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Processo nº 143/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Abril de 2012
Descritores:
-Declaração de remissão/quitação


SUMÁRIO:
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.

II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.

III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.

IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.

V- A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais.






Proc. nº 143/2011
(Recurso civil e Laboral)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu acção comum de trabalho contra a STDM e SJM, pedindo, inter alia, a condenação destas no pagamento de Mop$881.045,72 como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início até ao fim da relação laboral, acrescida dos juros legais.
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No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção do pagamento e remissão dos créditos reclamados e declarada nula a declaração de fls. 256 feita pela autora.

Foi ainda julgada parcialmente procedente a excepção de prescrição, sendo a 1ª ré absolvida do pedido relativa ao descanso anual de 1991 a 1993.
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Desse despacho recorreu, então, a STDM (fls. 393 e sgs.), em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
1- O douto Despacho Saneador proferido pelo Tribunal Judicial de Base em 13 de Novembro de 2009, cuja parte constante de fls. 379v a 381 v é aqui posta em crise pelo presente Recurso, deverá ser revisto e reformulado, e em consequência, deverá a ora Ré e Recorrente ser absolvida, considerando-se as presentes alegações de Recurso procedentes por provadas.
2- O presente Recurso respeita à qualificação jurídica da Declaração, contida no Documento n.º 1 junto à Contestação da aqui Recorrente, a fls. 256 dos autos, bem como aos efeitos extintivos do negócio obrigacional celebrado e constante nos Documentos nºs 1, 3 e 4 da Contestação, Declaração que foi denominada pela Recorrente como “Da Remissão de créditos”;
3- A qual é considerada pelo Tribunal a quo como uma transacção preventiva ou extrajudicial que, uma vez não cumprindo o respectivo formalismo legal, estaria ferida de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 212º e 279º, ambos do CC.
4- Ora, seja qual for a qualificação jurídica atribuída à referida Declaração junta como Documento n.º1 à Contestação, isto é:
i. Como Remissão de créditos ou de dívidas, no entendimento da Ré, Recorrente, nos termos e para os efeitos dos artigos 854º e seguintes do CC e, também, nos termos dos artigos 863º e seguintes do CC anteriormente em vigor aqui em Macau,
ii. Como uma Excepção (inominada) denominada “Da Remissão de créditos”, tal como consta da Contestação,
iii. Como Quitação com Reconhecimento Negativo de Dívida, segundo o entendimento do Ilustre TUI de Macau,
iv. Ou, ainda, como uma transacção extrajudicial ou preventiva (artigos 1172º a 1174º do CC), no entendimento do douto Tribunal a quo,
5- A verdade é que, a mesma não se encontra ferida de nulidade por falta de formalismo negocial ou de formalidade do contrato em causa, pois o mesmo não tinha de ser celebrado sob a forma de escritura pública.
6- De facto, a Ré, aqui Recorrente, considera que a Declaração não é nula nos termos dos artigos 212º e 279 º do CC, preceitos invocados pelo douto Tribunal a quo no Despacho Saneador recorrido.
7- A parte final do artigo 1174º do CC e a alínea n) do número 2 do artigo 94º do CN prevêem que: “A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida (...).”.
8- Nada na Declaração de fls. 256 dos autos, na modesta opinião da Recorrente, justifica, implica ou exige a sua celebração através de escritura pública, para salvaguardar algum efeito para o qual a escritura seja exigida.
9- Na parte final do já mencionado artigo 1174º do CC e na alínea n) do número 2 do artigo 94º do CN consta, ainda, que a transacção preventiva ou extrajudicial “ (…) deve constar de documento escrito nos casos restantes.”.
10- A Declaração (junta aos autos como Documento n.º 1 da Contestação e confirmada ou, reiterada ou, sublinhada, ainda, pelos Documentos n.º 3 e n.º 4 da mesma) demonstra que o(a) A. e ora Recorrido(a) foi compensado(a), pago(a), ressarcido(a) e indemnizado(a) pela Ré, aqui Recorrente, pelos descansos semanais, descansos anuais e pelos feriados obrigatórios, sendo pois a mesma remissiva e extintiva das obrigações do(a) ora Recorrente.
11- Ademais, demonstra que tendo o(a) A. recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Recorrente subsiste e, portanto, nenhuma outra quantia é exigível à Recorrente, na medida em que nenhuma das partes deve mais nenhuma compensação relativa ao vínculo laboral.
12- Como consta do mesmo douto Despacho Saneador recorrido, foi considerado provado que o(a) A. recebeu da Ré, STDM, S.A., duas quantias, ou seja, MOP$26.029,90 e MOP$13.014,95, tendo assinado em 19 de Julho de 2003 o documento junto a fls 256, no qual declarou o seguinte:
13- “ter recebido a quantia de (...) referente à compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.;” E, mais declarou que, “com o montante recebido, nenhum outro direito decorrido da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pelo A., na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral;”.
14- Ora, atendendo ao supra referido foi confessado pelo(a) A. o recebimento, por parte da Recorrente, da quantia e o negócio obrigacional extintivo entre os ora litigantes, após o termo da relação contratual e laboral, que impedia e proíbe o(a) A. de demandar a 1a “Ré/Recorrente, produzindo os seus efeitos e devendo, em sua consequência, absolver integralmente a segunda, de todos os pedidos e da lide aqui em discussão, pela procedência do Documento n.º 1 junto à Contestação.
15- E, com esse acordo obrigacional, extintivo e excepção material ou peremptória, nenhum outro montante e nenhum pedido extra ou superveniente pode vir a ser solicitado ou exigido de qualquer das partes, após a conclusão e perfeição da Declaração negocial contida a fls. 256 destes autos.
16- Como - e muito bem, refira-se - também consta do douto Despacho Saneador ora posto em crise pelo presente Recurso, conclui-se que houve mesmo um acordo entre as partes, Recorrido(a) e Recorrente, no sentido de, mediante o pagamento da referida quantia, porem termo ao litígio.
17- Como se transcreve da douta decisão recorrida: “Ora, dos termos dessa declaração, vê-se que a vontade do A. era no sentido de pôr termo ao litígio que o separava da 1a R., pois tinha declarado que nenhuma pretensão subsistia relativamente aos direitos em questão. Além disso, há que ter em conta que a causa dessa vontade é o recebimento de uma certa quantia pecuniária entregue pela 1a R.. Daí se conclui sem dificuldade que houve um acordo, eventualmente tácito, estabelecido entre as partes, directamente ou em virtude da intervenção da então Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego, no sentido de, mediante o pagamento da referida quantia, as partes porem termo ao litígio.”,
18- Pelo que, tal acordo ou negócio jurídico extintivo é válido, eficaz, e apto a produzir os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes (i.e. então um ex-colaborador e uma ex-entidade empregadora), extinguindo-se toda e qualquer quantia, bem como litígio ou pedido, a nome da certeza e da segurança jurídicas, valores essenciais do Direito e da Ordem Jurídica, como pretenderam os aqui litigantes, nesse momento temporal.
19- O(a) aqui Recorrido(a), ainda, recebeu outra quantia, também pela compensação e ressarcimento e indemnização dos descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, desta Recorrente, em outro momento do ano de 2003, por mor do processo de contravenção laboral n.º1476/2002 que fora patrocinado pela na altura DSTE, agora denominada DSAL.
