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Processo nº 428/2010
Data do Acórdão: 19ABR2012


Assuntos:

Competência internacional
Competência interna


SUMÁRIO

Nos termos do disposto no artº 28º da LBOJM, à luz do qual competem aos juízos cíveis do Tribunal Judicial de Base as causas de natureza cível que não sejam da competência de outros juízos, bem como as causas de outra natureza que não caibam na competência de outros juízos ou tribunais, incluindo todos os seus incidentes e questões, é competente o juízo cível do Tribunal Judicial de Base para o julgamento das acções em processo laboral.

O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 428/2010


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos de acção de processo comum do trabalho, registada sob o nº CV3-01-0019-CAO, que correm os seus termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, movida pela COMPANHIA DE TRANSPORTES AEREOS AIR MACAU, SARL contra A, foi no saneador proferida a seguinte decisão sobre a excepção de incompetência do tribunal da RAEM:

Nos presentes autos, a A. pede a condenação do R. a pagar MOP208761.8, juros legais e demais despesas. Na contestação, o R. invoca a incompetência do Tribunal. Nos termos do ponto 10) de Trainee First Officer Traineeship Agreement, estipula-se que as partes aceitam desde já que o presente acordo se rege pela legislação em vigor no Território de Macau e submeter-se à competência não exclusiva dos Tribunais de Macau.
Ao abrigo do artigo 16.º al. a) do CPC, sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo anterior, os tribunais de Macau são competentes para apreciar as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento...... quando a obrigação devesse ser cumprida em Macau ou o réu aqui tenha domicílio.
Se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento (artigo 763.º do CC).
Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência.

Não se conformando com essa decisão que julgou improcedente a excepção, veio o Réu recorrer da mesma concluindo que:

A. O Réu e Recorrente não concorda com o entendimento do douto Juiz a quo quando, doutamente, considerou improcedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal Judicial de Base.
B. Que fora alegada, nos termos da alínea a) do artigo 414º do CPC, nos artigos 1º a 15º da Contestação.
C. Mais vem, ainda, discordar do douto fundamento do Despacho Saneador recorrido quando ficou decidido que, e passa a Recorrente a transcrever:
D. “( ... ) Ao abrigo do artigo 16.º ai. a) do CPC, sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo anterior, os tribunais de Macau são competentes para apreciar as acções destinadas a exigir o cumprimento das obrigações, a indemnização pelo não cumprimento...... quando a obrigação devesse ser cumprida em Macau ou o réu tenha aqui domicilio. Se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento (art. 763.° do CC). Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência.”.
E. O Réu considera que, do ponto de vista de competência material, e apesar do facto de ser o Acordo para Formação de Primeiro Oficial Tirocinante, o contrato que está em crise na presente acção, não podemos deixar de verificar que estamos perante uma relação contratual do foro laboral, com todas as características inerentes a este mesmo tipo de relação.
F. Nos termos da legislação então aplicável (e por conseguinte aplicável ao presente caso), na alínea g) do artigo 14° do anterior Código de Processo de Trabalho (CPT de 1963/1970) sob a epígrafe Competência em razão da matéria, estabelece-se que: “São da competência dos tribunais do trabalho: ( ... ) “g) As questões emergentes de contrato de aprendizagem e de tirocínio ( ... )”.
G. Tal qual dispõe o actual parágrafo 3) do número 2 do artigo 2° do CPT de 2003 em vigor em Macau desde 1 de Outubro de 2003 (não aplicável ao presente litígio), quando prevê: “2. Entre outras que nos termos da lei se devam considerar como tal, são de natureza laboral e seguem os termos do processo civil regulado neste Código: ( ... ) 3) As questões emergentes de contratos de aprendizagem.”.
H. Do teor do Acordo em litígio, todas as cláusulas indiciam a existência de um contrato de trabalho (ainda que prévio ao contrato de trabalho propriamente dito).
I. Existe subordinação ou poder de direcção ou poder de dar ordens ou instruções;
J. Existe uma retribuição ou remuneração ou ordenado ou salário ou vencimento.
K. Estipula-se um horário de trabalho organizado pela A. e aqui Recorrida.
L. Dest’arte deverá relegar-se para a competência do foro do trabalho.
M. Do ponto de vista da competência territorial, deveria a decisão recorrida ter atentado nas regras legalmente aplicáveis que atribuíam a competência ao Tribunal do Trabalho de Lisboa, regras que não poderão deixar de ser observadas, sob pena de ilegalidade, violando-se, designadamente, o preceituado na alínea g) do artigo 14º do CPT de 1963, em vigor em Macau entre 1970 e 2003,
N. O douto Despacho recorrido viola o artigo 5º do Regime Jurídico das Relações de Trabalho de 1989 aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, em vigor à data do acordo e dos factos e da proposição da presente acção,
O. E o comando legal previsto nas alíneas a) e c) do número 2 do artigo 598º do CPC,
P. Havendo erro na determinação das normas e diplomas legais aplicáveis, sendo de aplicar a lei laboral (o referido RJRT de 1989) e o Código de Processo do Trabalho de 1963/1970 e não as normas do Código Civil (seja o de 1966, em vigor à data da celebração do contrato ou Acordo para Formação de Primeiro Oficial Tirocinante), seja o actual Código Civil de 1999, nem, por outro lado, devendo aplicar-se o Código de Processo Civil de 1999,
Q. Pois o presente litígio envolve uma relação jurídica laboral ou uma situação jurídica de trabalho e não uma lide ou um litígio de natureza cível, privatística,
R. Havendo desigualdade entre A. e R., relação de subordinação ou dependência do Recorrente para com a ora Recorrida, poder de direcção desta última, salário ou remuneração, horário de trabalho, subordinação do Recorrente para com a Recorrida,
S. É o Tribunal de Trabalho de Portugal o tribunal competente e não os Tribunais Cíveis de Macau, devendo o presente processo ser do foro e de índole laboral e não cível.
T. Nos termos do Acordo para Formação de Primeiro Oficial Tirocinante, as partes acordaram submeter-se à competência não exclusiva dos Tribunais de Macau o que, sendo de natureza imperativa, não poderá ser afastado pela vontade das partes, sob pena de ilegalidade e de violação manifesta do princípio basilar do Direito do Trabalho de favorecimento do denominado contraente débil da relação contratual, o trabalhador (favor laboratoris).
U. Deste modo, parece-nos ser de revogar o Despacho recorrido e substituí-lo por outro que reconheça a valia intrínseca do ora alegado, sem prejuízo de melhor posição e opinião do Douto Tribunal ad quem, considerando procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal Judicial de Base, Tribunal a quo, para dirimir este litígio e, consequentemente, ser o Réu absolvido da instância,
V. Pela procedência da excepção Dilatória de Incompetência do Tribunal, prevista na alínea a) do artigo 414º do CPC (aplicável por remissão legal expressa do actual CPT no seu artigo 1°).
W. Em face de todo o exposto - e, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo e pela sua douta decisão e opinião em contrário, no douto Despacho Saneador - afigura-se, ser de revogar o despacho aqui em recurso, por errada determinação das regras de competência aplicáveis e das normas legais aplicáveis ao presente litígio, nos termos do artigo 598º do CPC,
X. A decisão em crise padece de errada interpretação dos normativos vigentes na ordem jurídica de Macau, sendo por isso mesmo anulável e impondo-se, assim, a sua revogação, nos termos do número 1 do artigo 598ºdo CPC, com os devidos efeitos legais de consequente absolvição do Réu, ora Recorrente, da instância.
  Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis que Vossas Excelências melhor suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida em conformidade, absolvendo o Réu e Recorrente da Instância, assim se fazendo, mais uma vez, a sempre devida e costumada
  JUSTIÇA!

