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Processo nº 192/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Abril de 2012
Descritores:
-Declaração de remissão/quitação


SUMÁRIO:
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.

II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.

III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.

IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.

V- A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais.






Proc. nº 192/2011
(Recurso civil e Laboral)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu acção comum de trabalho contra a STDM e SJM, pedindo a condenação destas no pagamento de Mop$1.010.710,31, como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início até ao fim da relação laboral, bem assim como a título de danos morais, acrescida dos juros legais.
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No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção do pagamento e remissão dos créditos reclamados suscitada pela STDM na sua contestação e declarada nula a declaração de fls. 357 feita pela autora.
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Desse despacho recorreu, então, a STDM (fls. 553 e sgs.), em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
A. O douto Despacho Saneador proferido pelo Tribunal Judicial de Base em 13 de Novembro de 2009, cujo teor de fls. 513v a 515v é posto em crise pelo presente Recurso Interlocutório, deverá ser revisto e reformulado, absolvendo-se a ora Recorrente e considerando as presentes alegações de recurso procedentes por provadas.
B. O presente recurso respeita à qualificação jurídica da Declaração contida no Documento n.º 1 junto com a Contestação da Recorrente, a fls. 357 dos autos.
C. Bem como aos efeitos extintivos do negócio obrigacional celebrado nos Documento n.os 1, 2 e 3 com a Contestação.
D. Que a Recorrente denominou, “Da Remissão de créditos”.
E. E que o Mmo Tribunal recorrido entende tratar-se de uma transacção preventiva ou extrajudicial, que não teria cumprido o formalismo legal, daí a sanção decidida por aquela Instância Judicial, nos termos do artigo 212º do CC actual.
F. Qualquer que seja o douto entendimento jurídico da referida Declaração,
G. Como Remissão de créditos ou de dívidas como entende a Recorrente, nos termos e para os efeitos dos artigos 854º e seguintes do CC actual e dos artigos 863º e seguintes do CC anteriormente em vigor no Território,
H. Como uma excepção (inominada) denominada “Da Remissão de créditos”, como consta da Contestação,
I. Como Quitação com Reconhecimento Negativo de Dívida como entende o Ilustre Tribunal de Última Instância,
J. Ou, então tratando-se de uma transacção extrajudicial ou preventiva (artigos 1172º a 1174º do CC) como doutamente entende o Tribunal a quo,
K. Não existe nulidade por falta de formalismo negocial ou de formalidade do contrato em causa, porque o mesmo não tinha de ser celebrado sob a forma de escritura pública,
L. Não sendo, por isso, nulo nos termos da norma dos artigos 212º e 279º, ambos do CC, preceitos invocados pelo douto Tribunal, no teor do Despacho recorrido, de fls. 513 e seguintes.
M. A parte final do artigo 1174º e a alínea n) do número 2 do artigo 94º do Código do Notariado prevêem, ambas, que:
N. “A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida (...) ”.
O. E, nada na Declaração de fls. 357 dos autos, na modesta opinião da Recorrente, justifica ou implica a celebração através de escritura pública, para salvaguardar algum efeito para o qual a escritura seja exigida.
P. A parte final do mesmo artigo 1174º do CC e da alínea n) do número 2 do artigo 94º do CN preceituam que a transacção preventiva ou extrajudicial “ (...) deve constar de documento escrito nos casos restantes.”.
Q. A declaração de fls. 357, contida no Documento n.º1 da Contestação e confirmada ou, reiterada ou, sublinhada, ainda, pelo Documento n.º2 e n.º3 com a mesma, provam que o A. e ora Recorrido foi compensado pelos descansos semanais, anuais e pelos feriados obrigatórios e que,
R. Por outro lado, que recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Recorrente subsistia e que, portanto, em consequência nenhuma outra quantia era por ela exigível à Recorrente na medida em que nenhuma das partes devia mais qualquer outra compensação relativa ao vínculo laboral.
S. Como consta do mesmo douto Despacho recorrido, “Da confissão e dos documentos juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
O A. recebeu da 1a R. duas quantias respectivamente no valor de MOP$28.665,38 e MOP$ 14.332,69;
Em 18 de Julho de 2003, o A. assinou o documento junto a fls. 357 declarando ter recebido a quantia de MOP$28.665,38 referente à compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.;
Mais declarou que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrido da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pelo A., na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral;”
T. Está, pois, confessado o recebimento da quantia e o negócio obrigacional extintivo entre os ora litigantes, após o termo da relação contratual e laboral, que impedia e proíbe o A. de demandar a 1a R./Recorrente, produzindo os seus efeitos e devendo, em sua consequência, absolver integralmente a segunda, de todos os pedidos e da lide aqui em discussão, pela procedência do Documento n.º1 com a Contestação.
U. Com esse acordo obrigacional extintivo e excepção material ou peremptória, nenhum montante ou nenhum pedido extra ou superveniente podia ser solicitado ou exigido de qualquer das partes, após a conclusão e perfeição da declaração negocial contida a fls. 357 destes autos.
V. Como, e muito bem, refira-se, também consta do douto Despacho Saneador ora posto em crise com o presente recurso, conclui-se que houve mesmo um acordo entre as partes, Recorrida e Recorrente, no sentido de, mediante o pagamento da referida quantia, as partes porem termo ao litígio.
W. Como se transcreve da douta Decisão recorrida: “Ora, dos termos dessa declaração, vê-se que a vontade do A. era no sentido de pôr termo ao litígio que o separava da 1a R., pois tinha declarado que nenhuma pretensão subsistia relativamente aos direitos em questão. Além disso, há que ter em conta que a causa dessa vontade é o recebimento de uma certa quantia pecuniária entregue pela 1a R.. Daí se conclui sem dificuldade que houve um acordo, eventualmente tácito, estabelecido entre as partes, directamente ou em virtude da intervenção da então Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego, no sentido de, mediante o pagamento da referida quantia, as partes porem termo ao litígio.”.
X. Pelo que, tal acordo ou negócio jurídico extintivo é válido, eficaz, e apto a produzir os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes, então um ex-colaborador e uma ex-entidade empregadora, deste modo extinguindo-se todo e qualquer quantia, litígio ou pedido, a bem da certeza e da segurança jurídicas, valores essenciais do Direito e da Ordem Jurídica, como pretenderam os aqui litigantes, nesse momento temporal.
