não merece a decisão recorrida na parte em questão.

–– Por fim, quanto aos “juros”.

O Acórdão recorrido determinou que os juros fossem contados “desde a data da decisão até integral pagamento”.

Diz a ora recorrente que “o prazo de juros vencidos fixado pelo acórdão recorrido viola a jurisprudência unificada do processo n.° 69/2010 de 2 de Março de 2011”.

Ora, neste douto aresto do T.U.I. considerou-se o que segue:

“A indemnização pecuniária por facto ilícito, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, vence juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o respectivo montante, nos termos dos artigos 560.º, n.º 5, 794.º, n.º 4 e 795.º, n. os 1 e 2 do Código Civil, seja sentença de 1.ª Instância ou de tribunal de recurso ou decisão na acção executiva que liquide a obrigação”.

Atento o assim entendido, não vemos pois motivos para se alterar o decidido, já que se nos mostra em sintonia com a doutrina fixada no mencionado Acordão.

Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acorda negar provimento ao recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.200.00.

Macau, aos 15 de Março de 2012


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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 683/2011 Pág. 2

Proc. 683/2011 Pág. 1