Contra-alegou a ré, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutênção da decisão recorrida.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

A única questão levantada aqui é saber se o tribunal de Macau é ou não internacionalmente competente para julgar a presente acção.

O recorrente apoiou a sua posição no artº 14º/-g) do CPT português, estendido a Macau pela Portaria 87/70, nos termos do qual são competência dos tribunais do trabalho as questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio.

E com base nessa norma defende ser competente o Tribunal de Trabalho de Lisboa, onde tem o seu domicílio.

É verdade que, de acordo com a jurisprudência deste TSI, depois de estabelecimento da RAEM e antes da entrada em vigor do CPT de Macau aprovado pela Lei nº 9/2003, devia adoptar a prática anterior resultante das disposições que não sejam incompatíveis com a Lei Básica da RAEM, constantes do CPT português de 1963 (na sua versão então tornada extensiva a Macau com efeitos a partir do 01SET1970, por força do nº 1 da Portaria nº 87/70), por aplicação analógica da permissão constante do proémio do Anexo II da Lei de Reunificação – cf. nomeadamente o Ac. do TSI de 26JAN2006 no proc. nº 255/2005.

Tendo a presente acção sido intentada em 2001, isto é, antes da entrada em vigor do CPT de 2003, é de aplicar a tal “prática anterior” resultante do disposto no artº 14º do CPT português.

Trata-se de um norma reguladora da competência interna.

Como se sabe, as normas reguladoras da competência interna visam distribuir pelos diferentes tribunais a jurisdição de um país ou de uma região segundo a matéria, a hierarquia judiciária e o território.

Ao “aplicar” o citado artº 14º/-g), que se refere a um tribunal internamente competente, para determinar qual é o tribunal competente, já estamos a reconhecer a competência internacional aos tribunais de Macau, pois, de outro modo, não faria sentido averiguar a competência interna se ab initio os tribunais de Macau não fossem internacionalmente competentes.

Diz o artº 14º/- g) desse diploma, em que se apoiou o recorrente, que são da competência dos tribunais do trabalho as questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio.

Sendo uma norma da competência interna que é, essa norma não regula mais do que a distribuição interna da competência segundo a matéria e nunca de per si tem a virtualidade de retirar a competência internacional dos tribunais de Macau.

Como se sabe, na organização judiciária de Macau, tanto no momento da propositura da presente acção como actualmente, não há tribunal ou juízo especial de trabalho.

E nos termos do disposto no artº 28º da LBOJM, na versão vigente no momento da prolacção do saneador, competem aos juízos cíveis do Tribunal Judicial de Base as causas de natureza cível que não sejam da competência de outros juízos, bem como as causas de outra natureza que não caibam na competência de outros juízos ou tribunais, incluindo todos os seus incidentes e questões.

É portanto inquestionavelmente competente o juízo cível do Tribunal Judicial de Base.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam negar provimento ao recurso interposto pelo Réu, mantendo a decisão que julgou competente o tribunal a quo para o julgamento da presente acção.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

RAEM, 19ABR2012

Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira