Processo n.º 262/2012 Data do acórdão: 2012-4-26 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– furto qualificado
– abertura da porta de fracção autónoma alheia
– engano provocado no mestre de chaves
– perigo de perturbação da tranquilidade pública
– art.o 188.o, alínea c), do Código de Processo Penal
– prisão preventiva
– proveito do crime
– prática do crime por brincadeira
– grau de culpa
– co-autoria
S U M Á R I O
1. A abertura da porta de uma fracção autónoma alheia através do engano provocado num mestre de chaves constitui manifestamente motivo de perturbação da tranquilidade pública, pelo que sempre há que dar por verificado o perigo concreto de perturbação da tranquilidade pública a que alude também na alínea c) do art.o 188.o do Código de Processo Penal vigente, perigo concreto este que já seria susceptível de fundar a aplicação da prisão preventiva, em caso de estar fortemente indiciada a co-autoria material de um crime consumado de furto qualificado.
2. Entretanto, como um dos arguidos não chegou a tirar nenhum proveito pecuniário do crime, mas sim o praticou apenas por brincadeira, nem foi quem se disfarçou como sendo real proprietário da fracção dos autos para enganar o mestre de chaves no acto de abertura da porta da fracção, tendo, pois, um grau de culpa menos grave, apesar de se tratar de uma situação de co-autoria, é de passar a impor-lhe, a pedido dele próprio, as medidas de apresentações periódicas e de proibição de ausência de Macau, em vez da prisão preventiva.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 262/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A (XXX)
B (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com a prisão preventiva imposta logo após o primeiro interrogatório judicial, por concluída existência de fortes indícios, nomeadamente, da co-autoria de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do Código Penal vigente (CP), vieram os arguidos A e B recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a revogação do despacho judicial aplicador dessa medida de coacção, e, em substituição, a aplicação de medidas coactivas de apresentação periódica e de proibição de ausência de Macau, tendo, para o efeito, colocado material e identicamente as seguintes questões nas respectivas motivações de recurso (de fls. 2 a 6 e de fls. 10 a 17):
– falta de indicação, no despacho recorrido, de fundamentos respeitantes à existência de perigo concreto de repetição da actividade criminosa, nem de fundamentos atinentes à inadequação ou à insuficiência de outras medidas de coacção (sendo, aliás, desnecessária, segundo alegam, a preocupação do Tribunal com o perigo de repetição criminosa, em face da já apresentação voluntária deles às autoridades policiais, da confissão dos factos, da falta de antecedentes criminais, da demonstração do arrependimento e da falta do perigo de fuga);
– violação, pois, pelo despacho recorrido, do disposto no art.o 188.o, alínea c), e no art.o 178.o, ambos do Código de Processo Penal vigente (CPP), por ser de aplicar, em vez da prisão preventiva, as medidas de apresentações periódicas e de proibição de ausência de Macau.
Aos recursos, respondeu a Digna Delegada do Procurador no sentido de improcedência da argumentação dos dois recorrentes (cfr. a resposta de fls. 168 a 169).
Subido o recurso, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer, pugnando pela manutenção da prisão preventiva do arguido A e pela substituição da prisão preventiva do arguido B pelas medidas de apresentações periódicas e de proibição de ausência de Macau (cfr. o parecer de fls. 178 a 179v).
