Processo n.º 47/2012 Data do acórdão: 2012-4-26 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– responsabilidade civil de acidente de viação
– enxerto do pedido cível
– art.o 583.o, n.o 1, do Código de Processo Civil
– recurso da decisão civil tomada em sentença penal
– alçada do tribunal
– regra da sucumbência
– art.o 390.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– princípio de adesão
– art.o 60.o do Código de Processo Penal
– art.o 73.o do Código de Processo Penal
– inadmissibilidade do recurso
– acção cível em separado
S U M Á R I O
1. Estando em causa nos presentes autos recursórios a discussão apenas da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, é inadmissível, à luz do art.o 583.o, n.o 1, parte inicial, do Código de Processo Civil, ex vi do ar.o 4.o do Código de Processo Penal, o recurso ordinário interposto pela lesada demandante que pretende a alteração parcial da decisão absolutória civil tomada na sentença absolutória penal do Tribunal Judicial de Base, porquanto o valor económico total da relação material controvertida como tal configurada na petição cível de indemnização então enxertada nos autos não é superior à alçada desse tribunal a quo em matéria civil, ainda que a demandante se sinta prejudicada pela sentença em valor superior à metade dessa alçada.
2. De facto, é de entender, segundo os cânones vertidos no art.o 8.o, n.o 1, do Código Civil, que a norma do n.o 2 do art.o 390.o do Código de Processo Penal, como respeita material e propriamente à consabida regra da sucumbência, não afasta a aplicabilidade da regra da alçada da parte inicial do n.o 1 do art.o 583.o do Código de Processo Civil, pois caso contrário irá haver evidente injustiça processual relativa – não justificável pelo princípio de adesão consagrado no art.o 60.o do Código de Processo Penal nem compaginável com a regra de equivalência de decisões a nível de força do caso julgado a que alude o art.o 73.o do Código de Processo Penal – na questão de alçada do tribunal entre o recurso de decisão proferida em acção cível autónoma ou em separado, e o recurso interposto de decisão cível tomada em sentença penal.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 47/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 274 a 278v dos autos de Processo Comum Singular n.o CR1-10-0396-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), foi decidido absolver a arguida B de um acusado crime negligente de ofensa à integridade física concretamente da sr.a A, e julgar improcedente o pedido de indemnização cível enxertado nesses autos penais por essa ofendida no acidente de viação ocorrido em 12 de Maio de 2009, alegadamente provocado pela arguida.
Inconformada, veio a demandante A interpor recurso ordinário dessa sentença circunscrito à parte decisória civil, para reclamar, através da motivação de fls. 306 a 313 dos presentes autos correspondentes, a indemnização civil no total de MOP25.518,00, não obstante ter peticionado inicialmente o montante total de MOP47.218,00 na petição então apresentada a fls. 103 a 108 dos autos.
Após tramitado no Tribunal a quo, subiu o recurso para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Foi submetida pelo M.mo Juiz Relator à decisão do presente Tribunal ad quem em conferência de hoje, a questão, oficiosamente suscitada em sede de exame preliminar a fl. 379, de eventual inadmissibilidade do recurso atento o montante peticionado.
Cumpre, pois, decidir dessa questão, de acordo com a posição da maioria, nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos juízes-adjuntos em obediência ao art.o 417.o, n.o 1, do Código de Processo Penal vigente (CPP).