Y. O aqui Recorrido, ainda, recebeu outra quantia, também pela compensação e ressarcimento e indemnização dos descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, desta Recorrente, em outro momento do ano de 2003, por mor do processo de contravenção laboral n.º 1476/2002 que fora patrocinado pela então Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego, agora denominada legalmente de Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Z. No entanto, há que sublinhar, também, o seguinte: não existe sequer, o alegado acordo tácito ou expresso do recebimento das quantias aludidas, como se a Declaração de Remissão ínsita a fls. 357 dos autos tivesse a ver com o litígio de contravenção laboral n.º 1476/2002 e com o recebimento da outra quantia paga pela Recorrente ao Recorrido, de MOP 14.332,69, pois este último montante foi pago num litígio judicial e decorrente desse litígio.
AA. Assim, a Declaração junta na Contestação como Documento n.º 1 não é, de todo, uma transacção extrajudicial, nem existe uma necessária articulação entre as duas quantias,
BB. A não ser que ambas pagaram, ressarciram e compensaram o A./Recorrido pelos créditos e motivos e pretensões que, novamente, veio a Juízo reclamar da ora Recorrente, o que não poderia, atenta a segunda parte da Declaração de fls. 357 dos autos.
CC. Tendo recebido duas quantias pelos mesmos motivos da Recorrente, é evidente o aqui Recorrido não podia instaurar a presente acção judicial laboral,
DD. Nem podia, igualmente, demandar, reclamar, exigir, peticionar, pedir, qualquer outra quantia monetária por conta dos termos do acordo contido a fls. 357 dos autos.
EE. Deste modo, pela procedência da excepção peremptória ou material ou substantiva de remissão ou de transacção preventiva ou extrajudicial ou quitação ou quitação com reconhecimento negativo de dívida ou pagamento ou, “Da Remissão de créditos” como foi deduzida a excepção material na Contestação,
FF. A declaração de fls. 357 é válida, eficaz, produtora de efeitos, e deverá absolver a Recorrente do pedido, sem prejuízo do prosseguimento destes autos a final,
GG. Improcedendo, assim, ao que parece, as razões enunciadas de fls. 513v a 515v dos autos, quando o douto Tribunal recorrido decidiu na fase do Saneamento, que a mesma Declaração não fora celebrada segundo a forma legalmente exigida e como tal nula,
HH. Quando o certo - salvo melhor juízo, entendimento e opinião - é que tal declaração não precisava de todo de ser celebrada através da forma solene da escritura pública.
II. Pelo que, quando aos demais pontos do Douto Despacho Saneador ora posto aqui em crise pelo recurso interlocutório, reenvia-se o exposto para a Contestação e,
JJ. Caso a declaração de fls. 357 dos autos seja considerada formalmente válida, produzirá os seus efeitos e absolverá a Recorrente do pedido,
KK. Pela procedência do alegado nos artigos 16º a 34º e 332º a 553º da Contestação de 15 de Novembro de 2009, destes autos,
LL. Revogando-se, assim, o Despacho Saneador recorrido, e seguindo-se os demais termos subsequentes do processo,
MM. No mais, fazendo, V. Exas, a sempre devida e costumada Justiça.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis que Vossas Excelências melhor suprirão, deve o presente Recurso ser julgado integralmente procedente, revogando-se a decisão interlocutória contida no despacho saneador recorrido em conformidade, só desta forma se fazendo a sempre devida e costumada JUSTIÇA!

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Em resposta a este recurso, a autora da acção apresentou as suas alegações, que concluiu da seguinte forma:
A. O que existiu foi uma transacção quanto à remuneração devida pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória da prestação do trabalho, a qual levou à emissão da declaração de fls. 357, sendo esta declaração mero acto posterior àquela.
B. Assim, a declaração de fls. 357 consiste apenas num acto posterior à transacção celebrada entre as partes quanto à remuneração do trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória da prestação de trabalho, não se podendo confundir com ela.
C. E como essa transacção que precedeu e ao abrigo da qual foi produzida a declaração de fls. 357 pelo Autor, não consta de documento escrito como impõe o 1174.º do CCM, é necessariamente nula por força do disposto no art.º 212.º do CCM.
D. Por outro lado, uma vez que a transacção acima referida também não foi precedida de autorização do Gabinete para os Assuntos de Trabalho, conforme impunha o n.º 1 da alínea d) do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, a mesma é nula e, como tal, insusceptível de produzir qualquer efeito.
E. Acresce que a segunda parte da “declaração”(聲明書) relativa ao “prémio de serviço” (服務賞金) a que se refere o documento 1 da Contestação (fls. 357) consubstancia um acto ou negócio nulo, nos termos do disposto no art.º 287.º do Código Civil ex vi dos artigos 6.º e 33.º do Decreto-Lei 24/89/M, independentemente de a relação jurídica iniciada com a 1a Ré se ter ou não extinto com a transferência do A. para a SJM.
F. A declaração a que se refere o documento de fls. 357 não configura um contrato de remissão de créditos nem um reconhecimento negativo de dívida, porque para que exista um contrato de remissão de créditos ou uma declaração de reconhecimento negativo de dívida é necessário que o credor queira renunciar a esse crédito ou que a dívida objecto do reconhecimento exista ou que, tendo existido, se tenha entretanto extinguido.
G. Por outras palavras, na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 3.a Edição, 1986, II volume, pág. 156, nota 4, o credor só pode reconhecer a inexistência de uma obrigação que nunca tenha existido ou que, a ter existido, foi entretanto extinta, sendo-lhe impossível reconhecer a inexistência de eventuais obrigações.
H. Assim, o entendimento defendido pela Recorrente de que a segunda parte do documento de fls. 357 configura ou pode configurar um reconhecimento negativo de dívida mostra-se contrário ao disposto no art.º 391.º do CCM, uma vez que desse documento não resulta que a obrigação nunca tenha existido ou que, tendo existido, tenha entretanto sido extinta pelo pagamento.
I. A segunda parte da declaração de fls. 357 contém, assim, a aceitação pelo trabalhador de uma obrigação negativa ilegal, porque contrária ao disposto nos artigos 36.º da Lei Básica, 1.º, n.º 2 do CPCM, e 9.º, n.º 1, c) do RTM, bem como configura uma renúncia inválida do direito à indemnização por força do disposto no artigo 798.º, n.º1 do CCM, a qual é inadmissível no domínio das 1 obrigações como forma de extinção dos créditos.
