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Processo n.º 13/2012 Data do acórdão: 2012-3-22 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– abuso de confiança
– não descoberta do caso por ninguém
– situação exterior típica de crime continuado
– oportunidade favorável à prática do segundo crime
– posse da chave do cofre
– apropriação do dinheiro depositado
– art.o 29.o, n.o 2, do Código Penal
S U M Á R I O
1. O facto de o arguido ter voltado a praticar a conduta de abuso de confiança devido à “não descoberta do caso por ninguém” em relação à sua primeira conduta ocorrida há pouco dias antes, não é subsumível ao exemplo académico de “situação exterior” típica de crime continuado, de furto de objectos depositados em habitação alheia com porta falsa.
2. É que tal circunstância de “não descoberta do caso por ninguém” só ocorreu depois do cometimento da primeira conduta criminosa, pelo que a mesma circunstância não se reconduz a uma oportunidade favorável à prática do segundo crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o arguido para a primeira conduta criminosa.
3. Outrossim, a circunstância de o arguido, após a prática da primeira conduta, continuar a ter posse da chave do cofre da farmácia de que ele era subgerente, chave que utilizou assim para a prática da segunda conduta, igualmente traduzida na apropriação do dinheiro aí depositado, não tem analogia com o outro exemplo académico de “situação exterior” típica, caracterizadora do crime continuado, de o moedeiro falso se ver de novo solicitado a utilizar a aparelhagem que adquiriu ou construiu na primeira vez para fabricar notas, para fabricar de novo notas falsas.
4. Na verdade, tal chave (naturalmente como meio também apto para cometer a primeira conduta criminosa) não foi criada nem adquirida pelo arguido com vista a executar a primeira conduta criminosa, mas sim foi entregue a ele por quem de direito com vista a gerir todo o numerário depositado no cofre.
5. Portanto, a “não descoberta do caso por ninguém” não pode ser considerada, para os efeitos a relevar eventualmente do n.o 2 do art.o 29.o do vigente Código Penal, como “uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” na prática da segunda conduta criminosa, devendo, pois, o arguido ser condenado como autor material de dois crimes consumados de abuso de confiança.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 13/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguido recorrido: A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Em 25 de Novembro de 2011, foi proferido acórdão em primeira instância no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR4-11-0138-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por força do qual o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material, na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do vigente Código Penal de Macau (CP), na pena de um ano e três meses de prisão efectiva (não obstante o Ministério Público ter acusado a autoria material de dois crimes consumados de abuso de confiança do n.o 1 do mesmo art.o 199.o), e, em cúmulo jurídico dessa pena com a pena de um ano de prisão já imposta no Processo n.o CR1-07-0017-PCC, na pena única de um ano e nove meses de prisão efectiva (cfr. o teor desse acórdão, a fls. 114 a 118v dos presentes autos correspondentes).
Inconformada, veio a Digna Procuradora-Adjunta junto desse Tribunal recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), assacando essencialmente à referida decisão judicial a violação do disposto no art.o 29.o, n.o 2, do CP (aquando da consideração, mas errónea, da circunstância fáctica provada de “não descoberta do caso por ninguém” como uma “causa exógena” que aliciou o arguido para a prática do segundo crime de abuso de confiança), para rogar a condenação do arguido como autor material de dois crimes consumados de abuso de confiança (tal como inicialmente vinha acusado), na pena de um ano e três meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico com a pena de prisão então aplicada ao mesmo arguido no seio de um outro processo penal com o n.o CR1-07-0017-PCC, na pena única de dois anos e nove meses de prisão (cfr. a motivação de recurso de fls. 142 a 146 dos autos).
Ao recurso respondeu o arguido (a fls. 158 a 163), no sentido de manutenção do julgado, por concluir sobretudo que o facto de ele não ter sido descoberto após ter praticado o primeiro dos crimes de abuso de confiança, aliado ao facto de ocorrer uma situação em que era necessário e urgente ajudar financeiramente os seus familiares, consubstancia, sem margem de dúvidas, a “solicitação exterior que diminui consideravelmente a sua culpa”.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta junto deste TSI parecer (a fls. 169 a 170v), pugnando pela procedência do recurso.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento neste TSI.
Cumpre, agora, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como ponto de partida para o trabalho, é de relembrar aqui todos os factos inicialmente acusados (e não contestados por escrito pela Defesa) e finalmente dados como provados no acórdão recorrido, de acordo com os quais, e na sua essência que ora interessa à decisão do recurso:
– o arguido chegou a desempenhar as funções de subgerente de uma farmácia sita em Macau, com posse da chave do cofre desse estabelecimento;
– em 14 de Junho de 2010, e sem comunicação prévia à gerente da mesma farmácia, o arguido abriu com a chave tal cofre e retirou daí trinta mil patacas em numerário;
– devido à não descoberta do caso por ninguém, o arguido, em 17 de Junho de 2010, voltou a abrir o cofre com tal chave e retirou daí oito mil patacas em numerário;
– o arguido colocou tais numerários na sua residência, apropriando-se dos mesmos;
– o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente;
– em 28 de Junho de 2010, a gerente da farmácia, depois de ter recebido um telefonema vindo da empresa mãe sediada em Hong Kong, foi perguntar inclusivamente ao arguido sobre o levantamento de dinheiro do cofre, tendo o arguido admitido que foi ele quem retirou tais trinta e oito mil patacas.

