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Processo nº 957/2009
Data do Acórdão: 01MAR2012


Assuntos:

Erro nos pressupostos de facto


SUMÁRIO

1. Para as instalações imóveis onde existe portão de acesso, é razoável afirmar que é o portão marca a delimitação dessas instalações para efeitos de controlo de entrada e saída.

2. Não tendo sido demonstrado nos autos que a eventual demora, a causar pelo cumprimento das formalidades com vista à obtenção da competente autorização para se ausentar dos serviços a fim de buscar medicamento, poderia causar perigo grave para saúde do recorrente, não estamos perante uma situação de estado de necessidade que exclui a culpa do recorrente por ter saído do seu posto de trabalho na hora de serviço sem a competente autorização.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 957/2009

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, Chefe de Primeira do Corpo de Bombeiros, devidamente identificado nos autos, vem recorrer contenciosamente do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, que lhe aplicou a pena de repreensão escrita, concluindo e pedindo:

  1. No dia 10 de Março de 2009, o recorrente encontrava-se de serviço no Posto Operacional do Corpo de Bombeiros do Bairro da Areia Preta.
  2. Por violação de uma determinação de serviço que entrou em vigor no dia 9/5/2008, o ora recorrente foi punido na pena de repreensão escrita.
  3. Nos trâmites processuais o plantão em causa, Bombeiro n.º 419051 foi ouvido em declarações.
  4. No exercício do direito de defesa, o ora recorrente também foi ouvido em declarações e negado ter cometido qualquer violação à supra citada determinação, por se considerar não ter ausentado do Posto Operacional.
  5. No dia 12/6/2009 o Exmo Senhor S/Intendente do C.B., B apresentou um parecer e anexou duas fotografias que se visionavam o local da presente infracção, indicando com as legendas o local onde estava o ora recorrente bem como o referido automóvel.
  6. Por despacho de 22/9/2009 do Exmo Senhor Secretário para a Segurança, confirmou a punição na pena de repreensção escrita.
  7. Conforme os facto supra-identificados, facilmente se pode verificar que o ora recorrente foi acusado e punido, finalmente, por ter considerado que o seu comportamento constitui a ausência do Posto Operacional do Corpo de Bombeiros.
  8. O ora recorrente não se pode nunca conformar com esta decisão porque a forma como foi conduzida o presente processo disciplinar constitui, com a ressalva, do devido respeito, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violando por conseguinte o art.º 86.º do CPA.
  9. Desde já, os factos constantes a fls, 3 do processo (informação 295/AP/2009 de 10/3/2009) se limitou a fazer referência ao local onde se situa o portão do Posto, indicando que o ora recorrente tenha ausentado do referido Posto porque ele tinha ultrapassado uma distância de cerca de 1 metro do portão e aí permanecido cerca de 1 minuto.
  10. Conforme o documento que se junta, mostra-se claramente que entre o portão de correr e o esgoto de água onde o recorrente ficou, tinha uma distância de 1m20.
  11. Tal esgoto de água que constitiu sem margem para dúvida um dos equipamentos da pertença do Corpo de Bombeiros, destinando a proteger as águas que se gastam nos ensaios de combate de fogo, para não molhar as vias públicas, estava ainda dentro do Posto Operacional.
  12. De entre os equipamentos de ensaios, consta ainda um boca de incêndia plantada no espaço entre o portão de correr no. 7 com o esgoto de água que é também da pertença do Corpo de Bombeiros.
  13. Na verdade a linha que demarca o espaço do Posto Operacional não é o portão, uma vez foi por outros motivos é que os portãos de correr do referido posto recuaram para uma distância de 1m20 em relação aos muros que constituem o Posto Operacional.
  14. Isto, até é facilmente se confrontando com as duas fotografias ora juntas, pois se pode verificar que o gabinete do plantão tem as janelas constituídas no exterior do portão de correr.
  15. Para qualquer pessoa de normal diligência, só se pode concluir que a linha de demarcação do referido Posto é a linha recta entre os muros, isto é o local onde está o esgoto de água e não o local onde estava instalado o portão no. 5, sob pena de o Corpo de Bombeiros estava a ocupar os espaços públicos, construindo (ilegalmente) as suas instalações fora da área permitida.
  16. Por isso, não era suficiente os factos supra serem demonstrativos que o ora recorrente tenha ausentado do Posto.
  17. Este entendimento sobre a ausência ou não era vulgar, pois para além do ora recorrente havia muitos colegas que recebem coisas ou comidas (dos familiarers ou encomendadas de fora) naquele local.
  18. Em segundo lugar, o Auto de Notícia a fls. 13 também só indicou que o ora recorrente se ausentou do portão de correr n.º 5 e se aproximou de um automóvel ligeiro, concluindo, sem mais, deste modo que o ora recorrente se tenha ausentado do Posto Operacional do Bairro da Areia Preta.
