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Processo n.º 763/2011
(Recurso jurisdicional administrativo)

Data : 26/Abril/2012

ASSUNTOS:
    - Ineptidão da petição inicial
    - Inteligibilidade do pedido

SUMÁRIO:

    Se num dado recurso contencioso interposto sobre um acto que liquidou e ordenou o pagamento da demolição de uma construção alegadamente ilegal se identificam os vícios assacados ao acto, nomeadamente a violação do direito de audiência e o erro nos pressupostos de facto, se se põe em causa os fundamentos da demolição que esteve na base do acto impugnado, se alega prejudicialidade do direito do particular a ser discutido noutro tribunal e se alega ainda exorbitância da despesas feitas, a petição não dever ser indeferida liminarmente.
                
                Relator,

(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 763/2011
(Recurso jurisdicional administrativo)

Data : 26 de Abril de 2012

Recorrente: A

Objecto do Recurso: Despacho que rejeitou o recurso
             por ineptidão da petição inicial
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, vem interpor recurso da decisão da Mma Juíza do Tribunal Administrativo que rejeitou o recurso contencioso por si interposto, contra acto relativo a liquidação de despesas de demolição e remoção de materiais de determinado prédio, com notificação da recorrente para o respectivo pagamento, alegando fundamentalmente e em síntese:
    a) Deveria o Tribunal "a quo" ter-se pronunciado sobre a preterição de uma formalidade essencial - a audição prévia à decisão da recorrente - o que conduziria à anulação do acto; e
    b) Consequentemente, à desnecessidade de apreciar o mérito da questão fulcral do recurso.
    Mostram-se, neste aspecto, violadas as normas do art. 93° e segs. do C.P.A ..
    Quando assim se não entenda, o que se admite sem conceder,
    c) A petição de recurso não sofre de ineptidão, já que - obviamente repetindo factos "já expostos no âmbito de uma acção ordinária que corre os seus termos no T.JB." - refere com clareza os factos e as razões de direito que fundamentam o recurso.
    Na verdade,
    d) A apreciação dos pedidos - principal e subsidiário - formulados naquela acção ordinária levam à conclusão de que o despacho recorrido é extemporâneo;
    Além do que,
    e) Os valores envolvidos no despacho recorrido pecam por excesso; e
    f) A recorrente não sabe, nem tem obrigação de saber, se a D.S.S.O.P.T. pagou ou despendeu as quantias ali referidas, facto que necessariamente está implícito no eventual direito de regresso que o despacho recorrido corporiza.
    Mostram-se, neste aspecto, violada a norma do art. 46° do C.P.A.C., por errada aplicação da mesma à petição inicial de recurso.
    Termos em que,
    Deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão do Tribunal "a quo" que julgou inepta a petição de recurso, remetendo-se os autos à 1ª Instância para o respectivo prosseguimento, nos termos do art. 395° n.° 4 do C.P.C., "ex vi" do art. 1 do C.P.A.C ..
    
    O Senhor Director de Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), entidade citada nos presentes autos de recurso jurisdicional contra alega, em síntese conclusiva:
    A - A recorrente impugna o despacho do Director da DSSOPT de 12 de Maio de 2011, que lhe ordena o pagamento das despesas de desocupação do terreno por aquela ilegalmente ocupado, imputando-lhe omissão de elementos essenciais, o que não se verifica;
    B - Na petição de recurso, com 76 artigos, apenas os dois últimos se dedicam a impugnar o referido despacho, de modo vago e conclusivo, considerando excessivo o valor da liquidação, mas não densificando ou sequer contabilizando o alegado excesso.
    C - Todo o petitório versa sobre o alegado direito de propriedade da recorrente sobre o terreno e sobre a acção por aquela intentada no Tribunal Judicial de Base relativa a esse alegado direito.
    D - O articulado não expõe com clareza nem os factos nem as razões de direito que o fundamentam o pedido de anulação do acto, tomando a Petição Inicial inepta.
    E - O alegado direito a adquirir o terreno ilegalmente ocupado por usucapião, está a ser dirimido em sede própria, por acção ordinária interposta no Tribunal Judicial de Base e não se prende com o acto recorrido.
    G - Andou bem assim o Tribunal "a quo" quando rejeitou o recurso contencioso por ineptidão da petição inicial.
    Nestes termos, entende dever presente recurso jurisdicional ser rejeitado por ineptidão da p. i. mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
    
    O Digno Magistrado do MP junto deste Tribunal emite o seguinte douto parecer;
    Poder-se-ão, concerteza, suscitar pertinentes questões relativas à natureza do acto e, mesmo, da recorribilidade respectiva.
    Poderão os argumentos utilizados pela recorrente, na perspectiva do julgador, não ser os mais ponderosos e consentâneos com os fins que se almejam.
    Certo é, porém, que, do escrutínio do petitório inicial se alcançam como inteligíveis o pedido (anulação do acto referenciado) e a causa de pedir (ocorrência, além do mais, de vícios de omissão de audiência prévia, extemporaneidade do acto e desproporcionalidade dos montantes envolvidos), para além de que não vemos que os factos e razões de direito que fundamentam o recurso a tal nível não tenham, de forma que poderemos apelidar de "normal", sido expostos.
    Tudo motivos por que se nos afigura a não justificação "in casu" do indeferimento "in limine", nos termos dos artigos 42°, n.º 1, al. d) e 46°, n.º 1 do CPAC e 139°, n.º 2, al. a) CPC, ou seja, por ineptidão da petição inicial, havendo que conceder provimento ao recurso, ordenando-se a remessa dos autos à 1ª instância, para prossecução dos normais trâmites processuais, se a tal qualquer outra razão não obstar.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    III - FACTOS
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
    Alega a recorrente na sua petição de recurso que aqui se dá por reproduzida (fls 2 a 15), respigando-se dela, no essencial:
    Foi notificada do despacho do despacho de fls 16 e segs corporizado no Doc. Sob o n.º 1 que aqui se dá por reproduzido em 18 de Maio de 2011.
    Nesse documento liquida-se a conta de demolição e remoção de materiais relativas ao prédio edificado num terreno mais bem identificado nos autos, sito na aldeia de Hac Sa, Coloane.
    Alega o recorrente que a decisão proferida foi tomada sem ter ouvido sobre essas despesas e montantes no valor de MOP$2.029,384.
    Adquiriu o terreno em 6/5/2009 por HKD$6.000.000,00.
    Descreve as anteriores transmissões do terreno.
    Concretiza determinads e continuados actos de posse, pretensamente conducentes à usucapião do direito de propriedade.
    Que gastou MOP$7.000.000,00 com a edificação da caso entretanto demolida.
    Em face do que invoca também uma pretensa acessão.
    Não obstante a DSSOPT tomou posse do terreno e demoliu a moradia.
    Reclama o direito a ser indemnizado pelos actos da Administração e põe em causa os actos justificativos das despesas apresentadas e de que foi notificado.
    Mais alega que os montantes das despesas são excessivos.
    
    É do seguinte teor o despacho recorrido:
    “A recorrente vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, datado de 12 de Maio de 2011, proferido no âmbito do processo 39/DC/2009/F (cfr. fls. 16 a fls. 18 dos autos), pedindo a sua anulação por vício de violação de lei.
    Após da análise do teor do despacho recorrido, verifica-se que se trata da decisão de liquidação dos custos referentes à execução da demolição e remoção dos materiais e equipamentos depositados num terreno situado em Coloane, e para a Recorrente efectuar o respectivo pagamento.
    Consultado o petitório, verifica-se que a Recorrente vem no âmbito do presente recurso contencioso expor vários factos e pedidos relacionados com matéria do direito de propriedade do terreno em causa e, conforme a própria afirma, foram já expostos no âmbito de uma acção ordinária que corre termos no T.J.B., pelo que não se compreende a razão de serem aqui referenciados.
    O despacho em crise não consiste na decisão da Administração em demolir ou remover os materiais e equipamentos depositados no terreno em causa, por isso não se verifica, nem foi exposta pela Recorrente, a conexão entre o litígio sobre a propriedade do terreno e o despacho ora recorrido.
    Já quanto ao pedido de anulação do acto recorrido por violação de lei, os escassos argumentos expostos pela Recorrente carecem de clareza, nem foram expostos factos concretos e razões de direito que fundamentam o vício invocado (vide art. 74.° a 76.° da petição inicial).
*
    Pelo exposto, rejeita-se o presente recurso por ineptidão da petição inicial (art. 42.° n.º 1 alínea d) e art. 46.° n.º 1, ambos do C.P.A.C; e art. 139.°, n.º 2 alínea a) do C.P.C.M., ex vi do art. 1.º do C.P.A.C).”

    IV - FUNDAMENTOS
    1. O caso
    A diz-se dono de uma casa em Coloane que a Administração entendeu ser ilegal e não lhe pertencer e, por isso, dotada de jus imperii fez demolir.
    A particular interessada alega ter gasto sete milhões na edificação dessa casa e continua a discutir em juízo, em sede própria, a questão relativa à verificação desse seu alegado direito.
    Casa abaixo e a Administração apresentou a conta à referida particular, reclamando o pagamento de dois milhões de patacas pelos custos da demolição e remoção dos materiais e equipamentos.
    A particular reage e vai a juízo, desta feita ao TA, impugnando o acto que se traduziu na liquidação das despesas e subsequente notificação para pagamento da conta, o que fez, aliás, na esteira da notificação que recebera, onde se informava que tinha 30 dias para a impugnação contenciosa.
    