Feito depois o exame preliminar e corridos os vistos legais, urge decidir do recurso, atento o disposto no art.o 203.o do vigente Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Segundo o texto do despacho judicial ora recorrido:
– está fortemente indiciado que os três arguidos C (XXX), A (XXX) e B (XXX), mediante decisão intencional conjunta, e para obtenção de interesse pecuniário, entraram na fracção autónoma dos autos, com a ajuda de um mestre de chaves (o qual foi enganado como estava a abrir a porta da fracção pelo real proprietário da mesma), e depois, arrombaram a porta do quarto da fracção, no qual tiraram 29 computadores portáteis pertencentes ao ofendido e apropriaram-se dos mesmos, o que faz incorrer os três arguidos na co-autoria material, na forma consumada, de um crime doloso de furto qualificado p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do CP, punível com pena de dois a dez anos de prisão;
– além disso, há também fortes indícios da prática, pelo arguido C e pelo arguido A, do crime de burla do art.o 211.o, n.o 1, do CP, ao terem feito entregar, pessoalmente ou através de terceiro, computadores portáteis a casa de penhor em troca de vantagens pecuniárias;
– os três arguidos são residentes de Macau, confessaram os factos criminosos, mas não falaram sobre a totalidade dos factos em pormenor;
– os três arguidos não têm antecedentes criminais;
– os arguidos A e C são desempregados, sem rendimentos nem encargos familiares, e alegaram que praticaram o crime por não terem rendimento; o arguido B é estudante do terceiro ano do ensino secundário elementar, e aufere mensalmente cerca de mil e quinhentas patacas no trabalho a tempo parcial, e sem encargos familares, e alegou que praticou o crime por brincadeira;
– apesar de os três serem jóvens, sem antecedentes criminais, e se terem apresentado às autoridades, e o arguido B demonstrar arrependimento, é muito provável que venham a encarar a aplicação da pena de prisão, atendendo à moldura penal do crime em questão, ao modo de execução dos factos, à motivação da prática do crime, e ao grau grave do dolo;
– os três arguidos só se apresentaram às autoridades depois de o crime ter sido descoberto pelo ofendido e a pedido deste, o que indica que a apresentação deles às autoridades não se deveu ao arrependimento sincero. Ponderando que os três arguidos executaram o crime por decisão conjunta, entraram na fracção através do engano provocado no mestre de chaves, e depois destruíram, com instrumentos, a fechadura (da porta do quarto) para furtar bens, sendo graves estas circunstâncias, e atenta a personalidade dos três arguidos, o Tribunal entende que se os libertasse, não estaria afastado o perigo de repetição da actividade criminosa, e, ao mesmo tempo, haveria grave e imediato impacto à tranquilidade social e à ordem jurídica a nível da protecção do património dos cidadãos;
– em síntese, e conforme os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade, e sendo inadequadas e insuficientes as medidas não privativas da liberdade, e após ouvidos o Ministério Público e os Defensores, decide-se em aplicar a prisão preventiva aos três arguidos, nos termos dos art.os 176.o, 178.o, 179.o, 186.o, n.o 1, alínea a), e 188.o, alínea c), do CPP.
Outrossim, do exame dos autos, fluem também os seguintes indícios fortes:
– o ofendido participou o crime de furto em questão à Polícia Judiciária em 4 de Março de 2012, pelas 10h42m, tendo afirmado nomeadamente que perdeu 29 computadores portáteis
– o próprio ofendido, sendo responsável de uma companhia de informática, antes da ocorrência do presente caso, já conheceu os arguidos;
– foi o arguido C quem sugeriu aos outros dois arguidos a prática do furto contra o ofendido;
– foi o arguido A quem se disfarçou, em 4 de Março de 2012, pelas 00h30m, como sendo real proprietário da fracção dos autos para enganar o mestre de chaves na abertura da porta da fracção;
– foi depois de aberta a porta da fracção por essa forma é que o arguido B foi convocado para chegar à fracção;
– foram os arguidos C e A quem arrobaram, com instrumentos encontrados na mesma fracção, a fechadura da porta do quarto da fracção;
– foram os três arguidos quem tiraram os 29 computadores portáteis depositados pelo ofendido no quarto da fracção;
– os 29 computadores assim tirados foram depositados, cerca das 04h00m de 4 de Março de 2012, pelos três arguidos na fracção onde moravam os arguidos C e A;
– o arguido C já fez entregar, com a ajuda do seu pai, um desses computadores portáteis a uma casa de penhor;
– o arguido A também já entregou um desses computadores portáteis a uma casa de penhor;
– depois de visionar o videograma de gravação de imagens do edifício da fracção autónoma dos autos, o ofendido descobriu que foram os três arguidos quem praticaram o furto contra ele, e foi assim que o próprio ofendido conseguiu, em 6 de Março de 2012, à noite, localizar na rua o arguido A, e na sequência disso, o ofendido recuperou primeiro 25 computadores portáteis seus, e sugeriu aos três arguidos que se apresentassem voluntariamente à Polícia, com dois computadores portáteis, para ver atenuada a responsabilidade criminal deles, e foi assim que os três arguidos finalmente se entregaram voluntariamente ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, em 7 de Março de 2012, pela 01h35m;
– antes de se entregarem às autoridades, o arguido B não chegou a tirar qualquer proveito pecuniário da prática do crime.
Em sintonia com os dados de identificação inscritos nos respectivos bilhetes de identidade de residente de Macau (com cópias juntas aos autos), o arguido C nasceu em 1994, o arguido A nasceu em 1992, o arguido B nasceu em 1993.