  NESTES TERMOS e com o mais que V.Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, com as legais consequências, ou, se assim não se entender, se determine a baixa do processo ao tribunal “a quo” para investigação e fixação da matéria de facto necessária à decisão de direito das questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada ao litígio no despacho-saneador. Assim, mais uma vez, farão V. Exas. JUSTIÇA!
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Do despacho de indeferimento tomado a fls. 643 dos autos sobre requerimento probatório, veio A recorrer, formulando as seguintes conclusões nas respectivas alegações:
A. A verdade que o processo procura atingir não é apenas a “verdade” da Base Instrutória, mas a verdade da relação material controvertida, a única que consente a justa composição do litígio ímposta pelos referidos art.os 6.º, n.º3 e nº 442.º, n.º1 do CPCM.
B. Os poderes cognitivos do juiz não estão limitados pela Base Instrutória, mas apenas pela matéria de facto alegada pelas partes, dentro do funcionamento dos ónus de alegação que sobre cada uma impendem, sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 5.º do CPCM e n.º 1 do art.º 41.º do CPT.
C. A selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, designadamente o direito à prova dos fundamentos da acção e da defesa.
D. Se, segundo o art.º 6.º, n.º 3 do CPCM, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo dos outros de que também deva conhecer não faz sentido que indefira uma diligência probatória destinada à prova de um facto alegado pela parte, com o fundamento de que tal facto não consta da Base Instrutória.
E. O requerido no ponto 1 do requerimento probatório do A. destina-se à prova do alegado nos artigos 159.º e 163.º da petição inicial (e impugnado no artigos 396.º, 397.º, e 456.º da Contestação da 1.a Ré) e, por conseguinte, releva para a apreciação da questão da invalidade do acto ou negócio a que se refere a alínea G) dos Factos Assentes por demonstrar que a sociedade que a SIDM constituiu para se candidatar à concessão da licença de jogo não dispunha de autonomia funcional em relação à STDM, sendo instrumental à prossecução da sua estratégia para o negócio do jogo.
F. A diligência probatória requerida no ponto 4 do requerimento probatório de 16/04/2010 destina-se a provar um facto expressamente alegado no artigo 276.º da petição inicial e impugnado no artigo 347.º da Contestação, e, por conseguinte, releva para a apreciação da questão da invalidade do acto ou negócio a que se refere a alínea G) dos Factos Assentes por demonstrar que a vontade manifestada pelo A. ao assinar a declaração que lhe foi apresentada se encontrava toldada pelo particular estado de sujeição resultante da sua relação de dependência económica face a quem lhe pagava o salários.
G. O que necessariamente passa por saber se a assinatura pelo A. da declaração que lhe foi apresentada correspondeu à manifestação de uma vontade livre e esclarecida.
H. E, a resposta a esta questão pressupõe que se apure, primeiro, se, à data da assinatura da declaração referida na alínea G) dos Factos Assentes se mantinha a dependência económica do trabalhador face à 1.a Ré.
I. Ora, a provar-se que era a 1.a Ré quem continuava a pagar o salário do A. após esta ter continuado a trabalhar para a 2.a Ré, este facto concorre para demonstrar que a vontade manifestada pelo A. ao assinar a declaração que lhe foi apresentada se encontrava toldada pelo particular estado de sujeição resultante da sua relação de dependência económica face a quem lhe pagava o salário, pelo que, o facto cuja prova se pretende com a realização da requerida diligência probatória, se afigura relevante para a boa decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
J. Na apreciação da admissibilidade da informação requerida no ponto 4 do requerimento de 16/04/2010, não deve entrar o juízo sobre a força probatória dessa informação, ou seja, não há que curar, nessa ocasião, de saber se essa informação é suficiente para, “per se”, conduzir à contraprova do factos a que respeita, dado que, para que essa relevância se surpreenda no documento basta que este seja susceptível de contribuir, de concorrer, para a contraprova de tal facto.
K. Por outro lado, o objecto da prova requerida nos ponto 4 do requerimento probatório do A. consiste em factos nos quais o Tribunal pode fundar a sua decisão nos termos do art.º 5.º do CPCM, pelo que a sua relização se inscreve no direito à prova dos fundamentos da acção que assiste ao A.
L. A fundamentação da decisão recorrida tem subjacente uma concepção de “objecto de prova admissível” mais restritiva do que aquela que decorre da lei, dado que, como flui dos artigos 335.º, n.º 1, do Código Civil, 5.º, n.os 1,2 e 3, 6. n.º 3, 434.º, 436.º e 562.º, n.º 2, do CPCM, o objecto da prova não se esgota na matéria contida na Base Instrutória.
M. A diligência probatória requerida no ponto 4 do requerimento de 16/04/2010 não é, portanto, nem impertinente (porque respeita ao objecto da causa), nem desnecessária (por respeitar à matéria controvertida), nem dilatória (porque não retarda a normal marcha do processo a ponto de afectar o direito de obter uma decisão em prazo razoável)1, pelo que nada impunha ou justifica o seu indeferimento.
N. Neste contexto, nada obstava a que fosse deferida a diligência de prova requerida pelo A. no ponto 4 do requerimento probatório de 16/04/2010, uma vez que respeita à matéria da causa e visa demonstrar factos de que o Tribunal pode e deve conhecer para fundar a sua decisão (art.º 5.º,6.º, n.º 3 e 562.º, n.º 3, in fine, todos do CPCM), sendo prematuro, nesta fase processual, qualquer juízo antecipado sobre a sua maior ou menor relevância para a justa composição dos interesses em litígio.
O. Assim não entendeu o tribunal a quo, pelo que decisão recorrida, violou o disposto nos art.os 5.º, 6.º, n.º 1 e 3 e 442.º, n.º 1 do CPCM e, em consequência “o direito à prova relevante” que assiste ao A., ora Recorrente.
NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se o despacho ora recorrido por outro que ordene a realização das diligências probatórias requeridas, se razão diversa a tal não obstar, anulando-se os termos subsequentes do processo que dele dependam absolutamente, com as legais consequências.