    2. As razões da decisão recorrida
    A Mma juiz indeferiu liminarmente o recurso contencioso do acto praticado, invocando três ordens de argumentos:
    - a recorrente expõe factos e pedidos que se prendem com a matéria relacionada com o direito de propriedade do terreno; questão já exposta em acção ordinária que corres seus termos pelo Tribunal Judicial de Base;
    - o despacho em crise não tem por objecto a demolição ou remoção dos materiais, não se vendo relação entre o litígio e a propriedade do terreno.
    - já quanto ao pedido de anulação do acto recorrido por violação de lei os argumentos expostos carecem de clareza, não tendo sido expostos factos concretos e razões de direito que fundamentam o vício indicado.
    Cremos não assistir razão à Mma Juiz.
    Percebe-se que não faltou àquela Ilustre Magistrada a inteligência e clarividência bastantes para separar o trigo do joio e para delimitar na terceira proposição o objectivo que a recorrente se propunha: impugnar o acto que se traduziu na liquidação e notificação para pagamento da conta.
    E se assim era, o que devia ter feito, a considerar, pouco clara a fundamentação do pedido e a concretização e objectivação dos vícios assacados ao acto, talvez não devesse ter ido logo para uma posição radical de indeferimento e convidado, porventura, ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 51º do CPAC.
    
    3. Análise da fundamentação da petição.
    Mas vejamos com atenção a petição.
    Começa a recorrente por se referir aos pressupostos processuais do recurso contencioso interposto relativos à tempestividade e competência do Tribunal para conhecimento do recurso do acto que reconduz ao despacho proferido e que não deixa de identificar e juntar como preceitua a lei.
    Depois, reconduzindo a falta de audiência à falta de um elementos essencial do acto, começa por apontar esse vício que a, verificar-se não deixa de fulminar o acto praticado.
    Invoca, seguidamente erro nos pressupostos de facto, pondo em crise o acto praticado, desde logo na sua génese, por não se justificar a demolição, já que diz atentatória do seu direito.
    
    4. Da inteligibilidade da petição e causa de pedir
    Ora, embora discutível, não se vê que seja abstrusa a argumentação que procura abalar a justificação das despesas da demolição, atacando esta nos seus próprios fundamentos.
    É neste contexto que se deve entender a invocação da posse da recorrente por si e antecessores, a invocação da usucapião e da acessão, e da factualidade integrante do direito que a interessada particular se arroga, para mais quando alega que essa demolição foi feita ignorando-se a suspensão de eficácia em curso. Note-se que nos estamos a debruçar apenas sobre a alegação e articulação avançada, sendo essa alegação que merece pronúncia, independentemente da sua comprovação posterior.
     Isto ainda para invocar a prejudicialidade da questão a dirimir, relativa ao reconhecimento do direito de propriedade do particular, em relação ao acto ora impugnado, isto é, em palavras mais simples, diz a recorrente que se lhe for reconhecido o direito, a demolição consumada não deixa de se ter por ilegítima, pelo que nada terá de pagar.
    Por fim não deixa de pôr em crise os montantes avançados pela demolição, impugnando-os, por dizer não ter obrigação de ter conhecimento dessas despesas, remetendo-se, portanto, para uma posição impugnatória dos valores computados, enquanto não deixa de dizer que essas verbas são exageradas.
    Na verdade, só em relação a este último ponto pode haver dúvidas sobre a natureza desta alegação, se ela é meramente impugnatória ou se com ela se assaca um vício ao acto, qual seja o de erro nos pressupostos de facto, já que se reclama uma verba que não corresponde á verdade.
    Ora, uma coisa é dizer-se que não se sabe quais as despesas feitas, outra, que a despesa é excessiva e outra que ela não corresponde à verdade.
    Apenas neste ponto e só neste a petição, em termos de recurso contencioso, em que se devem identificar o(s) vício(s), se mostra algo trôpega. Mas daí a indeferi-la vai uma grande distância.
    Mas mesmo que se tratasse apenas deste vício e deste fundamento, ainda aí, deveria a Mma Juíza, ter convidado, como se referiu ao aperfeiçoamento.
     O certo é que se mantém ainda outros vícios que não deixaram de se explicar e de entender.
    
    5. Concluindo
    Assim sendo, a petição não devia ter sido indeferida, donde julgar-se procedente o recurso, já que se apresenta com clareza, ao contrário do que refere o despacho recorrido, "os factos e as razões de direito que fundamentam o recurso", assumindo especial destaque a alegada omissão injustificada da audiência por razões imputadas à Administração, o que, a verificar-se envolve a preterição de uma formalidade essencial, geradora do vício de forma, que conduz à anulação do acto.
    
    Tudo visto e ponderado, resta decidir.
    
    V - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se o despacho proferido que indeferiu a petição e devendo ser proferido outro despacho que se entenda mais adequado ao caso, em conformidade com o acima exposto.
    
    Sem custas por não serem devidas.

Macau, 26 de Abril de 2012

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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José Cândido de Pinho Mai Man Ieng
(Segundo Juiz-Adjunto) (Estive presente)
(Magistrado do M.oP.o)

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