Processo n.º 62/2010. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretário para a Segurança.
Recorrido: A.
Assunto: Poderes do Tribunal de Última Instância em matéria de facto. Processo disciplinar. Factos notórios. Prova de factos. Circunstância agravante. Produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral.
Data do Acórdão: 24 de Novembro de 2010.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – No contencioso administrativo, em recurso jurisdicional correspondente a segundo grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância (TUI) apenas conhece de matéria de direito, nos termos do art. 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Não obstante, o TUI pode apreciar se houve ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
II – Quando o acto punitivo invoca impacto social negativo para a instituição, resultante de factos da vida privada imputados ao funcionário, integrando tal conclusão na circunstância agravante da responsabilidade disciplinar, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta) tem de provar os factos em causa, a menos que se trate de factos notórios.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A, 1.º Oficial, do grupo de pessoal administrativo, da Polícia Judiciária, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 24 de Agosto de 2007, que puniu o recorrente com a pena disciplinar de aposentação compulsiva.
Por acórdão de 15 de Julho de 2010, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso e anulou o acto recorrido.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1 - Através do despacho n.º XX/XX/XXXX o Secretário para a Segurança do Governo da RAEM aplicou a pena de aposentação compulsiva a A, à altura 1.° Oficial da carreira administrativa da Polícia Judiciária, por considerar, em síntese, que a publicidade dos factos de que aquele fora protagonista (estes e aquela abundantemente demonstrados nos autos) fez com que resultasse gravemente prejudicada a imagem e o prestígio daquela instituição, pelo que violou aquele, de forma muito grave, os deveres previstos nos art.ºs 279.°, n.º 1 e 315.°, n.º 2, o) do ETAPM.
2 - O douto Acórdão recorrido anulou aquela decisão administrativa, com fundamento em erro nos pressupostos de facto e de direito, por defender, também em síntese, que:
3 - “ o juízo de ter o facto ou a publicidade do facto provocado “impacto social negativo” não está no poder discricionário da Administração ... mas a sua conclusão depende de factos concretos e objectivos que a revela”.
4 - E que “... dos autos não resultaram provados quaisquer factos concretos para concluir esse juízo de provocação do “impacto social negativo”.”
5 - Ressalvado o devido respeito, crê o ora recorrente não poder acompanhar-se tal entendimento.
6 - Não se produz qualquer juízo de censura a partir de um qualquer poder discricionário ou vontade administrativa que contenda com factos sobre a exclusiva vida privada do funcionário, mas tão somente se condena, e pune, o efeito negativo que os mesmos factos, após se tornarem públicos, e que são imputados ao funcionário, exerceram sobre a imagem e o prestígio da instituição em causa.
7 - Publicidade essa que acontece por virtude de o mesmo não ter sido o devido cuidado para que não viessem a tornar-se do conhecimento público factos daquela natureza.
8 - Sendo que é objectiva (resulta da experiência comum) a apetência de tais factos tornados públicos para provocar o prejuízo para a imagem e prestígio da instituição, não carecendo de outros “factos concretos” que a revelem, produzindo-se necessariamente esse prejuízo apenas por virtude da publicidade a que foram expostos os mesmos factos.
9 - Razões pelas quais se acredita que, com o devido respeito, o Venerando Tribunal de Segunda Instância ao empreender uma incorrecta interpretação dos factos ou ao não os valorizar correctamente, aplicou erradamente a disposição do art.º 21.°, n.º 1, d) do CPAC e, também erradamente, não manteve a aplicação das normas dos art.ºs 279.º, n.º1 e 315.°, n.º 2, o) do ETAPM.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso.
II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
No dia 24 de Agosto de 2007, o Secretário para a Segurança emitiu o seguinte despacho:
“No processo disciplinar n° X/XXXX da Polícia Judiciária, instaurado contra o seu funcionário, A, 1.º Oficial, da carreira administrativa, titular do BIRM XXXXXX(X), melhor identificado nos referidos autos, apuraram-se os seguintes factos:
No dia 9 de Maio de 2004, cerca das 02H20 da madrugada, o arguido fez-se acompanhar de uma mulher identificada como B, até ao [Endereço (1)], a fim de, como haviam previamente combinado, manterem relações sexuais cujo preço foi acordado em MOP$500.00, que o arguido deveria pagar à sua companheira de ocasião. Naquele edifício, o arguido conduziu-a ao patim superior da escadaria, que do 33.° andar dá acesso ao terraço exterior, tendo, em seguida, iniciado um acto sexual consentido, caracterizado pelos incidentes que constam da matéria dada como provada na sentença proferida no processo comum colectivo n.º CR2-04-0230-PCC do Tribunal Judicial de Base, junta aos autos de fls. 165 a 178, e cuja descrição consta do Despacho do Director da Polícia Judiciária de fols. 361-373, o qual se dá por inteiramente reproduzido e aqui integrado.
Da publicidade que veio a ser dada aos factos provadamente praticados pelo arguido, resultou, pese embora a sua absolvição do crime de violação de que fora acusado, um impacto social negativo para a instituição onde exerce funções, a qual, atentas as suas atribuições, tem que estar acima de qualquer suspeição cerca da idoneidade moral, integridade e adequação comportamental dos seus funcionários.
Quem mantém um vínculo laboral com a Polícia Judiciária deve, por dever de cautela pessoal e por dever institucional, cuidar de se abster de condutas que possam pôr em risco a imagem da corporação. Aquilo que poderia constituir facto da estrita vida privada tomou-se em “aberrante” facto público que denegriu a imagem da Polícia Judiciária, não sendo comportável o convívio da instituição com quem a expõe à censura moral dos cidadãos, ou, pelo menos, à suspeição da contaminação do seu “todo” pela predisposição de qualquer dos seus funcionários para idênticas condutas.
A ética do funcionário não se confina aos “muros” do seu local de trabalho e o arguido tem o dever de se abster de comportamentos que potencialmente possam abalar o prestígio e a dignidade institucional da Polícia Judiciária que serve, não devendo olvidar que facilmente o consequente juízo de valor negativo se pode estender a toda a administração pública em geral.
O arguido com a sua conduta violou de forma muito grave o dever de contribuir para o prestígio da administração pública, revelando falta de dignidade e idoneidade moral para o exercício de funções públicas, dever inerente à sua qualidade de funcionário público como decorre do disposto no n.º 1 do art.° 279.° e alínea o) do n.º 2 do art.° 315.°, ambos os normativos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro (ETAPM), e em relação aos quais se constituiu em infracção.
Agrava a conduta do arguido a circunstância da alínea b) do n.º 1 do art.° 283.° daquele Estatuto prejuízo para o serviço público, previsível como consequência dos actos praticados, sendo que milita em seu favor atenuante da alínea a) do art.° 282° do mesmo diploma (10 anos de classificação de serviço BOM).
Ponderada, assim, a gravidade da falta, que é elevada, a culpa que é igualmente grave face ao juízo de censura ético-jurídico gerado pela conduta e, bem assim, as circunstâncias que a atenuam e agravam, aplico ao arguido, A, 1.° Oficial da carreira administrativa da Polícia Judiciária, a pena de Aposentação Compulsiva prevista nos art.°s 300, n.º 1 alínea a) e 304.°, do citado ETAPM, porquanto, sendo inviável a manutenção do arguido em funções públicas se valoriza o facto de o mesmo ter mais de 15 anos de serviço, para efeitos de aposentação, o que faço nos termos da competência que me advém do disposto no artº 322°, do mesmo diploma e da Ordem Executiva n.º 13/2000.
Notifique, anexando ao presente despacho cópia das peças processuais que o integram, designadamente as de fols. 165 a 178 e 361 a 373”.
É este o acto administrativo recorrido.
III – O Direito
1. As questões a apreciar
Está em causa saber se se provaram factos que permitam concluir que houve um impacto social negativo para a Polícia Judiciária dos factos imputados ao funcionário punido disciplinarmente.
2. Matéria de facto. Matéria de direito. Factos notórios. Prova de factos. Circunstância agravante. Produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral.
O acto administrativo, que puniu o funcionário em causa com a pena disciplinar de aposentação compulsiva, fundamentou-se, além do mais, na “... publicidade que veio a ser dada aos factos provadamente praticados pelo arguido, resultou, pese embora a sua absolvição do crime de violação de que fora acusado, um impacto social negativo para a instituição onde exerce funções, a qual, atentas as suas atribuições, tem que estar acima de qualquer suspeição cerca da idoneidade moral, integridade e adequação comportamental dos seus funcionários ...”.
Ora, entendeu o Acórdão recorrido que “... dos autos não resultaram provados quaisquer factos concretos para concluir esse juízo de provocação do impacto social negativo ...” para a Polícia Judiciária, por força dos factos imputados ao funcionário.
Por isso, o Acórdão do TSI entendeu que o acto recorrido, por falta de factos para chegar àquela conclusão no acto punitivo, incorreu em erro nos pressupostos de direito, pelo que anulou tal acto, por vício de violação de lei.
A entidade recorrida impugna tal conclusão, mas com manifesta falta de convicção, limitando-se a dizer que “... é objectiva (resulta da experiência comum) a apetência de tais factos tornados públicos para provocar o prejuízo para a imagem e prestígio da instituição, não carecendo de outros “factos concretos” que a revelem, produzindo-se necessariamente esse prejuízo apenas por virtude da publicidade a que foram expostos os mesmos factos”.
Pois bem, como se sabe, atento o disposto nos artigos 47.º da Lei de Bases da Organização Judiciária (LBOJ) e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), o TUI só conhece de matéria de direito no recurso jurisdicional, no âmbito do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro. Quer isto que não conhece de matéria de facto, que ficou, assim definitivamente estabelecida no Acórdão recorrido, isto é, no Acórdão do TSI proferido nos autos.
Temos, pois, de aceitar que no processo disciplinar não resultaram provados quaisquer factos concretos para concluir esse juízo de provocação do impacto social negativo para a Polícia Judiciária resultante dos factos imputados ao funcionário.
Nem se pode, também, afirmar, como faz a entidade recorrida que resulta da experiência comum a apetência de tais factos para provocar prejuízo para a Instituição onde o mesmo trabalha.
Na verdade, o funcionário não se encontrava no exercício de funções, pelo que o acto é da sua estrita vida privada. Acresce que o acto não decorreu com publicidade. Trata-se, por outro lado, de um funcionário pouco categorizado, do ponto de vista funcional, 1.º oficial do grupo de pessoal administrativo. Não se trata nem do director, nem do subdirector, nem de um inspector chefe.
É evidente que factos da vida privada de um funcionário podem ser objecto de sanção disciplinar.
Por outro lado, a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta, constitui circunstância agravante da responsabilidade disciplinar, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, circunstância essa, aliás, que o acto recorrido invocou.
Agora o que não se pode dizer é que não têm de ser provados os factos que integrem a conclusão de ter havido um impacto social negativo para a instituição, por resultarem da experiência comum. Como é claro, isso depende dos factos, se foram praticados ou não no exercício de funções, e do posicionamento do funcionário na hierarquia e também na sociedade. A menos que se trate de factos notórios.
No caso dos autos não estão em causa factos notórios, no sentido de factos que são do conhecimento geral, e que, como tal, não carecem de alegação nem de prova (artigo 434.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Logo, teria o acto punitivo de ter provado tais factos.
Assim, tendo o Acórdão recorrido considerado que não está provado que tivesse ocorrido impacto social negativo para a Polícia Judiciária, resultante dos factos imputados ao funcionário, sendo que este TUI não tem poder de cognição para sindicar tal julgamento em matéria de facto, não merece censura a conclusão de que o acto recorrido incorreu em vício de violação de lei, que redunda em anulação do mesmo.
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Sem custas.
Macau, 24 de Novembro de 2010.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
2
Processo n.º 62/2010
2
Processo n.º 62/2010