20- Contudo, há que sublinhar o seguinte: não existe nem existiu sequer, um alegado acordo tácito ou expresso do recebimento das quantias aludidas, como se a Declaração de Remissão ínsita a fls. 256 dos autos tivesse a ver com o litígio que correu termos em 2002 e 2003 enquanto uma contravenção laboral com o processo n.º1476/2002 e com o recebimento, a final, da outra quantia paga pela Recorrente ao Recorrido, no valor de MOP 13.014,95, pois este último montante foi pago no âmbito de um litígio judicial e decorrente desse litígio.
21- Assim, a Declaração junta na Contestação como Documento n.º1 não é, de todo, uma transacção extrajudicial, nem existe uma necessária articulação entre as duas quantias, ao contrário do que consta no Despacho recorrido,
22- A não ser que ambas pagaram, ressarciram e compensaram o(a) A./Recorrido(a) pelos créditos e motivos e pretensões que, novamente, veio a juízo reclamar da ora Recorrente, o que não poderia, atenta a segunda parte da Declaração de fls. 256 dos autos.
23- De facto, tendo já recebido duas quantias pelos mesmos motivos da aqui Recorrente, é evidente o(a) aqui Recorrido(a) não podia ter instaurado a presente acção judicial laboral,
24- Nem podia, igualmente, demandar, reclamar, exigir, peticionar, pedir, qualquer outra quantia monetária por conta dos termos do acordo contido a fls. 256 dos autos.
25- Deste modo, pela procedência da excepção peremptória ou material ou substantiva de remissão ou de transacção preventiva ou extrajudicial ou quitação ou quitação com reconhecimento negativo de dívida ou pagamento ou, “Da Remissão de créditos” como foi deduzida a excepção material na Contestação,
26- A Declaração de fls. 256 é válida, eficaz, produtora de efeitos, e deverá absolver a Recorrente do pedido, sem prejuízo do prosseguimento destes autos a final,
27- Improcedendo, assim, as razões enunciadas de fls. 379v a 381 v dos autos, isto é, na parte em que o douto Tribunal recorrido decidiu, na fase do Saneamento, que a mesma Declaração não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida e como tal deve ser considerada nula nos termos legais,
28- Quando o certo - salvo melhor juízo, entendimento e opinião - é que tal Declaração não precisava ser celebrada através da forma solene da escritura pública.
29- Logo, quanto aos demais pontos do douto Despacho Saneador ora posto em crise, reenvia-se o exposto para a Contestação da Ré, aqui Recorrente, e,
30- Caso a Declaração de fls. 256 dos autos venha a ser considerada formalmente válida, produzirá os seus efeitos e absolverá a Recorrente do pedido, pela procedência do alegado nos artigos 28º a 101º da Contestação, revogando-se, pois, o douto Despacho Saneador aqui recorrido, e seguindo-se os demais termos subsequentes do processo.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis que Vossas Exas. melhor suprirão, deve o presente Recurso Interlocutório ser julgado integralmente procedente, revogando-se a decisão contida no douto Despacho Saneador do Tribunal a quo aqui recorrido em conformidade, só desta forma se fazendo a sempre devida e costumada JUSTIÇA!
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A autora respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
A. O que existiu foi uma transacção quanto à remuneração devida pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória da prestação do trabalho, a qual levou à emissão da declaração de fls. 256, sendo esta declaração mero acto posterior àquela.
B. Assim, a declaração de fls. 256 consiste apenas num acto posterior à transacção celebrada entre as partes quanto à remuneração do trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória da prestação de trabalho, não se podendo confundir com ela.
C. E como essa transacção precedeu a declaração de fls. 256 pela Autora, não consta de documento escrito como impõe o 1174.º do CCM, pelo que é necessariamente nula por força do disposto no art.º 212.º do CCM.
D. Por outro lado, uma vez que a transacção também não foi precedida de autorização do Gabinete para os Assuntos de Trabalho, conforme impunha o n.º 1 da alínea d) do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, a mesma é nula e, como tal, insusceptível de produzir qualquer efeito.
E. Acresce que a segunda parte da “declaração”(聲明書) relativa ao “prémio de serviço” (服務賞金) a que se refere o documento 1 da Contestação (fls. 256) consubstancia um acto ou negócio nulo, nos termos do disposto no art.º 287.º do Código Civil ex vi dos artigos 6.º e 33.º do Decreto-Lei 24/89/M, independentemente de a relação jurídica iniciada com a 1a Ré se ter ou não extinto com a transferência da A. para a SJM.
F. A declaração a que se refere o documento de fls. 256 não configura um contrato de remissão de créditos nem um reconhecimento negativo de dívida, porque para que exista um contrato de remissão de créditos ou uma declaração de reconhecimento negativo de dívida é necessário que o credor queira renunciar a esse crédito ou que a dívida objecto do reconhecimento exista ou que, tendo existido, se tenha entretanto extinguido.
G. Por outras palavras, na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 3.a Edição, 1986, II volume, pág. 156, nota 4, o credor só pode reconhecer a inexistência de uma obrigação que nunca tenha existido ou que, a ter existido, foi entretanto extinta, sendo-lhe impossível reconhecer a inexistência de eventuais obrigações.
H. Assim, o entendimento defendido pela Recorrente de que a segunda parte do documento de fls. 256 configura ou pode configurar um reconhecimento negativo de dívida mostra-se contrário ao disposto no art.º 391.º do CCM, uma vez que desse documento não resulta que a obrigação nunca tenha existido ou que, tendo existido, tenha entretanto sido extinta pelo pagamento.
I. A segunda parte da declaração de fls. 256 contém, assim, a aceitação pelo trabalhador de uma obrigação negativa ilegal, porque contrária ao disposto nos artigos 36.º da Lei Básica, 1.º, n.º 2 do CPCM, e 9.º, n.º 1, c) do RTM, bem como configura uma renúncia inválida do direito à indemnização por força do disposto no artigo 798.º, n.º 1 do CCM, a qual é inadmissível no domínio das obrigações como forma de extinção dos créditos.
J. Por outro lado, o processo não contém os elementos necessários à substituição do tribunal recorrido pelo tribunal de recurso na apreciação das questões suscitadas pela Autora na petição inicial e na resposta à contestação relativas à invalidade da declaração de fls. 256 por indisponibilidade dos créditos (resultante da relação de domínio, da falta de autonomia funcional da 1.a Ré, da transmissão à 2.a Ré da empresa ou da cessão da posição contratual), por erro-vício, erro sobre a base do negócio ou por usura, cujo conhecimento ficou prejudicado pela decisão proferida no despacho-saneador.
K. Sendo assim, prevenindo-se a hipótese de o recurso proceder, requer-se, ao abrigo do disposto no art.º 630.º, n.º 2 do CPCM, a baixa do processo ao tribunal recorrido para investigação e fixação da matéria de facto necessária à decisão de direito das questões supra referidas.
NESTES TERMOS e com o mais que V.Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, com as legais consequências, ou, se assim não se entender, se determine a baixa do processo ao tribunal “a quo” para investigação e fixação da matéria de facto necessária à decisão de direito das questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada ao litígio no despacho-saneador. Assim, mais uma vez, farão V. Exas. JUSTIÇA!
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Do despacho de indeferimento tomado a fls. 448 dos autos sobre requerimento probatório, veio A recorrer jurisdicionalmente, formulando as seguintes conclusões nas respectivas alegações:

A. A verdade que o processo procura atingir não é apenas a “verdade” da Base Instrutória, mas a verdade da relação material controvertida, a única que consente a justa composição do litígio imposta pelos referidos art.os 6.º, n. º 3 e no 442.º, n.º1 do CPCM.
B. Os poderes cognitivos do juiz não estão limitados pela Base Instrutória, mas apenas pela matéria de facto alegada pelas partes, dentro do funcionamento dos ónus de alegação que sobre cada uma impendem, sem prejuízo do disposto nos n. os 2 e 3 do artigo 5.º do CPCM e n.º 1 do art.º 41.º do CPT.
C. A selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, designadamente o direito à prova dos fundamentos da acção e da defesa.
D. Na apreciação da admissibilidade da informação requerida no ponto 2 do requerimento de 26/04/2010, não deve entrar o juízo sobre a força probatória dessa informação, ou seja, não há que curar, nessa ocasião, de saber se essa informação é suficiente para, “per se”, conduzir à contraprova do factos a que respeita, dado que, para que essa relevância se surpreenda no documento basta que este seja susceptível de contribuir, de concorrer, para a contraprova de tal facto.
E. A diligência probatória requerida no ponto 2 do requerimento probatório de 26/04/2010 destina-se a provar um facto expressamente alegado no artigo 288.º da petição inicial, cuja relevância se afigura indiscutível para a apreciação da validade da declaração a que se refere a alínea G) dos Factos Assentes.
F. O que necessariamente passa por saber se a assinatura pela A. da declaração que lhe foi apresentada correspondeu à manifestação de uma vontade livre e esclarecida.
G. E, a resposta a esta questão pressupõe que se apure, primeiro, se, à data da assinatura da declaração referida na alínea G) dos Factos Assentes se mantinha a dependência económica do trabalhador face à 1.a Ré.
H. Ora, a provar-se que era a 1.a Ré quem continuava a pagar o salário da A. após esta ter continuado a trabalhar para a 2.a Ré, este facto concorre para demonstrar que a vontade manifestada pela A. ao assinar a declaração que lhe foi apresentada se encontrava toldada pelo particular estado de sujeição resultante da sua relação de dependência económica face a quem lhe pagava o salário, pelo que, o facto cuja prova se pretende com a realização da requerida diligência probatória, se afigura relevante para a boa decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
I. Por outro lado, o objecto da prova requerida nos ponto 2 do requerimento probatório da A. consiste em factos nos quais o Tribunal pode fundar a sua decisão nos termos do art.º 5.º do CPCM, pelo que a sua relização se inscreve no direito à prova dos fundamentos da acção que assiste à A.
J. A fundamentação da decisão recorrida tem subjacente uma concepção de “objecto de prova admissível” mais restritiva do que aquela que decorre da lei, dado que, como flui dos artigos 335.º, n.º 1, do Código Civil, 5.º, n.os 1,2 e 3,6.º, n.º 3,434.º,436.º e 562.º, n.º 2, do CPCM, o objecto da prova não se esgota na matéria contida na Base Instrutória.
K. A diligência probatória requerida no ponto 2 do requerimento de 26/04/2010 não é, portanto, nem impertinente (porque respeita ao objecto da causa), nem desnecessária (por respeitar à matéria controvertida), nem dilatórias (porque não retarda a normal marcha do processo a ponto de afectar o direito de obter uma decisão em prazo razoável)1, pelo que nada impunha ou justifica o seu indeferimento.
L. Neste contexto, nada obstava a que fosse deferida a diligência de prova requerida pela A. no ponto 2 do requerimento probatório de 26/04/2010, urna vez que respeita à matéria da causa e visa demonstrar factos de que o Tribunal pode e deve conhecer para fundar a sua decisão (art.º 5.º,6.º, n.º 3 e 562.º, n.º 3, in fine, todos do CPCM), sendo prematuro, nesta fase processual, qualquer juízo antecipado sobre a sua maior ou menor relevância para a justa composição dos interesses em litígio.
M. Assim não entendeu o tribunal a quo, pelo que decisão recorrida, violou o disposto nos art.os 5.º,6.º, n.º 1 e 3 e 442.º, n.º 1 do CPCM e, em consequência “o direito à prova relevante” que assiste à A., ora Recorrente.
  NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se o despacho ora recorrido por outro que ordene a realização das diligências probatórias requeridas, se razão diversa a tal não obstar, anulando-se os termos subsequentes do processo que dele dependam absolutamente, com as legais consequências.
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Prosseguiu o processo a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença, que absolveu a SJM do pedido e condenou a STDM a pagar à autora a quantia de Mop$ 563.654,87 e juros respectivos, como indemnização pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios remunerados.
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Desta sentença recorreu a STDM, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. A Sentença de que ora se recorre é nula por erro na subsunção da matéria de facto dada como provada relativamente ao impedimento, por parte da Ré, do gozo de dias de descanso, por parte da Autora, e bem assim, relativamente ao tipo de salário auferido pela Autora, ao condenar a Ré ao pagamento de uma indemnização pelo não gozo de dia de descanso anual como se a Ré tivesse impedido a Autora de gozar aqueles dias, e com base no regime do salário mensal;
II. Com base nos factos constitutivos do direito alegado pela A., ora Recorrida, relembre-se aqui que estamos em sede de responsabilidade civil, pelo que a esta apenas terá o dever de indemnização caso prove que a Recorrente praticou um acto ilícito.
III. E, de acordo com os arts. 20º, 17º, 4, b) e 24º do RJRT, apenas haverá comportamento ilícito por parte do empregador - e consequentemente direito a indemnização - quando, o trabalhador seja obrigado a trabalhar em dia de descanso semanal, anual e ou em dia de feriado obrigatório e o empregador não o remunere nos termos da lei.
IV. Ora, nada se provou que fosse susceptível de indicar qualquer acção ou omissão (muito menos ilícita) por parte da Recorrente no sentido que haja obstado ao gozo de descansos pela A, não podendo, por isso, reconhecer-se o seu direito à indemnização que peticiona.
V. Porque assim é, - e para além do aspecto da falta de prova referido supra - carece de fundamento legal a condenação da ora Recorrente por falta de prova de um dos elementos essenciais à prova do direito de indemnização da A., ora Recorrida, i.e., a ilicitude do comportamento da R., ora Recorrente.
VI. A A, ora Recorrida, não estava dispensada do ônus da prova quanto ao não gozo de dias de descanso e devia, em audiência, por meio de testemunhas ou por meio de prova documental, ter provado que dias alegadamente não gozou.
VII. Assim, sendo, o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, pelo que o douto Tribunal de Segunda Instância deverá anular a decisão e absolver a Recorrente dos pedidos deduzidos pela A, ora Recorrida.
VIII. Nos termos do nº1 do art. 335º do Código Civil (adiante CC) “Àquele que invoca um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado.”. ,
IX. Por isso, e ainda em conexão com respostas aos quesitos 9º, 10º, 12º e 13º da base instrutória, cabia à A., ora Recorrida, provar que a Recorrente obstou ou negou o gozo de dias de descanso.
X. Ora nada se provou que fosse susceptível de indicar qualquer acção ou omissão (muito menos ilícita) por parte da Recorrente que haja obstado ao gozo de descansos pela A., não podendo, por isso, afirmar-se o seu direito ao pagamento da indemnização que pede, a esse titulo.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo:
XI. O nº 1 do art. 5º do RJRT dispõe que o diploma não será aplicável perante condições de trabalho mais favoráveis que sejam observadas e praticadas entre empregador e trabalhador, esclarecendo o art. 6º deste diploma legal que os regimes convencionais prevalecerão sempre sobre o regime legal, se daqui resultarem condições de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores.
XII. O facto da A. ter beneficiado de um generoso esquema de distribuição de gorjetas que lhe permitiu, ao longo de vários anos, auferir mensalmente rendimentos que numa situação normal nunca auferiria, justifica, de per se, a possibilidade de derrogação do dispositivo que impõe ao empregador o dever de pagar um salário justo, pois caso a Recorrida auferisse apenas um salário justo - da total responsabilidade da Recorrente e pago na íntegra por esta - certamente que esse salário seria inferior ao rendimento total que o Recorrida, a final, auferia durante os vários anos em que foi empregado da Recorrente.
XIII. Não concluindo - e nem sequer se debruçando sobre esta questão - pelo tratamento mais favorável ao trabalhador resultante do acordado entre as partes - consubstanciado, sobretudo, nos altos rendimentos que a A. auferia - incorreu o Tribunal a quo em erro de direito, o que constitui causa de anulabilidade da sentença ora em crise.
Assim não se entendendo e ainda concluindo:
XIV. A aceitação do trabalhador de que aos dias de descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios não corresponde qualquer remuneração teria, forçosamente, de ser considerada como válida.
XV. Os artigos 24º e seguintes da Lei Básica consagram um conjunto de direitos fundamentais, assim como os artigos 67º e seguintes do Código Civil consagram um conjunto de direitos de personalidade e, do seu elenco não constam os alegados direitos violados (dias de descanso anual e feriados obrigatórios).
XVI. Não tendo o legislador consagrado a irrenunciabilidade dos direitos em questão, devem os mesmos ser considerados livremente renunciáveis e, bem assim, considerada eficaz qualquer limitação voluntária dos mesmos, seja essa limitação voluntária efectuada ab initio, superveniente ou ocasionalmente.
XVII. Donde, deveria o Tribunal ter considerado eficaz a renúncia ao gozo efectivo de tais direitos, absolvendo a aqui Recorrente do pedido.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo:
XVIII. Ao trabalhar voluntariamente - e, realce-se, não ficou em nenhuma sede provado que esse trabalho não foi prestado de forma voluntária, muito pelo contrário - em dias de descanso (sejam eles anual, semanal ou resultantes de feriados), a Recorrida optou por ganhar mais, tendo direito à correspondente retribuição em singelo.
XIX. E, não tendo a Recorrida sida impedida de gozar quaisquer dias de descanso anual, de descanso semanal ou quaisquer feriados obrigatórios, é forçoso é concluir pela inexistência do dever de indemnização da STDM à Recorrida.
Ainda sem conceder, e ainda concluindo:
XX. Por outro lado, jamais pode a ora Recorrente concordar com o regime aplicado pela Mma. Juiz a quo aquando do cálculo do quantum indemnizatório, uma vez que, apesar de se preocupar com a aferição do quantum diário do salário da A., ora Recorrida, acaba por aplicar o regime previsto para o salário mensal, sendo que toda a factualidade alegada pela Ré e confirmada pelas suas testemunhas em sede de Julgamento, indica no sentido inverso, ou seja, do salário diário.
XXI. Com efeito, a proposta contratual oferecida pela ora Recorrente aos trabalhadores dos casinos, como a aqui Recorrida, é a mesma há cerca de 40 anos: auferiam um salário diário fixo de HKD10.00/dia, HKD$15.00/dia, ou seja, um salário de acordo com o período de trabalho efectivamente prestado.
XXII. Acresce que o “esquema” do salário diário nunca foi contestado pelos trabalhadores na pendência da relação contratual e, ademais, nunca os trabalhadores impugnaram expressamente a alegação desse facto nas instâncias judiciais nos processos pendentes.
XXIII. Trata-se de uma disposição contratual válida e eficaz de acordo com o RJRT, que prevê, expressamente, a possibilidade das partes acordarem no regime salarial mensal ou diário, no âmbito da liberdade contratual prevista no art. 1º do RJRT.
XXIV. Ora, na ausência de um critério legal ou requisitos definidos para aferir a existência de remuneração em função do trabalho efectivamente prestado, ao estabelecer que a A., ora Recorrida, era remunerado com um salário diário, a sentença Recorrida desconsidera toda a factualidade trazida aos autos e, de igual forma, as condições contratuais acordadas entre as partes. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a Recorrente entende que, nessa parte, a decisão em crise não está devidamente fundamentada e é arbitrária, ao tentar estabelecer como imperativo (i.e., o regime de salário mensal em contratos de trabalho típicos) o que a lei define como dispositivo (i. e., as partes poderem livremente optar pelo regime de salário mensal ou diário em contratos de trabalho típicos).
XXV. O trabalho prestado pelo Recorrida em dias de descanso foi sempre remunerado em singelo.
XXVI. A remuneração já paga pela ora Recorrente ao ora Recorrida por esses dias deve ser subtraída nas compensações devidas pelos dias de descanso a que a A. tinha direito, nos termos do Decreto-Lei n. º 32/90/M.
XXVII. Maxime, o trabalho prestado em dia de descanso semanal, para os trabalhadores que auferem salário diário, deve ser remunerado como um dia normal de trabalho (cfr. al. a) e b) do n.º 6 do art.º 17º do RJRT, tendo o Tribunal a quo descurado em absoluto essa questão.
XXVIII. Ora, nos termos do art. 26º, n.º 4 do RJRT, salário diário inclui a remuneração devida pelo gozo de dias de descanso e, nos termos do art. 17º, n.º 6, al. b), os trabalhadores que auferem salário diário verão o trabalho prestado em dia de descanso semanal remunerado nos termos do que for acordado com o empregador.
XXIX. No presente caso, não havendo acordo expresso, deverá considerar-se que a remuneração acordada é a correspondente a um dia de trabalho.
XXX. A decisão Recorrida enferma assim de ilegalidade, por errada aplicação da al. b) do nº 6 do art. 17º e do artigo 26º do RJRT, o que importa a revogação da parte da sentença que condenou a Recorrente ao pagamento relativo às compensações pelo não gozo dos dias de descanso, o que, expressamente, se requer.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo,
XXXI. Não poderia a Recorrente ter sido condenada ao pagamento do dobro do salário para compensar o alegado não gozo de dias de descanso semanal.
XXXII. Veja-se os recentes Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM de 21 de Setembro de 2007, de 22 de Novembro de 2007 e de 27 de Fevereiro de 2008 proferidos, respectivamente, nos Processos n.º28/2007, n.º29/2007 e n.º 58/2007, nos quais foi consagrado o entendimento de que a compensação pelo não gozo de dias de descanso semanal deve ser paga em singelo, e não em dobro, uma vez que o Autor já foi paga em singelo (...).
XXXIII. Parece claro que, mesmo que a Recorrente tivesse de pagar a compensação do alegado não gozo de dias de descanso semanal, o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser pago x2, e uma parte já foi paga, então a R. apenas está em falta com o salário diário x1.
Ainda concluindo:
XXXIV. As gorjetas dos trabalhadores de casinos não são parte integrante do conceito de salário.
XXXV. N este sentido a corrente Jurisprudencial dominante, onde se destacam os Acórdãos do Tribunal de Última Instância proferidos no âmbito dos Processos n.º28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.
XXXVI. Também neste sentido se tem pronunciado a doutrina de uma forma pacificamente unânime.
XXXVII. O ponto essencial para a qualificação das prestações pecuniárias enquanto prestações retributivas é quem realiza a prestação. A prestação será retribuição quando se trate de uma obrigação a cargo do empregador.
XXXVIII. Nas gratificações há um animus donandi, ao passo que a retribuição consubstancia uma obrigatoriedade.
XXXIX. A propósito da incidência do Imposto Profissional: “O Imposto Profissional incide sobre os rendimentos do trabalho, em dinheiro ou em espécie, de natureza contratual ou não, fixos ou variáveis, seja qual for a sua proveniência ou local, moeda e forma estipulada para o seu cálculo e pagamento”. É a própria norma que distingue, expressamente, gorjetas de salário.
XL. Qualifica Monteiro Fernandes expressamente as gorjetas dos trabalhadores da STDM como “rendimentos do trabalho”, esclarecendo que os mesmos são devidos por causa e por ocasião da prestação de trabalho, mas não em função ou como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho.
