Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso civil
N.º 29 / 2010
Recorrente: A Associação de Futebol de Macau
Recorridos: A
B
C
1. Relatório
A, B e C requereram providência cautelar comum contra a Associação de Futebol de Macau, pedindo o levantamento imediato da suspensão imposta aos requerentes de modo a possibilitar a participação dos mesmos no Campeonato da Bolinha da época de 2008 – 2009 e em todas as competições desportivas a organizar no futuro pela requerida.
Por sentença do Tribunal Judicial de Base, foram julgados parcialmente procedentes os pedidos e determinado o levantamento das exclusão e proibição impostas pela requerida aos requerentes.
Desta sentença a requerida Associação de Futebol de Macau recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 911/2009, foi negado provimento ao recurso.
Deste acórdão vem agora a requerida recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
“1. Salvo o devido respeito, que é muito, pelo Distinto Tribunal de Segunda Instância, resulta da documentação junta aos autos que o litígio em questão deve ser resolvido fora dos tribunais comuns, pois que há uma cláusula compromissória obrigatória que assim impõe.
2. Os recorridos não impugnaram em tempo oportuno a existência de uma cláusula arbitral, conforme lhes impunha o art.º 31.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, donde resulta que não mais podem impugnar tal matéria de excepção.
3. A preterição de tribunal arbitral voluntário constitui uma excepção dilatória que conduz à absolvição da instância.
4. Ao não absolver a recorrente da instância, o acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 31.º, n.º 3 e 414.º do Código de Processo Civil.
5. No entanto, caso assim não se entenda, resulta líquido dos próprios factos dados por provados que o Regulamento das provas da época 2007-2008 é válido e que de nenhum vício padece.
6. Assim como, da leitura do Regulamento das provas da época 2007-2008, resulta também inequivocamente a validade da deliberação tomada pela Direcção da ora recorrente em sancionar os recorridos.
7. No que diz respeito à questão da inscrição única, considerada como o cerne da questão pelo Tribunal a quo, não restam dúvidas da existência desta norma, quer pelos factos dados como provados, quer pela boa interpretação dos Regulamentos.
8. Salvo o devido respeito, que é muito, pelo Distinto Tribunal a quo, qualquer juízo diverso traduz um nítido erro de julgamento, em flagrante colisão com a realidade (e a verdade) dos factos dados por provados, assim como contra a nítida intenção da ora recorrente aquando da elaboração do Regulamento em causa.
9. Recorde-se que a regra da inscrição unitária não só está estabelecida no art.º 4.º do Regulamento, como também, a ora recorrente teve o cuidado de informar e clarificar pormenorizadamente todas as normas do Regulamento, inclusive aquela que indica a inscrição unitária, a todos os seus associados, antes da data de inscrição para as provas da época de 2007-2008.
10. Por outro lado, é indiscutível, analisando a matéria dada como assente, que os recorridos tinham conhecimento de que ao procederem à sua inscrição em Novembro de 2007 para as competições de futebol dessa mesma época, estavam conscientes que tinham que participar em todas as competições de futebol da época de 2007-2008.
11. Ainda que assim se não entenda, uma vez feita a inscrição, livre e consciente, foi assumido por parte dos recorridos o compromisso de respeitarem as normas do Regulamento, nomeadamente, de participar nas provas em que se inscreveram.
12. Pelo que a única decisão justa para o presente procedimento cautelar comum é considerá-lo completamente improcedente.
13. A decisão recorrida violou, pois, designadamente, o disposto nos art.ºs 31.º, 412.º, n.º 2, 413.º e 414.º do Código de Processo Civil e no art.º 8.º do Código Civil, ao interpretar o Regulamento recorrendo a critério interpretativo diverso do legal.”
Pedindo afinal que seja revogada a decisão recorrida e indeferida a providência cautelar.
Os recorridos apresentaram resposta no sentido de julgar improcedente o recurso.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Factos provados:
Os factos considerados provados pelas instâncias não sofrem alteração e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2.2 Preterição do tribunal arbitral
A recorrente sustenta que o presente litígio entre ela e os recorridos deve ser resolvido não nos tribunais comuns, mas sim no tribunal arbitral, de acordo com a cláusula de arbitragem, embora não expressa nos Estatutos da recorrente, que se encontra, por remissão, nos Estatutos da FIFA (Federação Internacional de Futebol), designadamente nos seus art.ºs 62.º a 64.º, por força do disposto no art.º 5.º dos seus próprios Estatutos. A preterição do tribunal arbitral voluntário constitui excepção dilatória que conduz à absolvição da instância.
A questão consiste em saber se está validamente estabelecida no Estatuto da Associação de Futebol de Macau (AFM) a regra de recurso aos meios de arbitragem para resolver os litígios entre a Associação e os seus membros, excluindo o recurso aos tribunais comuns.
Ora, é certo que não consta do Estatuto da AFM1 uma norma autónoma expressa com o referido sentido.
No entanto, é de notar que a AFM deve considerar as situações relacionadas com as deliberações da FIFA (art.º 2.º do Estatuto da AFM) e constitui deveres dos seus membros cumprir e fazer cumprir os estatutos e regulamentos internos dos próprios clubes, da FIFA e da AFM (art.º 5.º, n.º 2 do mesmo Estatuto).