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Prosseguiu o processo a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença, que absolveu a SJM do pedido e condenou a STDM a pagar à autora a quantia de Mop$ 595.519,96 e juros respectivos, como indemnização pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios remunerados.
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Dessa sentença recorreu a STDM (fls. 744 e sgs.), cujas alegações concluiu do seguinte modo:
I. A Sentença de que ora se recorre é nula por erro na subsunção da matéria de facto dada como provada relativamente ao impedimento, por parte da Ré, do gozo de dias de descanso, por parte do Autor, e bem assim, relativamente ao tipo de salário auferido pelo Autor, ao condenar a Ré ao pagamento de uma indemnização pelo não gozo de dia de descanso anual como se a Ré tivesse impedido o Autor de gozar aqueles dias, e com base no regime do salário mensal;
II. Com base nos factos constitutivos do direito alegado pelo A., ora Recorrido, relembre-se aqui que estamos em sede de responsabilidade civil, pelo que a esta apenas terá o dever de indemnização caso prove que a Recorrente praticou um acto ilícito.
III. E, de acordo com os arts. 20º, 17º, 4, b) e 24º do RJRT, apenas haverá comportamento ilícito por parte do empregador - e consequentemente direito a indemnização - quando, o trabalhador seja obrigado a trabalhar em dia de descanso semanal, anual e ou em dia de feriado obrigatório e o empregador não o remunere nos termos da lei.
IV. Ora, nada se provou que fosse susceptível de indicar qualquer acção ou omissão (muito menos ilícita) por parte da Recorrente no sentido que haja obstado ao gozo de descansos pelo A., não podendo, por isso, reconhecer-se o seu direito à indemnização que peticiona.,
V. Porque assim é, - e para além do aspecto da falta de prova referido supra - carece de fundamento legal a condenação da ora Recorrente por falta de' prova de um dos elementos essenciais à prova do direito de indemnização do A, ora Recorrido, i.e., a ilicitude do comportamento da R., ora Recorrente.
VI. O A, ora Recorrido, não estava dispensada do ônus da prova quanto ao não gozo de dias de descanso e devia, em audiência, por meio de testemunhas ou por meio de prova documental, ter provado que dias alegadamente não gozou.
VII. Assim, sendo, o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, pelo que o douto Tribunal de Segunda Instância deverá anular a decisão e absolver a Recorrente dos pedidos deduzidos pelo A., ora Recorrido.
VIII. Nos termos do nº1 do art. 335º do Código Civil (adiante CC) “Àquele que invoca um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado.”.
IX. Por isso, e ainda em conexão com os quesitos 9º a 12º da base instrutória, cabia ao A., ora Recorrido, provar que a Recorrente obstou ou negou o gozo de dias de descanso.
X. Ora nada se provou que fosse susceptível de indicar qualquer acção ou omissão (muito menos ilícita) por parte da Recorrente que haja obstado ao gozo de descansos pelo A, não podendo, por isso, afirmar-se o seu direito ao pagamento da indemnização que pede, a esse titulo.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo:
XI. O nº 1 do art. 5º do RJRT dispõe que o diploma não será aplicável perante condições de trabalho mais favoráveis que sejam observadas e praticadas entre empregador e trabalhador, esclarecendo o art. 6º deste diploma legal que os regimes convencionais prevalecerão sempre sobre o regime legal, se daqui resultarem condições de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores.
XII. O facto do A. ter beneficiado de um generoso esquema de distribuição de gorjetas que lhe permitiu, ao longo de vários anos, auferir mensalmente rendimentos que numa situação normal nunca auferiria, justifica, de per se, a possibilidade de derrogação do dispositivo que impõe ao empregador o dever de pagar um salário justo, pois caso o Recorrido auferisse apenas um salário justo - da total responsabilidade da Recorrente e pago na íntegra por esta - certamente que esse salário seria inferior ao rendimento total que o Recorrido, a final, auferia durante os vários anos em que foi empregado da Recorrente.
XIII. Não concluindo - e nem sequer se debruçando sobre esta questão - pelo tratamento mais favorável ao trabalhador resultante do acordado entre as partes - consubstanciado, sobretudo, nos altos rendimentos que o A. auferia - incorreu o Tribunal a quo em erro de direito, o que constitui causa de anulabilidade da sentença ora em crise.
Assim não se entendendo e ainda concluindo:
XIV. A aceitação do trabalhador de que aos dias de descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios não corresponde qualquer remuneração teria, forçosamente, de ser considerada como válida.
XV. Os artigos 24º e seguintes da Lei Básica consagram um conjunto de direitos fundamentais, assim como os artigos 67º e seguintes do Código Civil consagram um conjunto de direitos de personalidade e, do seu elenco não constam os alegados direitos violados (dias de descanso anual e feriados obrigatórios).
XVI. Não tendo o legislador consagrado a irrenunciabilidade dos direitos em questão, devem os mesmos ser considerados livremente renunciáveis e, bem assim, considerada eficaz qualquer limitação voluntária dos mesmos, seja essa limitação voluntária efectuada ab initio, superveniente ou ocasionalmente.
XVII. Donde, deveria o Tribunal ter considerado eficaz a renúncia ao gozo efectivo de tais direitos, absolvendo a aqui Recorrente do pedido.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo:
XVIII. Ao trabalhar voluntariamente - e, realce-se, não ficou em nenhuma sede provado que esse trabalho não foi prestado de forma voluntária, muito pelo contrário - em dias de descanso (sejam eles anual, semanal ou resultantes de feriados), o Recorrido optou por ganhar mais, tendo direito à correspondente retribuição em singelo.
XIX. E, não tendo o Recorrido sida impedida de gozar quaisquer dias de descanso anual, de descanso semanal ou quaisquer feriados obrigatórios, é forçoso é concluir pela inexistência do dever de indemnização da STDM ao Recorrido.
Ainda sem conceder, e ainda concluindo:
XX. Por outro lado, jamais pode a ora Recorrente concordar com o regime aplicado pela Mma. Juiz a quo aquando do cálculo do quantum indemnizatório, uma vez que, apesar de se preocupar com a aferição do quantum diário do salário do A., ora Recorrido, acaba por aplicar o regime previsto para o salário mensal, sendo que toda a factualidade alegada pela Ré e confirmada pelas suas testemunhas em sede de Julgamento, indica no sentido inverso, ou seja, do salário diário.
XXI. Com efeito, a proposta contratual oferecida pela ora Recorrente aos trabalhadores dos casinos, como o aqui Recorrido, é a mesma há cerca de 40 anos: auferiam um salário diário fixo de HKD$10.00/dia, HKD$15.00/dia, ou seja, um salário de acordo com o período de trabalho efectivamente prestado.
XXII. Acresce que o “esquema” do salário diário nunca foi contestado pelos trabalhadores na pendência da relação contratual e, ademais, nunca os trabalhadores impugnaram expressamente a alegação desse facto nas instâncias judiciais nos processos pendentes.
XXIII. Trata-se de uma disposição contratual válida e eficaz de acordo com o RJRT, que prevê, expressamente, a possibilidade das partes acordarem no regime salarial mensal ou diário, no âmbito da liberdade contratual prevista no art. 1º do RJRT.
XXIV. Ora, na ausência de um critério legal ou requisitos definidos para aferir a existência de remuneração em função do trabalho efectivamente prestado, ao estabelecer que o A., ora Recorrido, era remunerado com um salário diário, a sentença recorrida desconsidera toda a factualidade trazida aos autos e, de igual forma, as condições contratuais acordadas entre as partes. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a Recorrente entende que, nessa parte, a decisão em crise não está devidamente fundamentada e é arbitrária, ao tentar estabelecer como imperativo (i.e., o regime de salário mensal em contratos de trabalho típicos) o que a lei define como dispositivo (i.e., as partes poderem livremente optar pelo regime de salário mensal ou diário em contratos de trabalho típicos).
XXV. O trabalho prestado pelo Recorrido em dias de descanso foi sempre remunerado em singelo.
XXVI. A remuneração já paga pela ora Recorrente ao ora Recorrido por esses dias deve ser subtraída nas compensações devidas pelos dias de descanso a que o A. tinha direito, nos termos do Decreto-Lei n.º 24/89/M e depois nos termos do DL n.º 32/90/M.
XXVII. Maxime, o trabalho prestado em dia de descanso semanal, para os trabalhadores que auferem salário diário, deve ser remunerado como um dia normal de trabalho (cfr. al. a) e b) do n.º 6 do art.º 17º do RJRT, tendo o Tribunal a quo descurado em absoluto essa questão.
XXVIII. Ora, nos termos do art. 26º, n.º 4 do RJRT, salário diário inclui a remuneração devida pelo gozo de dias de descanso e, nos termos do art. 17º, n. º 6, al. b), os trabalhadores que auferem salário diário verão o trabalho prestado em dia de descanso semanal remunerado nos termos do que for acordado com o empregador.
XXIX. No presente caso, não havendo acordo expresso, deverá considerar-se que a remuneração acordada é a correspondente a um dia de trabalho.
XXX. A decisão recorrida enferma assim de ilegalidade, por errada aplicação da al. b) do nº 6 do art. 17º e do artigo 26º do RJRT, o que importa a revogação da parte da sentença que condenou a Recorrente ao pagamento relativo às compensações pelo não gozo dos dias de descanso, o que, expressamente, se requer.
Assim não se entendendo, e ainda concluindo,
XXXI. Não poderia a Recorrente ter sido condenada ao pagamento do dobro do salário para compensar o alegado não gozo de dias de descanso semanal.
XXXII. Veja-se os recentes Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM de 21 de Setembro de 2007, de 22 de Novembro de 2007 e de 27 de Fevereiro de 2008 proferidos, respectivamente, nos Processos n.º 28/2007, n.º 29/2007 e n.º 58/2007, nos quais foi consagrado o entendimento de que a compensação pelo não gozo de dias de descanso semanal deve ser paga em singelo, e não em dobro, uma vez que o Autor já foi pago em singelo (...).
XXXIII. Parece claro que, mesmo que a Recorrente tivesse de pagar a compensação do alegado não gozo de dias de descanso semanal, o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser pago x2, e uma parte já foi paga, então a R. apenas está em falta com o salário diário x1.
Ainda concluindo:
XXXIV. As gorjetas dos trabalhadores de casinos não são parte integrante do conceito de salário.
XXXV. Neste sentido a corrente Jurisprudencial dominante, onde se destacam os Acórdãos do Tribunal de Última Instância proferidos no âmbito dos Processos n.º 28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.
XXXVI. Também neste sentido se tem pronunciado a doutrina de uma forma pacificamente unânime.
XXXVII. O ponto essencial para a qualificação das prestações pecuniárias enquanto prestações retributivas é quem realiza a prestação. A prestação será retribuição quando se trate de uma obrigação a cargo do empregador.
XXXVIII. Nas gratificações há um animus donandi, ao passo que a retribuição consubstancia uma obrigatoriedade.
XXXIX. A propósito da incidência do Imposto Profissional: “O Imposto Profissional incide sobre os rendimentos do trabalho, em dinheiro ou em espécie, de natureza contratual ou não, fixos ou variáveis, seja qual for a sua proveniência ou local, moeda e forma estipulada para o seu cálculo e pagamento”. É a própria norma que distingue, expressamente, gorjetas de salário.
XL. Qualifica Monteiro Fernandes expressamente as gorjetas dos trabalhadores da STDM como “rendimentos do trabalho”, esclarecendo que os mesmos são devidos por causa e por ocasião da prestação de trabalho, mas não em função ou como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho.
XLI. Na verdade, a reunião e contabilização são realizadas nas instalações dos casinos da STDM, mas com a colaboração e intervenção de croupiers, funcionários da tesouraria e de funcionários do governo que são chamados para supervisionar a contabilização das gorjetas.
XLII. Salvo o devido respeito pela Mma. Juiz a quo, a posição de sustentar a integração das gorjetas no conceito jurídico de salário, com base no conceito abstracto e subjectivo de “salário justo”, não tem qualquer fundamento legal, nem pode ter aplicação no caso concreto.
XLIII. Em primeiro lugar, porque o que determina se certo montante integra ou não o conceito de salário, são critérios objectivos, que, analisados detalhadamente, indicam o contrário, se não vejamos: as gorjetas são montantes, (i) entregues por terceiros; (ii) variáveis; (iii) não garantidos pela STDM aquando da contratação; (iv) reunidas e contabilizadas pelos respectivos croupiers, juntamente com funcionários da tesouraria e do governo de Macau.