XLI. Na verdade, a reunião e contabilização são realizadas nas instalações dos casinos da STDM, mas com a colaboração e intervenção de croupiers, funcionários da tesouraria e de funcionários do governo que são chamados para supervisionar a contabilização das gorjetas.
XLII. Salvo o devido respeito pela Mma. Juiz a quo, a posição de sustentar a integração das gorjetas no conceito jurídico de salário, com base no conceito abstracto e subjectivo de “salário justo”, não tem qualquer fundamento legal, nem pode ter aplicação no caso concreto.
XLIII. Em primeiro lugar, porque o que determina se certo montante integra ou não o conceito de salário, são critérios objectivos, que, analisados detalhadamente, indicam o contrário, se não vejamos: as gorjetas são montantes, (i) entregues por terceiros; (ii) variáveis; (iii) não garantidos pela STDM aquando da contratação; (iv) reunidas e contabilizadas pelos respectivos croupiers, juntamente com funcionários da tesouraria e do governo de Macau.
XLIV. E, fortalece a nossa tese, a posição do governo de Macau que nunca considerou necessário a definição de um montante mínimo salarial que pudesse servir de bitola para a apreciação - menos discricionária - do que é um salário justo.
XLV. Dessa forma, o cálculo da eventual indemnização só poderia levar em linha de conta o salário diário, excluindo-se as gorjetas.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão Recorrida em conformidade, fazendo V. Exas., mais uma vez, JUSTIÇA.
*
Em resposta a este recurso, a autora da acção contra-alegou nos termos que sintetizou da seguinte maneira:
A. Resulta das alíneas C), E) e F) dos Factos Assentes e ficou provado nas respostas aos quesitos 9.º a 15.º da Base Instrutória e na Tabela de fls. 96 anexa ao Oficio 06585/3075/DIT/2003 de 04/07/2003 do Departamento de Inspecção do Trabalho que a A. não gozou de quaisquer dias feriados e de descanso obrigatórios (férias anuais e descansos semanais), sem que por isso tenha sido compensada, pelo que impende sobre a Ré o dever de indemnizar.
B. Com interesse para a caracterização da parte variável da remuneração como salário da A. ficaram provados os factos indicados nas alíneas C), E) e F) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 2.º a 8.º e 20.º da Base Instrutória.
C. A totalidade dos valores especificados na resposta ao quesito 8.º da Base Instrutória foram pagos pela 1.a Ré a A. como contrapartida da actividade laboral prestada, pelo que integram o seu salário.
D. Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o legislador de Macau recortou o conceito técnico jurídico de salário nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 do RJRL.
E. É o salário, tal como se encontra definido nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 do RJRL, que serve de base ao cálculo de inúmeros direitos dos trabalhadores, designadamente do acréscimo salarial devido pelo trabalho prestado nos períodos de descanso obrigatório.
F. A interpretação destas normas não deverá conduzir a um resultado que derrogue, por completo, a sua finalidade, a qual consiste em fixar, de forma imperativa, a base de cálculo dos direitos dos trabalhadores.
G. A doutrina invocada nas alegações da 1.a Ré não serve de referência no caso “sub judice” por ter subjacente diplomas (inexistentes em Macau) que estabelecem o salário mínimo, e definem as regras de distribuição pelos empregados das salas de jogos tradicionais dos casinos das gorjetas recebidas dos clientes.
H. Em Portugal, quem paga as gorjetas aos trabalhadores dos casinos que a elas têm direito não é a própria Concessionária, que nunca tem a disponibilidade do valor percebido a título de gorjetas, mas as Comissões de distribuição das gratificações (CDG), as quais, sendo distintas e autónomas da empresa concessionária são moldadas como entidades equiparáveis a pessoas colectivas, sujeitas a registo, com sede em cada um dos casinos.2
I. Ao contrário, em Macau, quem paga aos trabalhadores a quota-parte a que eles têm direito sobre o valor das gorjetas é a própria concessionária que o faz seu, e não a comissão responsável pela sua recolha e contabilização.
J. O primitivo carácter de liberalidade das gorjetas diluiu-se no momento e na medida em que as gorjetas dadas pelos clientes não revertiam directamente para os trabalhadores mas, ao invés, eram reunidas, contabilizadas e distribuídas pela 1.a Ré, segundo um critério por ela fixado (distribuição essa, sublinhe-se, que, como ficou provado, era feita por todos os trabalhadores da 1.a Ré e não apenas por aqueles que contactavam com os clientes - cfr alínea C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 3.º a 7.º da Base Instrutória.
K. No caso dos autos, as gorjetas que se discutem não pertencem aos trabalhadores a quem são entregues pelos clientes dos casinos cfr alínea C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 3.º a 7.º da Base Instrutória.).
L. Estas gorjetas pertencem à 1.a Ré que com elas faz o que entende, nomeadamente o especificado na alínea C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 2.º a 8.º e 20.º da Base Instrutória.
M. A 1.a Ré tinha o dever jurídico de pagar à A. quer a parte fixa, quer a parte variável da remuneração do trabalho - cfr. respostas aos quesitos 2.º 3.º, 7.º e 8.º da Base Instrutória e art.º 148.º da Contestação de fls. 219 e ss.
N. O pagamento da parte variável da retribuição da A. - que corresponde à quase totalidade da contrapartida do seu trabalho, conforme resulta do confronto da alínea B) dos Factos Assentes com o quesito 8.º da Base Instrutória - traduziu-se numa prestação regular, periódica, não arbitrária e que sempre concorreu durante todo o período da relação laboral para o orçamento pessoal e familiar do trabalhador.
O. Tais gratificações sendo de montante superior à remuneração-base são tidas como parte integrante da retribuição, dada a sua regularidade e o seu carácter de permanência, independentemente de quem as atribua.3
P. Assim, nos termos do disposto nos artigos 5.º; 7.º, n. º 1, al. b); 25.º, n.os 1 e 2; 26.º e n.º 2 do art. 27.º, todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, a parte variável da retribuição da A. deverá considerar-se como salário para efeitos do cômputo da indemnização pelo trabalho prestado nos períodos de dispensa e descanso obrigatório.
Q. As gorjetas dos trabalhadores dos Casinos e, em especial as auferidas pela A. durante todo o período da sua relação laboral com a 1.a Ré, em ultima ratio devem ser vistas como «rendimentos do trabalho», porquanto devidos em função, por causa e como correspectivo da prestação de trabalho.
R. Acaso se entenda que as quantias especificadas resposta ao quesito 8.º da Base Instrutória não consistem no salário da A., então o mesmo não preencheria os condicionalismos mínimos fixados no Regime Jurídico das Relações Laborais da RAEM, designadamente nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 desse diploma.
S. Por outro lado, os trabalhadores dos casinos não são remunerados em função do volume de apostas realizadas na mesa de jogo, nem são eles que fixam o seu período e horário de trabalho, sendo-lhes vedado trabalhar quando e quanto lhes convém, conforme resulta também das alíneas E) e F) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 9.º a 13.º, 15.º e 21.º da Base Instrutória.
T. O entendimento de que a remuneração da A. consiste num salário diário, não ficou provado por se tratar de matéria de direito, nem se coaduna com as funções de croupier desempenhadas no casino, nem com as condições de trabalho, nem com estatuto de trabalhador permanente definido no artigo 2.º, f) do RJRL), o qual pressupõe o exercício de uma determinada função dentro da empresa, de forma continuada e duradoura no tempo.
U. De tudo quanto se expôs resulta que, a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, na parte em que acha que as gorjetas recebidas pelos trabalhadores dos casinos integram o salário, e que o salário da A. é mensal, fez uma interpretação correcta do disposto nos artigos 5.º; 7.º, n.” 1, al. b); 25.º; 26.º e n.º do art. 27.º todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
V. Por outro lado, não houve qualquer renúncia ao direito ao gozo remunerado dos períodos de suspensão legal da prestação, desde logo, porque tal renúncia não se mostra provada no caso “sub judice”.
