Processo n.º 126/2012 Data do acórdão: 2012-4-19 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– valor dos objectos furtados
– reincidência
S U M Á R I O
1. O facto provado de o dono do restaurante arrombado pelo arguido ter afirmado que “tinha perdido cento e tal relógios coleccionados (que custavam cerca de um milhão e tal de dólares de Hong Kong)”, não contradiz com o valor desses relógios furtados então estimado no exame directo dos mesmos por empregados de casa de penhor chamados pela polícia para este efeito, pois tal valor de “cerca de um milhão e tal” foi afirmado por aquele dono, o que naturalmente pôde ser diferente do estimado por tais indivíduos.
2. Enquanto não consta do elenco dos factos descritos como provados no texto do acórdão ora recorrido qualquer factualidade com pertinência à verificação do critério material exigido na parte final do n.o 1 do art.o 69.o do vigente Código Penal, é de revogar a decisão condenatória do arguido recorrente como reincidente.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 126/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido em 11 de Janeiro de 2012 a fls. 628 a 635 do Processo Comum Colectivo n.o CR1-11-0175-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor imediato, reincidente, de três crimes consumados de furto qualificado, p. e p. pelos art.os 198.o, n.o 2, alínea e), 69.o e 70.o do vigente Código Penal (CP), nas penas respectivamente fixadas em três anos, quatro anos e seis meses e três anos e seis meses de prisão, e um crime consumado de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.os 262.o, n.o 1, 69.o e 70.o do CP e art.os 6.o, n.o 1, alínea b), e 1.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento de Armas e Munições aprovado pelo Decreto-Lei n.o 77/99/M, de 8 de Novembro, na pena de três anos de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas quatro penas com as penas outrora impostas no Processo n.o CR4-10-0121-PCC, na pena única de 14 anos e seis meses de prisão, e no pagamento de MOP21.000,00 de indemnização de danos patrimoniais, arbitrada oficiosamente, a um dos ofendidos B (rectius, B1), com juros legais contados a partir da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento, veio o arguido A recorrer ordinariamente para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) para imputar concreta e materialmente à decisão recorrida, mediante a sua motivação de fls. 652 a 662 dos presentes autos correspondentes:
– o vício de contradição insanável da fundamentação, no tocante à determinação dos valores dos relógios furtados e pertencentes ao referido ofendido (visto que o facto considerado provado pelo Tribunal a quo no sentido de que esse ofendido afirmou inclusivamente que os relógios em causa custavam um milhão e tal de dólares de Hong Kong (HKD), contradiz com o valor total dos relógios estimado no exame pericial feito nos autos como sendo de HKD162.531,00);
– o erro de julgamento na condenação do recorrente como reincidente (porquanto não consta da matéria fáctica provada nenhuma matéria susceptível de fazer verificar o critério material exigido na parte final da norma do n.o 1 do art.o 69.o do CP);
– e o excesso da medida da pena não só no respeitante aos três crimes de furto qualificado e do crime de detenção de armas proibidas, como também relativamente à pena única resultante do cúmulo.
Pediu, pois, a revogação da condenação pela reincidência, e a redução das penas parcelares e da pena única.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fl. 665 a 668, no sentido da improcedência manifesta da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 679 a 681, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a audiência de julgamento neste TSI, após o que cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal Colectivo a quo deu finalmente por provada toda a matéria fáctica descrita no libelo acusatório de fls. 509 a 511v (que imputou ao arguido ora recorrente a autoria imediata, na forma consumada, de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do CP, e de um crime de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.os 262.o, n.o 1, do CP e art.os 6.o, n.o 1, alínea b), e 1.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.o 77/99/M, de 8 de Novembro), segundo o qual, e na essência:
– em 6 de Março de 2011, cerca das 22 horas e 30 minutos, o arguido entrou, por arrombamento, numa agência de viagens e turismo sito na Rua de XX, onde tirou, para já, um total de MOP7.000,00 e HKD4.000,00 em numerário então fechados em três gavetas (também por ele arrombadas), e transportou depois um cofre para fora e o escondeu numa via pública vizinha; e no dia seguinte, através de uma companhia transportadora, o arguido levou esse cofre para a sua residência, onde o arrombou e tirou os bens;
– em 18 de Março de 2011, cerca das 23 horas e 50 minutos, o arguido entrou, por arrombamento, num restaurante sito na Avenida de XX, onde tirou MOP20.000,00 em numerário num cofre (igualmente arrombado) e cento e tal relógios e mil moedas de MOP1,00 depositados num outro cofre (por ele aberto com uma chave procurada nesse estabelecimento);
– o dono do mesmo restaurante, B, afirmou que perdeu MOP21.000,00 em numerário e cento e tal relógios coleccionados (que custavam cerca de um milhão e tal de HKD);
– na madrugada de 27 de Março de 2011, o arguido entrou num estabelecimento de venda de cigarros e vinhos sito na Rua da XX, por arrombamento do gradeamento de janelas, e tirou aí 14 garrafas de vinhos (no valor total de MOP6.217,00), 28 tubos de maços de cigarros (no valor total de MOP5.350,00) e dinheiro depositado na máquina da caixa;
– posteriormente, na residência do arguido, foram encontrados pelo pessoal da Polícia Judiciária, de entre outras coisas, dois pulverizadores de líquido nocivo;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente na prática intencional dos acima referidos, tendo destruído, com instrumentos, as portas e janelas dos ditos três estabelecimentos comerciais, entrado nos mesmos e tirado aí bens para se apropriar dos mesmos, e lesado assim o direito de propriedade de outrem e causado prejuízos patrimoniais aos mesmos estabelecimentos; além disso, o arguido sabia que sem autorização não podia esconder armas proibidas, e não obstante escondeu intencionalmente pulverizadores de líquido químico nocivo ao corpo humano, causando perigo à segurança pública;
– o arguido sabia que a sua conduta era ilegal e punível por lei.