XLIV. E, fortalece a nossa tese, a posição do governo de Macau que nunca considerou necessário a definição de um montante mínimo salarial que pudesse servir de bitola para a apreciação - menos discricionária - do que é um salário justo.
XLV. Dessa forma, o cálculo da eventual indemnização só poderia levar em linha de conta o salário diário, excluindo-se as gorjetas.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão Recorrida em conformidade, fazendo V. Exas., mais uma vez, JUSTIÇA.
*
A autora contra-alegou, tendo nas respectivas alegações apresentado as seguintes conclusões:
A. Com interesse para a caracterização da parte variável da remuneração como salário do A. ficaram provados os factos indicados nas alíneas C) e D) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 2.º 3.º, 5.º a 8.º e 17.º da Base Instrutória.
B. A totalidade dos valores especificados na resposta ao quesito 8.º da Base Instrutória foram pagos pela Ré o A. como contrapartida da actividade laboral prestada, pelo que integram o seu salário.
C. Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o legislador de Macau recortou o conceito técnico jurídico de salário nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2do RJRL.
D. É o salário, tal como se encontra definido nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 do RJRL, que serve de base ao cálculo de inúmeros direitos dos trabalhadores, designadamente do acréscimo salarial devido pelo trabalho prestado nos períodos de descanso obrigatório.
E. A interpretação destas normas não deverá conduzir a um resultado que derrogue, por completo, a sua finalidade, a qual consiste em fixar, de forma imperativa, a base de cálculo dos direitos dos trabalhadores.
F. A doutrina invocada nas alegações da Ré não serve de referência no caso “sub judice” por ter subjacente diplomas (inexistentes em Macau) que estabelecem o salário mínimo, e definem as regras de distribuição pelos empregados das salas de jogos tradicionais dos casinos das gorjetas recebidas dos clientes.
G. Em Portugal, quem paga as gorjetas aos trabalhadores dos casinos que a elas têm direito não é a própria Concessionária, que nunca tem a disponibilidade do valor percebido a título de gorjetas, mas as Comissões de distribuição das gratificações (CDG), as quais, sendo distintas e autónomas da empresa concessionária são moldadas como entidades equiparáveis a pessoas colectivas, sujeitas a registo, com sede em cada um dos casinos.2
H. Ao contrário, em Macau, quem paga aos trabalhadores a quota-parte a que eles têm direito sobre o valor das gorjetas é a própria concessionária que o faz seu, e não a comissão responsável pela sua recolha e contabilização.
I. O primitivo carácter de liberalidade das gorjetas diluiu-se no momento e na medida em que as gorjetas dadas pelos clientes não revertiam directamente para os trabalhadores mas, ao invés, eram reunidas, contabilizadas e distribuídas pela Ré, segundo um critério por ela fixado (distribuição essa, sublinhe-se, que, como ficou provado, era feita por todos os trabalhadores da Ré e não apenas por aqueles que contactavam com os clientes - alínea C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 5.º a 7.º da Base Instrutória.
J. No caso dos autos, as gorjetas que se discutem não pertencem aos trabalhadores a quem são entregues pelos clientes dós casinos (alínea C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 5.º a 7.º da Base Instrutória.).
K. Estas gorjetas pertencem à Ré que com elas faz o que entende, nomeadamente o especificado alíneas C) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 2.º, 3.º, 5.º a 8.º e 17.º da Base Instrutória.
L. A Ré tinha o dever jurídico de pagar ao A. quer a parte fixa, quer a parte variável da remuneração do trabalho (respostas aos quesitos 2.º, 3.º, 7.º e 8.º da Base Instrutória).
M. O pagamento da parte variável da retribuição do A. - que corresponde à quase totalidade da contrapartida do seu trabalho, conforme resulta do confronto da alínea B) dos Factos Assentes com o 8.º da Base Instrutória traduziu-se numa prestação regular, periódica, não arbitrária e que sempre concorreu durante todo o período da relação laboral para o orçamento pessoal e familiar do trabalhador.
N. Tais gratificações sendo de montante superior à remuneração-base são tidas como parte integrante da retribuição, dada a sua regularidade e o seu carácter de permanência, independentemente de quem as atribua.3
O. Assim, nos termos do disposto nos artigos 5.º; 7.º, n.º 1, al. b); 25.º, n.os 1 e 2; 26.º e n.º 2 do art. 27.º, todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, a parte variável da retribuição do A. deverá considerar-se como salário para efeitos do cômputo da indemnização pelo trabalho prestado nos períodos de dispensa e descanso obrigatório.
P. As gorjetas dos trabalhadores dos Casinos e, em especial as auferidas pelo A. durante todo o período da sua relação laboral com a Ré, em ultima ratio devem ser vistas como «rendimentos do trabalho», porquanto devidos em função, por causa e como correspectivo da prestação de trabalho.
Q. Acaso se entenda que as quantias especificadas resposta ao quesito 8.º da Base Instrutória não consistem no salário do A., então o mesmo não preencheria os condicionalismos mínimos fixados no Regime Jurídico das Relações Laborais da RAEM, designadamente nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 desse diploma.
R. Por outro lado, os trabalhadores dos casinos não são remunerados em função do volume de apostas realizadas na mesa de jogo, nem são eles que fixam o seu período e horário de trabalho, sendo-lhes vedado trabalhar quando e quanto lhes convém, conforme resulta também das alíneas E) e F) dos Factos Assentes e na resposta ao quesito 18.º da Base Instrutória.
S. O entendimento de que a remuneração do A. consiste num salário diário, não ficou provado por se tratar de matéria de direito, nem se coaduna com as funções de croupier desempenhadas no casino, nem com as condições de trabalho, nem com estatuto de trabalhador permanente definido no artigo 2.º, f) do RJRL), o qual pressupõe o exercício de uma determinada função dentro da empresa, de forma continuada e duradoura no tempo.
T. De tudo quanto se expôs resulta que, a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, na parte em que acha que as gorjetas recebidas pelos trabalhadores dos casinos integram o salário, e que o salário do A. é mensal, fez uma interpretação correcta do disposto nos artigos 5.º; 7.º, n.º 1, al. b); 25.º; 26.º e n.º do art. 27.º todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
U. Por outro lado, não houve qualquer renúncia ao direito ao gozo remunerado dos períodos de suspensão legal da prestação, desde logo, porque tal renúncia não se mostra provada no caso “sub judice”.