W. Mesmo que o Autor tivesse trabalhado voluntariamente em dias destinados a descansos semanal e/ou anual e/ou até em feriados obrigatórios, sempre o trabalho assim prestado teria de ser compensado nos termos legalmente devidos, ou seja, de acordo com o disposto nos art.os 17.º, n.º 4, 18.º e 21.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 101/84/M, de 25 de Agosto, e, posteriormente, os art.os 17.º, n.os 4 e 6,18.º,20.º e 24.º, do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
X. O que se justifica pela necessidade de proteger o trabalhador contra a sua compreensível inibição psicológica em discutir frontalmente com o seu empregador aquando da plena vigência da relação contratual de trabalho, sobre o exercício desses seus direitos laborais, caso este não seja cumpridor voluntário nem rigoroso da lei laboral em prol dos interesses daquele. (sic)
Y. No caso “sub judice” o impedimento por parte da entidade patronal do gozo de tais dias de descanso resulta provado nas respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 10.º 14.º e 15.º da Base Instrutória, conjugadas com disposto nos artigos 21.º, n.º 1,22.º, n.º 2, e 24.º do RJRL.
Z. Acresce que ao nunca fixar o período de descanso anual à ora Recorrida, com a devida antecedência e de acordo com as exigências de funcionamento da empresa, como lhe impunha o art.º 22.º, n.º 1 do RJRL, a 1.a Ré inviabilizou ou impediu, na prática, que este os gozasse.
AA. É também o que defende Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 12.a edição, Almedina, 2004, pág. 413, segundo o qual: “a violação pode, aliás, não consistir em recusa ou obstrução directa do empregador, mas, simplesmente, na omissão de diligências (como a marcação das férias) que lhe cabem e que condicionam a efectivação do direito”.
BB. Neste quadro, não tendo a 1.a Ré feito a prova que lhe competia de que marcou os períodos de descanso anual da Autora, conforme lhe impunha o disposto no artigo 22.º, n.º 1 do RJRL, ou de que já compensou a Autora pelo trabalho que ela prestou nesses períodos, afigura-se provado a violação do direito ao descanso anual prevista no artigo 24.º do RJRL, por força do disposto no art.º 788.º, n.º 2 e 335.º, n.º 2 e 3, ambos do CCM.
CC. Nesta medida, sempre as fórmulas de compensação dos montantes devidos pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão remunerada da prestação do trabalho se deve manter como ficou decidido na sentença recorrida.
DD. O valor global da indemnização de MOP$563,654.87 fixado no segmento decisório da sentença recorrida deverá, portanto, manter-se inalterado.
  NESTES TERMOS e com o mais que V.Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a sentença recorrida, com as legais consequências,
Assim, mais uma vez, farão V. Exas. JUSTIÇA!
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Desde 21 de Janeiro de 1991 a A. manteve uma relação laboral com a 1a R.
O rendimento fixo que era, no início, de HKD$ 10,00 por dia em, depois, de HKD$ 15,00 por dia.
A distribuição das gorjetas dadas pelos clientes dos casinos era feita a todos os trabalhadores da 1a R. de acordo com a categoria profissional a que pertenciam, de dez em dez dias.
Ao gozo de dias de descanso pelos trabalhadores da 1a R. não correspondia qualquer remuneração.
Até 1998, a A. trabalhava em ciclos contínuos de três dias:
- no primeiro dia, das 14h00 até às 18h00 e das 22h00 até às 02h00 do dia seguinte;
- no segundo dia, das 10h00 até às 14h00 e das 18h00 até às 22h00; e
- no terceiro dia, das 06h00 até às 10h00 e das 02h00 até 06h00.
A partir de 1998, a A. passou a trabalhar em ciclos contínuos de nove dias:
- nos primeiro a terceiro dias, das 07h00 até às 15h00;
- nos quarto a sexto dias, das 23h00 até às 07h00; e
- nos sétimo a novo dias, das 15h00 até às 23h00.
Em 19 de Julho de 2003, a A. assinou o documento junto a fls. 256 declarando ter recebido a quantia de MOP$ 26.029,90 referente à compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.
Mais declarou que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pela A.. na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
Em 23 de Julho de 2003, a A. foi informada pelo Departamento da Inspecção do Trabalho de que a indemnização se cifrava em MOP$ 13.014,95.
Por força do presente litígio, a A. recebeu da 1a R. as quantias de MOP$ 26.029,90 e de MOP$ 13.014,95.
No início da vigência da Lei n.º 6/82/M, de 29 de Maio, a 1a R. era titular concessionária, em regime exclusivo, para a exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de turismo de Macau, criada pela Portaria n.º 18267, de 13 de Fevereiro de 1961.
A 1a R. foi concessionária, em regime de exclusividade, até 31 de Dezembro de 1991, tendo o prazo sido prorrogado, sucessivamente, por aditamento lavrado em escritura, em 24 de Agosto de 1990 e 23 de Julho de 1997, fixando-se em 31 de Dezembro de 2001, o termo do contrato de concessão, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar em casino.
Por Despacho do Chefe do Executivo n.º 259/2001, de 18 de Dezembro de 2001, a concessão veio, nos termos do artigo 51º da Lei n.º 16/2001, a ser prorrogada para 31 de Março de 2002.
Nos termos dos contratos de concessão de 1982 e de 1986, na data do termo final da concessão, salvo quando se extinga antes dessa data, os casinos, assim como os equipamentos e utensilagem afectos aos jogos, ainda que se encontrem fora daqueles, revertem gratuita e automaticamente para o Governo de Macau.
Por Despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002, de 27 de Março de 2002, foi adjudicada uma concessão de exploração deste sector de actividade à 2a R. a qual se encontra titulada pelo “Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino na RAEM”.
Nos termos deste Contrato de Concessão supra referido ficou estipulado que, no exercício da sua actividade, a 2a R. só pode explorar jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino nos casinos e demais zonas de jogos previamente autorizadas e classificadas pelo Governo da RAEM.
Nos termos do mesmo Contrato de Concessão, os casinos, assim como os equipamentos e utensilagem afectos ao jogo, devem obrigatoriamente localizar-se em imóveis da propriedade da 2a R..
Nos termos do mesmo Contrato de Concessão, a 2a R. ficou autorizada a utilizar as fichas emitidas ou colocadas em circulação pela 1a R..
Nos termos do mesmo Contrato de Concessão, a 2a R. garante o reembolso, em numerário ou através de cheque ou título de crédito equivalente, das fichas que hajam sido emitidas ou colocadas em circulação pela 1a R..
Nos termos do mesmo Contrato de Concessão, a 2a R. obriga-se a responder solidariamente pela obrigação da 1a R. de realizar dragagens e demais trabalhos de natureza marítima necessários na RAEM.
A relação referida em A) dos factos assentes cessou em 25 de Junho de 2002.
Dessa relação a A. recebia um rendimento fixo e um rendimento variável.
O rendimento variável era constituído pelas gorjetas dadas pelos clientes da 1a R.
Por ordens da 1a R., as gorjetas eram obrigatoriamente colocadas numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito.
A A. não podia ficar com quaisquer gorjetas que lhe fossem entregues pelos clientes.
A distribuição das gorjetas era feita consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela 1a R.
A 1a R. sempre incluiu o rendimento variável nos montantes que participou à Direcção de Serviços de Finanças para efeitos de liquidação e cobrança do imposto profissional dos seus trabalhadores.
O rendimento fixo somado do rendimento variável era anualmente de:
- MOP$ 59.000,50 em 1991;
- MOP$ 72.878,00 em 1992;
- MOP$ 122.019,00 em 1993;
- MOP$ 144.002,00 em 1994;
- MOP$ 160.614,00em 1995;
- MOP$ 122.305,00 em 1996;
- MOP$ 180.938,00 em 1997;
- MOP$ 181.586,00 em 1998;
- MOP$ 161.117,00 em 1999;
- MOP$ 169.422,00 em 2000;
- MOP$ 177.273,00 em 2001;
- MOP$ 92.980,00 em 2002?
Desde o início da relação, nunca a A. descansou um período consecutivo de 24 horas em cada período de 7 dias sem perda do respectivo rendimento.
Nunca a A. descansou 6 dias por ano sem perda do respectivo rendimento.
De 21 de Janeiro de 1991 até 4 de Maio de 2000, nunca a A. descansou nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo Chinês, no dia 10 de Junho, e nos dias de Chong Chao, Chong Yeong e Cheng Meng tendo a A. trabalhado nesses dias.