Além disso, foi mais apurado pelo Tribunal a quo o seguinte, incluvisamente:
– antes de entrar em prisão, o arguido era empregado de cozinha, com MOP7.000,00 de salário mensal;
– o arguido é solteiro, e precisa de sustentar o pai;
– o arguido confessou parte dos factos acusados, e não é delinquente primário;
– em 27 de Maio de 2011, o arguido foi condenado no Processo n.o CR4-10-0121-PCC, pela prática de três crimes de uso de documentos falsificados de especial valor, em um ano e nove meses de prisão por cada; pela prática de quatro crimes de abuso de confiança, em um ano de prisão por cada; pela prática de um crime de abuso de confiança (em valor elevado), em dois anos de prisão; pela prática de dois crimes de resistência e coacção, em um ano e nove meses de prisão por cada; pela prática de um crime de detenção de armas proibidas, em dois anos e nove meses de prisão; e pela prática de um crime (tentado) de furto, em nove meses de prisão; e, em cúmulo das penas desses 12 crimes, na pena única de seis anos de prisão; e por acórdão proferido em 13 de Outubro de 2011 pelo TSI, já transitado em julgado, o arguido passou a ser condenado também pela prática (em concurso efectivo com os referidos três crimes de uso de documentos falsificados de especial valor) de dois crimes de burla, em um ano de prisão por cada, e de um crime (tentado) de burla, em quatro meses de prisão, e, em novo cúmulo, na pena única de sete anos de prisão.
Conforme a matéria de facto assente no referido Processo n.o CR4-10-0121-PCC (cfr. a certidão de fls. 568 e seguintes dos presentes autos):
– os factos criminosos aí em questão foram praticados em 2008 e 2009;
– o arguido chegou a ser condenado em 24 de Novembro de 1998 no Processo n.o CR1-98-42-PCC (outrora n.o 3604/98), pela prática de um crime de furto qualificado e de três crimes de burla, na pena única de cinco anos de prisão, com concessão de liberdade condicional em 31 de Agosto de 2001 para o período de 31 de Agosto de 2001 a 24 de Abril de 2003, mas revogada em 23 de Outubro de 2002;
– e chegou a ser condenado em 27 de Setembro de 2002 no Processo n.o CR2-02-0067-PCC (anteriormente n.o PCC-026-02-3), pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, com concessão de liberdade condicional em 23 de Abril de 2007 para o período de 23 de Abril de 2007 a 9 de Abril de 2008, e com liberdade definitiva declarada em 9 de Abril de 2008;
– o arguido tinha ainda um processo pendente, com o n.o CR1-10-0051-PCC, relativo a crimes de detenção de armas proibidas e de resistência e coacção.
De acordo com os dados de identificação inscritos no bilhete de identidade de residente de Macau (com cópia junta a fl. 23 dos presentes autos) do dono do restaurante referido na matéria de facto provada, este tem por nomes B2, e por apelidos B3.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Conhecendo e decidindo nesses parâmetros, há-de improceder, desde já, o vício de contradição insanável da fundamentação, invocado primeiramente pelo arguido na sua motivação de recurso.
É que tal como observa perspicazmente a Digna Procuradora-Adjunta no seu parecer, o facto provado de o dono do restaurante dos autos ter afirmado que tinha perdido “cento e tal relógios coleccionados (que custavam cerca de um milhão e tal de HKD)”, não contradiz com o valor desses relógios então estimado no exame directo dos mesmos por empregados de casa de penhor chamados pela Polícia para este efeito (cfr. o teor dos autos de exame directo lavrados a fls. 207 a 209 e 211 a 222), pois tal valor de “cerca de um milhão e tal de HKD” foi afirmado pelo dono do restaurante, o que naturalmente pôde ser diferente do estimado por tais indivíduos.
Entretanto, já tem razão o recorrente ao imputar à decisão recorrida o erro de julgamento na condenação dele como reincidente.