Por esta remissão genérica, os membros da AFM devem igualmente cumprir as regras estabelecidas no Estatuto da FIFA, em que os art.ºs 62.º a 64.º estão relacionados com a matéria em apreço.
O disposto no n.º 2 do art.º 64.º do Estatuto da FIFA proíbe expressamente “o recurso a tribunais judiciais civis, a menos que especificados nos regulamentos de FIFA.”
E por sua vez, a FIFA “reconhece o Tribunal de Arbitragem do Desporto (CAS), com sede em Lausanne (Suíça), como o foro competente para o resolução de conflitos entre a FIFA, Membros, Confederações, Ligas, Clubes, Jogadores, Oficiais e agentes de jogo e agentes de jogadores licenciados e autorizados.” (art.º 62.º, n.º 1 do Estatuto da FIFA).
E é obrigatório que “as Confederações, Membros e Ligas comprometem-se a reconhecer o CAS como uma autoridade judicial independente e obrigam-se a adoptar todas as medidas necessárias para que os seus membros, jogadores afiliados e oficiais acatem as decisões do CAS.” (art.º 64.º, n.º 1 do Estatuto da FIFA).
Em termos formais, “todos os recursos contra decisões adoptadas em última instância pela FIFA, especialmente pelos órgãos jurisdicionais, assim como contra as decisões adoptadas pelas Confederações, Membros ou Ligas deverão ser interpostos no CAS no prazo de 21 dias a contar da notificação da decisão em questão.” (art.º 63º, n.º 1 do Estatuto da FIFA).
Como requisito formal, “o recurso só poder ser interposto ao CAS depois de esgotadas todas as outras instâncias jurisdicionais internas.” (art.º 63º, n.º 2 do Estatuto da FIFA).
Assim, é princípio geral a resolução por meio arbitral, fora dos tribunais comuns, de litígios entre a FIFA, a AFM, os membros desta e os seus jogadores, etc., com possibilidade de recorrer até ao CAS, esgotando previamente as instâncias associativas internas de resolução.
Naturalmente não se pode olvidar o disposto no art.º 64.º, n.º 3 do Estatuto da FIFA, em que se dispõe: “As Associações têm a obrigação de incorporar nos seus estatutos ou regulamentos uma disposição que, em caso de litígios internos da associação, litígios que envolvam a Liga, membros de uma Liga, clubes, os membros dos clubes, jogadores, oficiais ou quaisquer outras pessoas adscritas à associação, proíba o recurso a tribunais judiciais civis, excepto se os regulamentos da FIFA ou decisões legais obrigatórias especificamente prevejam ou estipulem o recurso a tribunais judiciais ordinário civis. Em alternativa ao recurso interposto nos tribunais judiciais ordinários civis, a resolução dos conflitos deverá ser sujeita aos tribunais de arbitragem. Os conflitos mencionados serão submetidos a um tribunal de arbitragem independente, devidamente constituído e reconhecido pelas regras da Associação, ou Confederação ou para CAS.”
Na realidade, do Estatuto da AFM não consta, como devia, uma cláusula expressa exigida pelo referido n.º 3 do art.º 64.º do Estatuto da FIFA. Mesmo assim, do Estatuto da FIFA não resulta que o princípio geral de proibição de recorrer a tribunais judiciais civis para resolução de litígio previsto no n.º 2 do mesmo art.º 64.º do Estatuto da FIFA está condicionado pelo efectivo cumprimento da inserção de uma cláusula com o teor descrito no n.º 3 do mesmo artigo.
De facto, o escopo do n.º 3, para além da reafirmação do referido princípio geral por associações de futebol, consiste no estabelecimento dos meios de arbitragem em concreto por associação de futebol em causa, isto é, ou para um “tribunal de arbitragem independente, devidamente constituído e reconhecido pelas regras da Associação, ou Confederação” ou para o CAS, a fim de clarificar o modo de procedimento de resolução de litígios e garantir o seu cumprimento.
Tal omissão de cláusula expressa no Estatuto da AFM não pode alterar as regras de resolução de litígios consagradas nos art.ºs 62.º a 64.º do Estatuto da FIFA, que constituem fonte directa dos direitos e deveres dos membros da AFM, por remissão do art.º 5.º, n.º 2 do seu Estatuto.
Por outro lado, está prevista no art.º 19.º do Estatuto da AFM a Comissão de Recurso com competência sobre os assuntos relacionados com competições. Como um dos órgãos obrigatórios de associações desportivas, tal Comissão de Recurso deve ser entendida como “órgão de recurso das decisões de natureza desportiva tomadas pela direcção” (art.ºs 27.º, n.º 1, al. d) e 28.º do Decreto-Lei n.º 67/93/M) e instância jurisdicional interna da AFM para os efeitos do n.º 2 do art.º 63.º do Estatuto da FIFA.
Com a instauração da presente providência cautelar comum, fica preterido o meio arbitral, questão expressamente suscitada pela requerida, ora recorrente, na oposição.
Procede assim o presente recurso, que determina a revogação do acórdão recorrido com a consequente absolvição da requerida da instância, nos termos do art.º 33.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões alegadas.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido, e, em consequência, absolver a requerida Associação de Futebol de Macau da instância.
Custas nesta e na segunda instâncias pelos requerentes.
Aos 17 de Novembro de 2010
Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
1 Publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, II Série, n.º 46 de 15 de Novembro de 2006.
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Processo n.º 29 / 2010 9