Desde 4 de Maio de 2000, nunca a A. descansou nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo Chinês, no dia 20 de Dezembro, no dia seguinte ao dia Chong Chao, nos dias Chong Yeong e Cheng Meng tendo a A. trabalhado nesses dias.
Sem que a 1a R. tivesse proporcionado qualquer acréscimo no rendimento da A.
Nem compensado a A. com outro dia de descanso.
Em 20 de Junho de 1996, a A. deu à luz a seu filho, B.
Por força desse parto, a A. foi dispensada do trabalho mas com perda do respectivo rendimento.
As gorjetas dadas pelos clientes eram diariamente reunidas, contabilizadas e depois distribuídas, de dez em dez dias, pela 1a R.
A exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana e 365 dias por ano.
A 2a R. comprometeu-se a manter que os trabalhadores ao serviço da 1 a R. continuassem a desempenhar as suas respectivas funções na 2a R.
A 2a R. comprometeu-se que a situação dos trabalhadores ao serviço da 1a R. em nada seria prejudicada mantendo todos os direitos e regalias que fossem titulares na 1a R., e, em especial, o direito à contagem dos anos de serviço.
A partir de Julho de 2002, a 2a R. propôs a contratação de trabalhadores anteriormente ao serviço da 1a R.
Em 20 de Julho de 2002, a A. assinou um contrato de trabalho com a 2a R.4
***
III- O Direito
1- Recurso do despacho saneador
Tinha a contestante STDM, aqui recorrente, arguido na sua contestação a excepção do pagamento da dívida e remissão/quitação, com base na declaração assinada pela autora da acção inserta nos autos a fls. 256, segundo a qual disse ter recebido a quantia de Mop$ 26.029,90 a título de compensação por eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, licença de maternidade e rescisão por acordo com a entidade patronal, acrescentando nada mais ter a receber da sua entidade patronal.
O despacho saneador considerou que tal documento não era mais do que uma declaração transaccional conducente ao termo de um litígio e não uma remissão. E porque tal transacção não foi celebrada pela forma legal, declarou-a nula, nos termos dos arts. 212º e 279º do Código Civil.
É contra tal posição jurisdicional que a STDM se manifesta neste seu primeiro recurso jurisdicional.
Vejamos.
O que estava em causa era, como se disse, a declaração de fls. 256. Segundo esta, a então autora afirmava ter recebido a quantia de MOP$ 26.029,90 referente à compensação extraordinária por eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.
Nessa declaração era ainda dito que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pela A. na medida em que nenhuma das partes devia à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
Importa, então, apurar se tal declaração tinha a capacidade para surtir efeitos remissivos ou quitativos, tal como foi intenção da STDM ao invocá-la na sua contestação.
Para tanto, sirvamo-nos, com a devida vénia, do texto de um acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição, que aqui sufragamos com a devida vénia, se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a composição do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011; nº 317/2010, de 6/10/2011, nº 794/2010, de 24/11/2011 e nº 1014/2010, de 1/12/2011.
Por outras palavras, deveria ter o tribunal “a quo” ter retirado as consequências próprias de tal declaração e, em coerência, absolvido a ré STDM do pedido com todas as legais consequências, não sendo a forma solene, ao contrário do que o afirmou o despacho em crise, necessária à sua produção de efeitos.
Na verdade, não existe a nulidade que o despacho em crise descobriu ao abrigo dos arts. 212º e 279º do Código Civil, ao partir da base conceptual de que a referida declaração traduz uma transacção extrajudicial sujeita a escritura pública. Com efeito, nem ela representa uma verdadeira transacção, nem o efeito que com ela se pretendia obter só seria possível através de escritura pública.
Tal-qualmente, não se sufraga o ponto de vista da autora segundo a qual a declaração em apreço padece de vício que a torna anulável, na medida em que se não demonstra a existência de qualquer “erro sobre a base do negócio” (art. 245º do CC), nem qualquer situação de “usura” (art. 275º do CC).
Quer isto dizer, portanto, que o despacho saneador merece censura nesta parte.
*
2- Recurso interposto pela então autora A sobre o despacho de fls. 448.
Pretendia a recorrente que o tribunal “a quo” oficiasse à sucursal do Banco da China no sentido de apurar até que data os valores creditados na conta que identifica continuaram a provir da 1ª ré (STDM). A sua intenção era a de, alegadamente, provar que era a STDM quem continuou a pagar-lhe o salário, não obstante a transferência do negócio que a STDM explorava para a 2ª ré, SJM, com quem a autora estabelecera uma relação contratual a partir de certa altura. E, dessa maneira, visava demonstrar que a autora só aceitou assinar a tal declaração por continuar na dependência económica da 1ª ré, isto é, que o seu conteúdo não traduzia uma manifestação de vontade livre e esclarecida por banda da autora. Estaria em causa, pois, a matéria dos arts. 87º e 288º da petição.
Ora, a verdade é que em Julho de 2003 a aqui recorrente assinou a referida declaração, mas o contrato com a 2ª ré havia sido celebrado em Julho de 2002, isto é, um ano antes. E assim, pensamos que o decurso de tão largo período de tempo será bastante para esvair qualquer tentativa de provar que a declarante continuava receosa de perder o emprego caso não assinasse o documento.
Aliás, mesmo que fosse revelado que era a 1ª ré quem continuava a pagar o “salário” à trabalhadora, isso apenas decorreria das relações internas ocorridas entre STDM e SJM, circunstância que nunca poderia alterar a natureza do vínculo gerado entre a autora da acção e a sua nova empregadora, a SJM. Este facto, portanto, não significaria mais do que isso: que o salário estava a ser pago por terceiro! Ora, daí nunca poderia extrair-se qualquer nexo insofismável de que a trabalhadora, ao assinar o documento, não sabia o que fazia, que não tinha a noção do perigo que isso representava ou, pior ainda, que o fazia por continuar dependente economicamente da STDM. Ou seja, não seria possível a partir desse facto isolado - se fosse satisfeita a pretensão da autora – concluir que a autora, aqui recorrente, estava dominada por um estado de sujeição tal que lhe não permitia agir de outro modo ou que a sua vontade, ao fazê-lo, não foi livre e esclarecida. Para tanto se concluir, seriam precisos mais factos (circunstanciais pelo menos) de importância primordial. Seria necessário, por exemplo, acrescentar que quando a declaração foi assinada, já a declarante sabia que o salário era pago pela STDM, que noutros casos a recusa de assinatura de declaração semelhante por colegas seus havia levado à perda do emprego por cessação unilateral da relação laboral por parte da SJM, que isso mesmo lhe fora dito directamente a si ou a outrem que o pudesse vir testemunhar, etc, etc. Mas, isoladamente, nenhuma fonte de certeza esse facto iria trazer ao julgador no sentido adiantado pela autora.
Neste sentido, a diligência probatória requerida no ponto 2 do seu requerimento (fls. 439 e sgs.) nada acudiria ao almejado propósito, porque a sua circunstancialidade é francamente despicienda e muito remota, uma vez que os factos que poderiam resultar da diligência (287º e 288º da p.i.) são insuficientes para a revelação da dependência do autor em relação à STDM e para a demonstração do vício da vontade declarada no referido documento.
Em suma, não encontramos no despacho em apreço, na parte agora em crise, razão para qualquer censura, pelo que o haveremos de manter.
*
3- Recurso da sentença interposto pela STDM (fls. 547 e sgs)
Com este recurso, almejava a recorrente demonstrar o erro em que sentença incorrera ao condená-la. Mas, face ao êxito do recurso por si mesmo interposto do despacho saneador, o conhecimento deste recurso está agora completamente prejudicado.
*
4- Em conclusão, a STDM terá que ser absolvida do pedido, face à procedência da excepção peremptória por si deduzida, nos termos do art. 412º, nº3, do CPC, mantendo-se ainda a absolvição do pedido quanto à ré SJM, por tal decisão não constituir objecto do presente recurso jurisdicional.

***

IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1- Conceder provimento ao recurso do despacho saneador interposto pela STDM e, em consequência:
1.1- Revogá-lo na parte correspondente; e
1.2- Julgar procedente a excepção deduzida e, por tal motivo, absolver a STDM do pedido contra si formulado.
2- Negar provimento ao recurso interposto pela autora do despacho de fls. 448 na parte por si aqui sindicada;
3- Não conhecer do recurso interposto pela STDM da sentença recorrida, por prejudicado face à decisão tomada em IV-1.

Custas apenas pela recorrente A em ambas as instâncias.

TSI, 19 / 04 / 2012



_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(Vencido nos termos de declaração de voto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
















Processo nº 143/2011
Declaração de voto de vencido

Vencido pois não vejo razão para alterar a minha posição já assumida na declaração de voto que juntei aos vários Acórdão do TSI, nomeadamente os Acórdãos tirados nos processos nºs 210/2010, 216/2011, 223/2010 e 252/2008, isto é, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

RAEM, 19ABR2012









1 Art.º1.º, nº1 do CPCM.
2 Despacho Normativo n.º24/89 que revogou o Despacho Normativo n.º 82/85, de 28 de Agosto junto à Contestação.
3 Vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa supra citado.

4 A selecção dos factos foi lavrada em português, mantendo aplicar português nesta parte.
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