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Fluem dos autos os seguintes elementos pertinentes à decisão:
– por sentença proferida nos subjacentes autos de Processo Comum Singular n.o CR1-10-0396-PCS do 1.o Juízo Criminal do TJB, foi decidido absolver, por in dubio pro reo, a arguida B de um acusado crime negligente de ofensa à integridade física concretamente da sr.a A, e julgar improcedente o pedido de indemnização cível enxertado por essa ofendida no acidente de viação de 12 de Maio de 2009, alegadamente provocado pela arguida;
– na petição inicial então apresentada aos autos, pediu a ofendida a condenação da Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A. (como seguradora do veículo automóvel então conduzido pela arguida) e da arguida no pagamento do total indemnizatório de MOP47.218,00 (como soma de seguintes rubricas: MOP6.168,00 de despesas médicas, MOP21.700,00 de percas salariais, MOP4.350,00 de despesas de reparação do seu ciclomotor e MOP15.000,00 de danos morais);
– inconformada com a dita sentença na parte decisória civil, veio a demandante interpor recurso ordinário, para reclamar a indemnização civil no total de MOP25.518,00 (como soma de seguintes rubricas: MOP6.168,00 de despesas médicas, MOP4.350,00 de despesas de reparação do ciclomotor e MOP15.000,00 de danos morais).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Em face dos elementos concretos acima coligidos dos autos, não pode este TSI conhecer do objecto do recurso, por seguintes razões:
– estando em causa nos presentes autos recursórios a discussão apenas da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, é inadmissível (à luz do art.o 583.o, n.o 1, parte inicial, do vigente Código de Processo Civil (CPC), ex vi do ar.o 4.o do CPP) o recurso ordinário ora interposto pela demandante civil que pretende a alteração parcial da acima mencionada decisão absolutória civil da Primeira Instância, porquanto o valor económico total da relação material civil controvertida em causa e como tal configurada na petição cível de indemnização (ao qual se deve atender para determinar a relação desse conflito civil com a alçada do tribunal – cfr. o art.o 247.o, n.os 1 e 2, do CPC) não é superior à alçada do TJB em matéria civil, legalmente fixada em MOP50.000,00 (cfr. maxime o art.o 18.o, n.o 1, da vigente Lei de Bases da Organização Judiciária), ainda que a mesma recorrente se sinta concretamente prejudicada pela sentença em valor superior à metade dessa alçada.
Não é, pois, de tomar conhecimento do objecto do recurso, dada a inadmissibilidade legal do próprio recurso, por motivo atinente à alçada do Tribunal a quo em matéria civil, sendo de entender, à luz dos cânones vertidos no art.o 8.o, n.o 1, do vigente Código Civil, que a norma do n.o 2 do art.o 390.o do CPP, como respeita material e propriamente à consabida regra da sucumbência, não afasta a aplicabilidade da regra da alçada da parte inicial do n.o 1 do art.o 583.o do CPC, pois caso contrário irá haver evidente injustiça processual relativa – não justificável pelo princípio de adesão consagrado no art.o 60.o do CPP nem compaginável com a regra de equivalência de decisões a nível de força do caso julgado a que alude o art.o 73.o do CPP – na questão de alçada do tribunal entre o recurso ordinário interposto de decisão proferida em acção cível autónoma ou em separado, e o recurso interposto de decisão cível tomada em sentença penal.
IV – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em não admitir o recurso.
Custas nesta Segunda Instância por conta da demandante recorrente, com uma UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido a ela na modalidade de dispensa total de pagamento de custas.
Fixam em mil e quinhentas patacas os honorários da Ex.ma Patrona Oficiosa da recorrente, a entrar na regra das custas e a adiantar por ora pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 26 de Abril de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo (Seque declaração)
(Relator do processo)
Processo nº 47/2012
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Vencido.
Nos termos do art. 390°, n.° 2 do C.P.P.M.:
“O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.
Com o douto Acórdão que antecede, e atento o quantum peticionado pela demandante civil, ora recorrente – no pedido inicial, MOP$47.218,00, e agora, no recurso, MOP$25.518,00 – entendeu-se “não tomar conhecimento do objecto do recurso dada a inadmissibilidade legal do próprio recurso, por motivo atinente a alçada do Tribunal a quo em matéria civil, sendo de entender, à luz dos cânones vertidos no art.° 8.°, n.° 1, do vigente Código Civil, que a norma do n.° 2 do art.° 390.° do CPP, como respeita material e propriamente à consabida regra da sucumbência, não afasta a aplicabilidade da regra da alçada da parte inicial do n.° 1 do art.° 583.° do CPC, pois caso contrário irá haver evidente injustiça processual relativa – não justificável pelo princípio de adesão consagrado no art.° 60.° do CPP nem compaginável com a regra de equivalência de decisões a nível de força do caso julgado a que alude o art.° 73.° do CPP – na questão de alçada do tribunal entre o recurso ordinário interposto de decisão proferida em acção cível autónoma ou em separado, e o recurso interposto de decisão cível tomada em sentença penal”.
Como tenho vindo a entender, outra é a decisão que se me afigura adequada, pois que não exigindo o referido art. 390°, n.° 2 que o valor do pedido de indemnização civil enxertado em processo penal seja superior ao da alçada do Tribunal recorrido – no caso tratando-se do T.J.B., de MOP$50.000,00 – constitui apenas pressuposto de admissão do recurso “que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.