E o Tribunal recorrido afirmou no mesmo texto decisório que:
– o arguido confessou os factos acusados de modo integral e sem reservas;
– o arguido declarou ter como halitações literárias o 2.o ano do ensino secundário, e trabalhar como empregado de venda, com dezasseis mil patacas de rendimento mensal, e com os pais a seu cargo;
– conforme o certificado de registo criminal, o arguido não é delinquente primário:
   – devido à prática, em 27 de Dezembro de 2003, de dois crimes de abuso de confiança, foi condenado em 29 de Novembro de 2005 nos autos com o n.o CR4-04-0105-PCC (outrora n.o CR3-04-0222-PCC) na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, período de suspensão esse que, por decisão judicial de 25 de Janeiro de 2011, veio a ser prorrogado por mais um ano, com interdição de entrada em casinos de Macau;
   – devido à prática, em 3 de Outubro de 2006, de um crime qualificado de abuso de confiança, foi condenado, em 30 de Novembro de 2010, nos autos com o n.o CR1-07-0017-PCC, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sob condição de não poder permanecer em casinos de Macau e ter que continuar a trabalhar, com regime de prova.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Analisado o teor da motivação do recurso sub judice, é de concluir que o Ministério Público imputou essencialmente à decisão recorrida o erro de direito traduzido na alegada errada aplicação do n.o 2 do art.o 29.o do CP, embora tenha invocado também o vício, previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do vigente Código de Processo Penal, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício esse que não se verifica no presente caso concreto, por o Tribunal a quo já ter dado por provados todos os factos descritos na acusação pública que tinham constituído propriamente o objecto probando, à falta de contestação escrita pelo arguido.
Pois bem, sobre a problemática do sentido e alcance da figura do crime continuado gizada no art.o 29.o, n.o 2, do CP, é de seguir o entendimento já vertido pelo presente Tribunal Colectivo como tese jurídica designadamente no acórdão do TSI de 17 de Março de 2011 no Processo n.o 913/2010, na esteira dos preciosos ensinamentos doutrinários do saudoso Professor EDUARDO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, págs. 208 e seguintes.
In casu, a circunstância fáctica provada de “não descoberta do caso por ninguém” em relação à conduta praticada pelo arguido em 14 de Junho de 2010 não é subsumível, desde logo, ao exemplo académico de “situação exterior” típica – de crime continuado de que falou aquele insigne Professor – de furto de objectos depositados em habitação alheia com porta falsa.
É que tal circunstância de “não descoberta do caso por ninguém” só ocorreu depois da prática do primeiro caso em 14 de Junho de 2010, pelo que a mesma circunstância não se reconduz a uma “oportunidade favorável à prática do (segundo) crime (em 17 de Junho de 2010), que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa”.
Outrossim, a circunstância de o arguido, depois da prática da primeira conduta criminosa, continuar a ter posse da chave do cofre da farmácia, chave que utilizou assim para a prática da segunda conduta criminosa, não tem analogia com o outro exemplo académico de “situação exterior” típica, caracterizadora do crime continuado também referida na obra ibidem, de o moedeiro falso se ver de novo solicitado a utilizar a aparelhagem que adquiriu ou construiu na primeira vez para fabricar notas, para fabricar de novo notas falsas.
Na verdade, tal chave (naturalmente como meio também apto para praticar a primeira conduta criminosa) não foi criada nem adquirida pelo arguido “com vista a executar a primeira conduta criminosa”, mas sim foi entregue a ele por quem de direito com vista a gerir todo o numerário depositado no cofre.
Aliás, é precisamente essa própria especificidade do pano de fundo do crime de abuso de confiança concretamente em questão nos presentes autos penais – dentro da qual o arguido tem fácil acesso ao numerário depositado no cofre como dinheiro previamente confiado a ele por quem de direito a título não translativo da propriedade – que afasta por si qualquer semelhança fáctica com o caso de moedeiro falso ou com o caso de furto em habitação com porta falsa.
Portanto, a “não descoberta do caso (de 14 de Junho de 2010) por ninguém” não pode ser considerada, para os efeitos a relevar eventualmente do n.o 2 do art.o 29.o do CP, como “uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” na prática do segundo caso em 17 de Junho de 2010, pelo que o arguido deve ser condenado como autor material de dois crimes consumados de abuso de confiança nos termos inicialmente acusados.
E em sede da medida da pena, atentas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância (das quais resulta que o montante em causa na segunda conduta criminosa é inferior ao na primeira conduta), é de impor ao arguido, sob a égide dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, um ano e três meses de prisão ao crime praticado em 14 de Junho de 2010, e um ano de prisão ao crime cometido em 17 de Junho de 2010, e, em sede de cúmulo jurídico, operado nos termos conjugados dos art.os 71.o, n.o 2, e 72.o, n.o 1, do CP, dessas duas penas parcelares com a pena de um ano de prisão outrora aplicada no Processo n.o CR1-07-0017-PCC, dois anos de prisão única efectiva.
Procede, em suma, parcialmente o recurso.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do Ministério Público, passando a condenar o arguido A como autor material, na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1, do Código Penal, praticados em 14 e 17 de Junho de 2010 respectivamente, em um ano e três meses de prisão para o primeiro e um ano de prisão para o segundo, e, em cúmulo destas penas com a pena de um ano de prisão já imposta no Processo n.o CR1-07-0017-PCC, na pena única de dois anos de prisão efectiva.
Pagará o arguido a metade das custas do recurso e duas UC de taxa de justiça, por ter sustentado a manutenção integral do julgado recorrido, enquanto o Ministério Público fica isento da restante porção das custas.
Comunique o presente acórdão ao Processo n.o CR1-07-0017-PCC do Tribunal Judicial de Base, e à farmácia ofendida.
Macau, 22 de Março de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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