V. Mesmo que o Autor tivesse trabalhado voluntariamente em dias destinados a descansos semanal e/ou anual e/ou até em feriados obrigatórios, sempre o trabalho assim prestado teria de ser compensado nos termos legalmente devidos, ou seja, de acordo com o disposto nos art.os 17.º, n.º 4,18.º e 21.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 101/84/M, de 25 de Agosto, e, posteriormente, os art. os 17.º, n.ºs 4 e 6, 18.º,20.º e 24.º, do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
W. O que se justifica pela necessidade de proteger o trabalhador contra a sua compreensível inibição psicológica em discutir frontalmente com o seu empregador aquando da plena vigência da relação contratual de trabalho, sobre o exercício desses seus direitos laborais, caso este não seja cumpridor voluntário nem rigoroso da lei laboral em prol dos interesses daquele. (sic)
X. No caso “sub judice” o impedimento por parte da entidade patronal do gozo. de tais dias de descanso resulta provado nas respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 10.º, 13.º e 14.º da Base Instrutória, conjugadas com disposto nos artigos 21.º, n.º 1,22.º, n.º 2, e 24.odo RJRL.
Y. Acresce que ao nunca fixar o período de descanso anual ao ora Recorrido, com a devida antecedência e de acordo com as exigências de funcionamento da empresa, como lhe impunha o art.º 22.º, n.º 1 do RJRL, a Ré inviabilizou ou impediu, na prática, que este os gozasse.
Z. É também o que defende Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 12.a edição, Almedina, 2004, pág. 413, segundo o qual: “a violação pode, aliás, não consistir em recusa ou obstrução directa do empregador, mas, simplesmente, na omissão de diligências (como a marcação das férias) que lhe cabem e que condicionam a efectivação do direito”.
AA. Neste quadro, não tendo a Ré feito aprova que lhe competia de que marcou os períodos de descanso anual do Autor, conforme lhe impunha o disposto no artigo 22.º, n.º 1 do RJRL, ou de que já compensou o Autor pelo trabalho que de prestou nesses períodos, afigura-se provado a violação do direito ao descanso anual prevista no artigo 24.º do RJRL, por força do disposto no art.º 788.º, n.º 2 e 335.º, n.º 2 e 3, ambos do CCM.
BB. Nesta medida, sempre as fórmulas de compensação dos montantes devidos pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão remunerada da prestação do trabalho se deve manter como ficou decidido na sentença recorrida.
CC. O valor global da indemnização de MOP$595,519.96 fixado no segmento decisório da sentença recorrida deverá, portanto, manter-se inalterado.
NESTES TERMOS e com o mais que V.Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a sentença recorrida, com as legais consequências, Assim, mais uma vez, farão V.Exas. JUSTIÇA!
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
***
III- O Direito
1- Recurso do despacho saneador
Tinha a contestante STDM, aqui recorrente, arguido na sua contestação a excepção do pagamento da dívida e remissão, com base na declaração assinada pela autora da acção inserta nos autos a fls. 357, segundo a qual disse ter recebido a quantia de Mop$ 28.665,38, a título de compensação por eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, licença de maternidade e rescisão por acordo com a entidade patronal, acrescentando nada mais ter a receber da sua entidade patronal.
O despacho saneador considerou que tal documento não era mais do que uma declaração transaccional conducente ao termo de um litígio e não uma remissão. E porque tal transacção não foi celebrada pela forma legal, declarou-a nula, nos termos dos arts. 212º e 279º do Código Civil.
É contra tal posição jurisdicional que a STDM se manifesta neste seu primeiro recurso jurisdicional.
Vejamos.
O que estava em causa era, como se disse, a declaração de fls. 84. Segundo esta, a então autora afirmava ter recebido a quantia de MOP$ 28.665,38 referente à compensação extraordinária por eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.
Nessa declaração era ainda dito que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pela A. na medida em que nenhuma das partes devia à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
Importa, então, apurar se tal declaração tinha a capacidade para surtir efeitos remissivos ou quitativos, tal como foi intenção da STDM ao invocá-la na sua contestação.
Para tanto, sirvamo-nos, com a devida vénia, do texto de um acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a composição do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011; nº 317/2010, de 6/10/2011, nº 794/2010, de 24/11/2011 e nº 1014/2010, de 1/12/2011.
Por outras palavras, deveria ter o tribunal “a quo” ter retirado as consequências próprias de tal declaração e, em coerência, absolvido a ré STDM do pedido com todas as legais consequências, não sendo a forma solene, ao contrário do que o afirmou o despacho em crise, necessária à sua produção de efeitos.
Na verdade, não existe a nulidade que o despacho em crise descobriu ao abrigo dos arts. 212º e 279º do Código Civil, ao partir da base conceptual de que a referida declaração traduz uma transacção extrajudicial sujeita a escritura pública. Com efeito, nem ela representa transacção, nem o efeito que com ela se pretendia obter só seria possível através de escritura pública.
Tal-qualmente, não se sufraga o ponto de vista da autora segundo a qual a declaração em apreço padece de vício que a torna anulável, na medida em que se não demonstra a existência de qualquer “erro sobre a base do negócio” (art. 245º do CC), nem qualquer situação de “usura” (art. 275º do CC).
Quer isto dizer, portanto, que o despacho saneador merece censura nesta parte.
*
2- Recurso do autor do despacho de fls.643 e verso
Pretendia a recorrente que o tribunal “a quo” fizesse duas coisas:
- Que oficiasse à 1ª ré para facultar a acta da assembleia geral de 5/11/2001 (que deliberou constituir uma nova sociedade, a SJM) e a acta nº 12/2001 do seu Conselho de Administração de 6/12/2001 (que deliberou assegurar à SJM todo o apoio financeiro, de “know How” e de equipamentos instalados nos seus diversos casinos, isto com vista a provar a matéria dos artigos. 159º e 163º da petição inicial;
- Que oficiasse à sucursal do Banco da China no sentido de apurar até que data os valores creditados na conta que identifica continuaram a provir da 1ª ré (STDM). A sua intenção era a de, alegadamente, provar que era a STDM quem continuou a pagar-lhe o salário, não obstante a transferência do negócio que a STDM explorava para a 2ª ré, SJM, com quem a autora estabelecera uma relação contratual a partir de certa altura. E, dessa maneira, visava demonstrar que a autora só aceitou assinar a tal declaração por continuar na dependência económica da 1ª ré, isto é, que o seu conteúdo não traduzia uma manifestação de vontade livre e esclarecida por banda da autora. Estaria em causa, pois, a matéria dos arts. 276º e 277º da petição.