De facto, mantendo-se a posição já assumida por este TSI como tese jurídica abstracta no acórdão de 13 de Outubro de 2011 do Processo n.o 534/2011 acerca da punibilidade da reincidência (acórdão esse aliás já materialmente referido na factualidade apurada pelo ora Tribunal a quo), e enquanto nem consta do elenco dos factos descritos como provados no texto do acórdão ora recorrido qualquer factualidade com pertinência à verificação, in casu, do critério material exigido na parte final do n.o 1 do art.o 69.o do CP, é de revogar, sem mais indagação (sobre outros pressupostos cumulativos da punição da reincidência) por ociosa, a decisão condenatória do recorrente como reincidente, passando este a ser condenado nos termos inicialmente acusados pelo Ministério Público.
Com isso, é momento de decidir agora da medida da pena.
Estando em causa nos subjacentes autos penais três crimes consumados de furto qualificado (a saber, o praticado em 6 de Março de 2011 contra uma agência de viagens e turismo, o praticado em 18 de Março de 2011 contra um restaurante, e o praticado em 27 de Março de 2011 contra uma loja de venda de cigarros e vinhos) e um crime consumado de detenção de armas proibidas.
Na medida concreta da pena, há que levar em conta sobretudo o elevado grau de culpa do arguido na prática dos crimes de furto qualificado (pois os praticou com dolo específico, sendo certo que o grau de dolo no segundo e no terceiro furtos foi mais elevado do que no primeiro e no segundo furtos, por se tratar de repetição de actos criminosos) e as elevadas necessidades de prevenção geral dos crimes de furto qualificado e de detenção de armas proibidas.
E especialmente no que aos três crimes de furto qualificado diz respeito, é de considerar também os valores dos bens furtados e as elevadas necessidades de prevenção especial deste tipo de crime, posto que o arguido chegou a cometer furtos qualificados e a cumprir pena de prisão em dois processos anteriores (n.os CR1-98-42-PCC e CR2-02-0067-PCC).
Assim sendo, dentro da moldura penal de dois a dez anos de prisão do crime de furto qualificado do art.o 198.o, n.o 2, e), do CP, e da moldura de dois a oito anos de prisão do crime de detenção de armas proibidas do art.o 262.o, n.o 1, do CP, é de impor, por justas e equilibradas à luz dos padrões da medida da pena consagrados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP:
– a pena de três anos de prisão ao furto qualificado de 6 de Março de 2011;
– a pena de quatro anos e seis meses de prisão ao furto qualificado de 18 de Março de 2011 (mesmo que se considere que o valor dos relógios furtados seja o avaliado nos autos de exame directo de fls. 207 a 209 e 211 a 222, e não o valor declarado pelo seu dono);
– a pena de três anos e três meses de prisão ao furto qualificado de 27 de Março de 2011;
– e a pena de dois anos e seis meses de prisão à detenção de armas proibidas.
E procedendo ao cúmulo jurídico, nos termos ditados pelo art.o 71.o, n.os 1 e 2, ex vi do 72.o, n.o 1, do CP, destas quatro penas parcelares com as 15 penas parcelares então finalmente impostas no Processo n.o CR4-10-0121-PCC (quais sejam, uma pena parcelar de dois anos e nove meses de prisão, uma pena parcelar fixada em dois anos de prisão, cinco penas parcelares igualmente fixadas em um ano e nove meses de prisão, seis penas parcelares fixadas igualmente em um ano de prisão, uma pena parcelar de nove meses de prisão e uma outra pena parcelar fixada em quatro meses de prisão), é de impor ao ora recorrente a pena única de dez anos e seis meses de prisão, dentro da respectiva moldura de quatro anos e seis meses de prisão a 30 anos de prisão (devido à limitação do n.o 3 do art.o 41.o do CP).
Por fim, há que alterar oficiosamente, nos termos permitidos pelo art.o 361.o, n.o 1, alínea b), e n.o 2, do CPP, a redacção do nome completo do dono do restaurante referido no texto do acórdão recorrido, de “B” para B.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, passando a condenar o arguido A:
– como autor imediato de três crimes consumados de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea e), do Código Penal, praticados respectivamente em 6 de Março de 2011, 18 de Março de 2011 e 27 de Março de 2011, nas penas correspondentemente fixadas em três anos, quatro anos e seis meses e três anos e três meses de prisão, e de um crime consumado de detenção de armas proibidas, p. e p. pelos art.o 262.o, n.o 1, do CP e art.os 6.o, n.o 1, alínea b), e 1.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.o 77/99/M, de 8 de Novembro, na pena de dois anos e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico destas quatro penas com as 15 penas outrora impostas finalmente no Processo n.o CR4-10-0121-PCC, na pena única de dez anos e seis meses de prisão, mantendo-se intacto todo o restante decidido no acórdão ora recorrido;
– e, não obstante, alterar a redacção do nome completo do dono do restaurante referido no texto do acórdão recorrido, no sentido de que onde se lê aí “B”, se deve ler B1.
Pagará o arguido um terço das custas do processo nesta Segunda Instância e três UC de taxa de justiça, por causa do seu decaimento parcial no recurso.
Fixam em duas mil patacas os honorários do Exm.o Defensor Oficioso do arguido, a entrar na regra das custas, e ora a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique aos três ofendidos, e aos Processos n.o CR4-10-0121-PCC e n.o CR1-10-0051-PCC do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 19 de Abril de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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