Em anexo à motivação de recurso do arguido B:
– existe uma carta subscrita pelo ofendido, a dizer que o arguido B trabalhou a tempo parcial pela sua companhia por dois anos, é muito trabalhador, bem educado e activamente empenhado em diversos assuntos, e como este arguido já admitiu sinceramente perante ele a prática do crime e se sente profundamente arrependido, pede assim o próprio ofendido ao Tribunal que se dê uma oportunidade ao mesmo arguido para este poder continuar a prosseguir os seus estudos na escola;
– existe uma outra carta, subscrita pela Directora da Turma do arguido B, a dizer que ela já conheceu este arguido por mais de dois anos e tem tido sobre ele uma visão positiva sobre a personalidade dele como sendo uma pessoa com bom coração e cabeça simples, apesar de não ter notas muito boas nos estudos, por isso, pede ela ao Tribunal que deixe este arguido a aguardar pelo julgamento em liberdade.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe afirmar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal ad quem cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, e conhecendo agora em concreto:
Quanto à primeiramente assacada falta de indicação, no despacho recorrido, de fundamentos respeitantes à existência de perigo concreto de repetição da actividade criminosan, nem de fundamentos atinentes à inadequação ou à insuficiência de outras medidas de coacção, entende o presente Tribunal ad quem que ante o conteúdo do despacho recorrido referenciado na parte II deste acórdão, o Tribunal a quo já explicou por quê é que opinou no sentido de não estar excluído o perigo de repetição criminosa, e de não serem adequadas nem suficientes as outras medidas de coacção.
Com isso, passa-se a conhecer do cerne dos recursos sub judice, referente à materialmente imputada injusteza da aplicação da prisão preventiva.
No caso, a abertura da porta da fracção imóvel alheia através do engano provocado no mestre de chaves constitui manifestamente motivo de perturbação da tranquilidade pública, pelo que independentemente da questão de verificação, ou não, do perigo concreto de repetição da actividade criminosa, sempre há que dar por verificado o perigo concreto de perturbação da tranquilidade pública a que alude também na alínea c) do art.o 188.o do CPP, perigo concreto este que já seria susceptível de fundar a aplicação da prisão preventiva aos arguidos dos autos.
Resta, pois, saber se o Tribunal a quo violou os princípios da adequação e da proporcionalidade plasmados no art.o 178.o do CPP.
Sobre isto:
– considerando que:
– a montante, apesar de se tratar de uma situação de co-autoria, os dois arguidos recorrentes tiveram grau diferente de culpa, sendo mais grave a culpa do arguido A do que a do arguido B, posto que está fortemente indiciado que foi o arguido A quem se disfarçou como sendo real proprietário da fracção dos autos para enganar o mestre de chaves no acto de abertura da porta da fracção;
– e a jusante, fica fortemente indiciado que o arguido B não chegou a tirar nenhum proveito pecuniário do crime do furto qualificado, e que ele praticou este crime apenas por brincadeira;
– afigura-se ao presente Tribunal ad quem que é legalmente adequada e necessária a aplicação da prisão preventiva ao arguido A, enquanto já se mostra mais equilibrado passar a impor ao arguido B, a pedido expresso deste, as medidas de apresentações periódicas mensais à Polícia Judiciária (em dias e horas a serem definidos por esta Polícia após a audição do arguido a ser feita no dia 14 de Maio de 2012, tendo em conta o horário escolar e o local de habitação deste, com vista à não interferência no horário das aulas da escola) e de proibição de ausência de Macau (art.os 183.o e 184.o, n.o 1, alínea a), n.o 3 e n.o 4, do CPP), com entrega de todos os documentos de viagem à guarda, por ora, do recorrido Juízo de Instrução Criminal no prazo de cinco dias úteis.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em:
– negar provimento ao recurso do arguido A;
– julgar provido o pedido do recurso do arguido B, passando, por conseguinte, a impor a este arguido as medidas de apresentações periódicas e de proibição de ausência de Macau, nos termos acima explicitados, em vez da prisão preventiva aplicada a ele pelo despacho judicial recorrido.
Custas do recurso do arguido A a cargo deste, com três UC de taxa de justiça e mil e trezentas patacas de honorários à sua Exm.a Defensora Oficiosa, honorários esses a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Sem custas no recurso do arguido B.
Passe mandados de soltura do arguido B.
Comunique o presente acórdão à Polícia Judiciária e ao recorrido Juízo de Instrução Criminal.
Proceda, urgentemente, às comunicações referidas no art.o 184.o, n.o 3, do CPP.
Macau, 26 de Abril de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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