O referido despacho indeferiu o respectivo requerimento e é desse despacho que agora vem interposto o recurso nos termos das conclusões acima transcritas.
Em nossa opinião, porém, a recorrente não tem razão, embora não desconsideremos o seu propósito, nem a sua iniciativa probatória.
A intenção era demonstrar, por um lado, que STDM e SJM, sendo formalmente entidades distintas, na prática a segunda era indissociável da primeira, a ponto de esta dominar aquela no momento em que o autor com ela assinou o seu contrato de trabalho.
Por outro lado, ao pretender a recorrente que o tribunal “a quo” oficiasse à sucursal do Banco da China no sentido de apurar até que data os valores creditados na conta que identifica continuaram a provir da 1ª ré (STDM), a sua intenção era a de, alegadamente, provar que era a STDM quem continuou a pagar-lhe o salário, não obstante a transferência do negócio que a STDM explorava para a 2ª ré, SJM, com quem a autora estabelecera uma relação contratual a partir de certa altura. E, dessa maneira, visava demonstrar que a autora só aceitou assinar a tal declaração por continuar na dependência económica da 1ª ré, isto é, que o seu conteúdo não traduzia uma manifestação de vontade livre e esclarecida por banda da autora. Estaria em causa, pois, a matéria dos arts. 276º e 277º da petição.
Ora, estes factos juntos, mesmo que satisfeita a pretensão manifestada pelo autor, não teriam a virtualidade probatória desejada.
Com efeito, foi em Julho de 2003 que o aqui recorrente assinou a referida declaração, mas o contrato com a 2ª ré havia sido celebrado em Julho de 2002, isto é, um ano antes. E assim, pensamos que o decurso de tão largo período de tempo será bastante para esvair qualquer tentativa de provar que o declarante continuava receoso de perder o emprego caso não assinasse o documento.
Aliás, mesmo que fosse revelado que era a 1ª ré quem continuava a pagar o “salário” ao trabalhador, isso apenas poderia decorrer das relações internas acordadas entre STDM e SJM, circunstância que nunca poderia alterar a natureza do vínculo gerado entre o autor da acção e a sua nova empregadora, a SJM. Este facto, portanto, não significaria mais do que isso: que o salário estava a ser pago por terceiro! Ora, daí nunca poderia extrair-se qualquer nexo insofismável de que o trabalhador, ao assinar o documento, não sabia o que fazia, que não tinha a noção do perigo que isso representava ou, pior ainda, que o fazia por continuar dependente economicamente da STDM. Ou seja, não seria possível a partir desse facto isolado - se fosse satisfeita a pretensão do autor – concluir que o autor, aqui recorrente, estava dominado por um estado de sujeição tal que lhe não permitia agir de outro modo ou que a sua vontade, ao fazê-lo, não foi livre e esclarecida. Para tanto se concluir, seriam precisos mais factos (circunstanciais, pelo menos) de importância primordial. Seria necessário, por exemplo, acrescentar que quando a declaração foi assinada, já a declarante sabia que o salário era pago pela STDM, que noutros casos a recusa de assinatura de declaração semelhante por colegas seus havia levado à perda do emprego por cessação unilateral da relação laboral por parte da SJM, que isso mesmo lhe fora dito directamente a si ou a outrem que o pudesse vir testemunhar, etc, etc. Mas, isoladamente, nenhuma fonte de certeza material iria trazer ao julgador no sentido adiantado pela autora.
Neste sentido, a diligência probatória requerida no ponto 1 do seu requerimento (fls. 585 e sgs.) também nada acudiria ao almejado propósito, porque a sua circunstancialidade é francamente despicienda e muito remota, uma vez que os factos que poderiam resultar da diligência (159º e 163º da p.i.) são insuficientes para a revelação da dependência do autor em relação à STDM e para a demonstração do vício da vontade declarada no referido documento.
Em suma, não encontramos no despacho em apreço, na parte agora em crise, razão para qualquer censura, pelo que o haveremos de manter.
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3- Recurso da STDM da sentença
Com este recurso, almejava a recorrente demonstrar o erro em que sentença incorrera ao condená-la. Mas, face ao êxito do recurso por si mesmo interposto do despacho saneador, o conhecimento deste recurso está agora completamente prejudicado.
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4- Concluindo
Face ao que vem de ser dito, a STDM terá que ser absolvida do pedido, face à procedência da excepção peremptória por si deduzida, nos termos do art. 412º, nº3, do CPC, mantendo-se ainda a absolvição do pedido quanto à ré SJM, por tal decisão não constituir objecto do presente recurso jurisdicional.
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IV- Decidindo

Nos termos expostos, acordam em:
1- Conceder provimento ao recurso do despacho saneador interposto pela STDM e, em consequência:
1.1- Revogá-lo na parte correspondente; e
1.2- Julgar procedente a excepção deduzida e, por tal motivo, absolver a STDM do pedido.
2- Negar provimento ao recurso interposto pelo autor do despacho de fls. 643;
3- Não conhecer do recurso interposto pela STDM da sentença recorrida, por prejudicado face à decisão tomada em IV-1.

Custas pelo recorrente Chao Sio Pang em ambas as instâncias.

TSI, 19 / 04 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong (vencido nos termos de declaração de voto)
Choi Mou Pan








Processo nº 192/2011
Declaração de voto de vencido

Vencido pois não vejo razão para alterar a minha posição já assumida na declaração de voto que juntei aos vários Acórdão do TSI, nomeadamente os Acórdãos tirados nos processos nºs 210/2010, 216/2011, 223/2010 e 252/2008, isto é, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

RAEM, 19ABR2012
Lai Kin Hong





1 Art.º1.º, nº1 do CPCM.
2 Despacho Normativo n.º 24/89 que revogou o Despacho Normativo n.º 82/85, de 28 de Agosto junto à Contestação.
3 Vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa supra citado.
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