  19. Não se juntou qualquer fotografia onde se configura o ora recorrente ou o referido autovóvel ligeiro.
  20. Mas, por outro lado, juntou com o parecer de 12/6/2009, duas fotografias do local de infracção, mas também omitiu completamente neles o ora recorrente ou o automóvel ligeiro.
  21. A este propósito, não resta de outro modo a não conformação com o Auto de Notícia a fls. 13 e se considerar uma omissão de uma diligência necessária.
  22. Em terceiro, conforme o conteúdo do auto de declarações do plantão, Bombeiro 419051, a fls. 15 e 16 do processo, facilmente se pode concluir que o Ilustre Instrutor tenha conduzido de forma a induzir o depoente a aceitar que o ora recorrente tenha ausentado do Posto, sem se cuidar se na verdade isso tenha ou não acontecido.
  23. Desde já, se o objecto da infracção foi a ausência ou não do ora recorrente do Posto Operacional. Não se percebe porque é que esta questão fundamental não tinha sido formulada nem sequer uma pergunta directa e exacta. Tal como se o depoente verificou ou não que o ora arguidio/recorrente tinha ausentado do Posto Operacional.
  24. Mas pelo contrário, o instrutor fez uma pergunta que, salvo o devido respeito, induziu o respondente a ter que assumir que o recorrente se ausentou do Posto, p. ex.:
  “… …
  ------ 本人詢問證人:在你擔任上述門口更期間,約上午11時12分,一等消防區長、A步出黑沙環行動站範圍時,有否曾經出示“外勤工作證”或其個人“私事外出申請表”?--------------------------------------------------------------------
  ------ 證人回答:没有。-------------------------------------------------------------------
  ------ 本人詢問證人:目睹該事件後,有否即時向你直屬上級滙報?------------
  ----- 證人回答:没有。--------------------------------------------------------------------
  … …”
  25. Isto, com a ressalta do devido respeito, constitui uma grave violação do Princípio de Boa Fé na forma como conduziu a instrução do presente processo.
  26. Pelos expostos, o despacho recorrido padece de violação de lei por erro nos pressupostos derivado na forma como foi conduzido o processo, com falta de apuramento de factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão. Ferindo desse modo o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada em violação do art.º 86.º do CPA.
  27. Pelo que, nos termos do art.º 124.º do CPA o ora acto recorrido é anulável.
  28. Mesmo que assim se não entenda, ainda assim o despacho recorrido violaria o Princípio de Boa Fé do art.º 8.º do C.P.A.
  29. Pois, na defesa, o ora recorrente para além de invocar que não se ausentou do Posto Operacional, deu também justificação bastante razoávei e aceitável do motivo de ter ido para o local e aproximado do automóvel ligeiro.
  30. Na verdade, o ora recorrente, desde princípios do transacto ano de 2009, se submeteu a tratamentos de psiquiatria até à presente data e previsto a próxima consulta para o dia 28/01/2010, às 09H30.
  31. Por conselho médico, o ora recorrente deve tomar todas as noites um comprimido de “alprazolam cinfa” e todas as manhãs um comprimido de “efexor xr”.
  32. Acontece, porém, que no dia da ocorrência, 10/3/2009 o ora recorrente esqueceu-se de tomar o comprimido de “efexor xr” e viu-se preocupado que isto poderia provocar algo prejudicial para a sua saúde.
  33. Pelo que, ligou para o seu amigo íntimo C pedindo a este para ir até a sua casa ter com a sua mulher para levar o referido comprimido para o recorrente.
  34. Do que, antes da sua chegada, o recorrente foi para o local e onde recebeu o referido comprimido e por educação agradeceu o seu amigo íntimo e por sua vez o seu amigo também lhe deu os cumprimentos.
  35. Ora, conforme se lembra o ora recorrente, o automóvel ligeiro do seu amigo tinha estacionado muito perto do esgoto de água existente à 1m20 de distância do portão no. 5, o que se tornou desnecessária que o recorrente ausentar do Posto.
  36. Ora, mesmo que se V. Exa. entender que a linha de demarcação devia ser a partir do portão de correr e não a área construível do Posto Operacional, do que se diz sem conceder, no caso concreto, havendo uma justificação muito aceitável do ora recorrente e conjugado com a falta de intenção e a pouca importância dos factos apurados, obriga-se que a Administrção agir em conformidade com a Boa Fé e arquivar o processo.
  37. Mostra-se, assim, o acto recorrido desconforme aos ditames do Princípio da Boa Fé, nos termos do qual, no exercício da actividade administrativa, a Administração deve agir com os administrados pautando-se pela “confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” e pelo “objectivo a alcançar com a actuação empreendida.” (art 8.º, n.º 2, als. a) e b) do CPA).
  38. Devendo, em consequência do que se deixa exposto, anular-se o acto recorrido, com todas as suas consequências legais.
  TERMOS EM QUE, e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e anulado o acto recorrido, com todas as suas consequências legais.

Citado, veio o Senhor Secretário para a Segurança contestando pugnando pela improcedência do recurso.

Junta a contestação do Senhor Secretário para a Segurança e apenso o processo instrutor, prosseguindo os autos, foi realizada a inquirição das testemunhas arroladas pelo recorrente e veio apenas a recorrente apresentar as alegações facultativas, reiterando grosso modo os mesmos argumentos já deduzidos no petitório do recurso.

O Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

De acordo com os elementos probatórios existentes nos autos e a livre apreciação feita das provas testemunhais produzidas, é de dar como assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* No momento dos factos que originaram o acto punitivo ora recorrido, o recorrente desempenhava as funções de Chefe de Primeira no Corpo de Bombeiros;

* Por razões da saúde psíquica, o recorrente precisava de tomar todas as noites um comprido de “ALPRAZOLAM CINFA” e todas as manhãs um comprido de “EFFXOR XR”;

* Em 10MAR2009, o recorrente esqueceu-se de tomar o “EFFXOR XR” e encontrava-se em serviço no Posto de Operação da Areia Preta do Corpo de Bombeiros;

* Portanto telefonou para um amigo seu C pedindo que lhe fosse buscar e trazer o tal medicamento;

* Para o efeito, pelas 11h07m29s, o recorrente dirigiu-se ao portão nº 5 do Posto de Operação da Areia Preta do Corpo de Bombeiros e ficou ali de pé junto do portão à espera da chegada desse amigo seu;

* Pelas 11h08m01s, deslocou-se em direcção do exterior do portão por cerca de um metro de distância, aproximou-se de um veículo automóvel ligeiro que se encontrava estacionado sobre o passeio para peões, a fim de entrar em contacto com esse amigo seu C que se encontrava sentado no interior do veículo; e

* Após o que, pelas 11h15m51s, regressou para o interior do posto de operação;

* Existe uma conduta de drenagem fora do portão do posto em causa conforme se vê nas fotografias juntas aos autos;

* O recorrente não chegou a pedir ao seu hierárquico superior a competente autorização para o efeito; e

* Por esses factos o recorrente veio a ser punido com a pena de repreensão escrita com fundamento na ausência não autorizada do serviço.

Atendendo ao que foi alegado e concluído no petitório do recurso e reiterado nas alegações facultativas, são as seguintes questões que constituem o objecto do presente recurso:

1. Erro nos pressupostos de facto; e

2. Violação do princípio de boa fé.

Apreciemos.

1. Erro nos pressupostos de facto

Para o recorrente, apesar de se ter deslocado para o exterior do portão do posto de operação, não se pode imputar-lhe a ausência uma vez que não ultrapassou ainda a conduta de drenagem de águas, que deve ser considerada parte das instalações do posto.

Todavia não assiste razão ao recorrente.

De acordo com o disposto no ponto II, nº 1, al. d) e no ponto III, nº 4, das “Instruções para a entrada e saída do pessoal do Corpo de Bombeiros nos diversos postos de operação”, a saída do posto deve ser precedida da autorização do hierárquico superior.

Tratam-se de instruções normativas elaboradas pela Administração no exercício das suas funções administrativas através da auto-vinculação, devem ser observadas tanto pela própria Administração de onde emanam como pelos seus destinatários.

Apesar de as próprias “instruções” não definirem bem o que entende por saída do posto, não se nos afigura difícil preencher o tal conceito mediante recurso às ideias tidas como “saída” na linguagem comum.

Ora, para as instalações imóveis onde existe portão de acesso, é-nos razoável afirmar que é o portão que marca a delimitação dessas instalações.

In casu, ficou inquestionável que o recorrente se deslocou para o exterior do portão do posto de operação de Areia Preta, não vemos quê erro existe ao imputar-lhe o facto da “saída do posto”.

Por outro lado, não nos convence o argumento deduzido pelo recorrente de que ele próprio não ultrapassou ainda a conduta de drenagem de águas, pois não estamos aqui a descutir a delimitação da propriedade de um terreno, mas sim a analisar a relevância disciplinar da movimentação física de um funcionário aquando do desempenho das suas funções nas determinadas instalações.

Assim, o que releva para efeitos disciplinares deve ser o portão e não a linha marcada pelo percurso da conduta de drenagem de águas.

Inexistindo erro nos pressupostos de facto, não pode deixar de improceder essa parte do recurso.

2. Violação do princípio de boa fé

Com alguns esforços, conseguir alcançar o sentido que o recorrente pretende dizer com a invocação do vício de violação do princípio de boa fé.

No fundo, o que o recorrente pretende dizer é que a saída para o exterior do portão é justificável por motivos razoáveis e atendíveis, isto é, para obter medicamentos de que necessitava naquele preciso momento. Não levando em consideração tais motivos no acto punitivo, a Administração está a agir com violação do princípio de boa fé.

É certo que a lei da função pública permite ausência temporária dos funcionários públicos ou até dispensa do serviço durante período mais ou menos longo por motivo de saúde, nomeadamente para se deslocarem a consultas externas, tratamentos médicos ou hospitalização, não é menos verdade que tais ausência ou dispensa do serviço ficam sempre sujeitas a determinado controlo, nomeadamente por via da pré-autorização ou da pós-justificação.

In casu, pelo teor do normativo das “instruções”, não consideramos que as mesmas são impeditivas da realização do fim a que visa a conduta do recorrente, objecto de punição.

Pois as “instruções” censuram a saída não autorizada e não proíbem a saída quaisquer que seja o motivo.

Por outro lado, não ficou demonstrado nos autos que a eventual demora, a causar pelo cumprimento das formalidades com vista à obtenção da competente autorização para se ausentar dos serviços a fim de buscar medicamento, poderia causar perigo grave para saúde do recorrente.

Não estamos perante uma situação de estado de necessidade que exclui a culpa do agente.

Assim, por ter saído sem autorização do posto na hora do serviço, o recorrente não pode deixar de ser censurável por ter agido como agiu.

Ao censurar o recorrente, a Administração limitou-se a cumprir o normativo que ela própria elaborou para a boa gestão dos recursos humanos, o que constitui manifestação da auto-vinculação da Administração, em nada colidindo com o princípio de boa fé.

Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente pela improcedência do recurso, com a taxa de justiça fixada em 10 UC.

Notifique.

RAEM, 01MAR2012
Lai Kin Hong Presente
Choi Mou Pan Vitor Coelho
João A. G. Gil de Oliveira