Esta a solução que cremos dever ser de adoptar, até porque, atento o estatuído no art. 8° do C.C.M., e a se entender de outro modo, não se alcança da razão de no preceito em questão se não fazer referência à “alçada”, fazendo-se tão só em relação ao “decaimento”, certo sendo que o art. 583° do C.P.C.M. se refere a ambos.
Com efeito, o que é que terá levado o legislador (penal) a “repetir” o pressuposto do “decaimento”, quando ele já constava do processo civil, nada dizendo quanto ao da “alçada”?
Por sua vez, não se pode também olvidar que o C.P.P.M. deu corpo a uma já remota preocupação de independência em relação ao processo civil, estabelecendo uma regulamentação autónoma, e tanto quanto possível, completa.
Daí que, quanto à integração de (eventuais) lacunas, o recurso ao processo civil nos termos do seu art. 4° não tenha a amplitude que se lhe conhecia ao tempo do anterior C.P.P. de 1929.
Ora, isto vale, também, e especialmente, no que toca à matéria dos “recursos”, onde os “recursos em processo penal” passaram a obedecer a princípios próprios, possuindo uma estrutura normativa autónoma, como sem esforço se pode ver da sua regulamentação, ao abrigo dos art°s 389° e segs.
Para além disso, cabe ter também presente que no âmbito do (anterior) C.P.P. 1929 e nos termos do seu art. 646°, n.° 6, o recurso restrito ao pedido civil apenas era admitido “desde que o seu montante exceda a alçada da Relação”.
Nesta conformidade, (e em sintonia com o referido art. 8° do C.C.M.) mostra-se pois de concluir que com a redacção do art. 390°, n.° 2 do C.P.P.M., deixou-se cair o pressuposto da “alçada”, exigindo-se, tão só, que a admissibilidade do recurso quanto ao pedido civil enxertado em processo penal dependesse (apenas) do “decaimento” para o recorrente, “em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.
Aliás, há que não olvidar igualmente que o art. 390° do C.P.P.M., com a epígrafe “Decisões que não admitem recurso”, tem como antecedente o art. 389°, onde se consagra que “é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
E, se no C.P.C.M. se prevê como pressupostos da admissibilidade do recurso o da “alçada” e o do “decaimento”, (cfr., art. 583°), exigindo apenas o art. 390°, n.° 2 do C.P.P.M. o do “decaimento”, motivos não cremos existir para se chamar à colacção o consagrado no C.P.C.M.
É, certamente, compreensível, a observação feita no douto Acórdão que antecede quanto à “injustiça processual relativa”.
Todavia, importa ter presente que nos termos do art. 60° do C.P.P.M., o “princípio da adesão (obrigatória)” tem apenas aplicação para o “pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime”, (e não de “qualquer dano”), e como aí se diz, “só o podendo ser em separado, em acção civil, nos casos previstos na lei”, constituindo, tais situações, a excepção, e não a regra; (cfr., art. 61° do C.P.P.M.).
E, como se escreveu no Assento n.° 1/2002 do S.T.J. de 14.03.2002, (in D.R., I-A, n.° 117, de 21.05.2002, aqui citado como referência doutrinária), “(…)o julgamento no processo penal do pedido de indemnização civil implicará a aplicação a este último das regras do processo penal quanto a recursos, exactamente para obter os resultados de coerência e celeridade processual referidos. São alheias à lógica dos recursos em processo penal as regras de recurso do processo civil que se referem ao valor da acção (…)”.
Corresponde também à verdade que o (equivalente) art. 400° do C.P.P. português foi alterado, introduzindo-se-lhe o pressuposto da “alçada”; (cfr., Lei n.° 59/98, de 25.08, posterior ao nosso Decreto Lei n.° 48/96/M de 02.09 que aprovou o C.P.P.M. ).
Todavia, tal constitui uma opção legislativa (ainda) não tomada pelo legislador local, e, como já dizia Jean Bodin, (in “Les Six Livre de La Republique”, citado por A. Barbras Homem, in “Reflexões sobre o justo e o injusto”), “aos juízes não cabe julgar as leis, mas julgar segundo as leis”.
Por fim, nota-se que a solução que perfilhamos parece também ser a adoptada pelo Vdo T.U.I., pois que no seu Ac. de 17.11.2010, Proc. n.° 54/2010, pronunciando-se sobre a “recorribilidade da decisão sobre o pedido de indemnização civil” enxertado em processo penal, consignou-se que “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil não é admissível se a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal recorrido”, nada se dizendo quanto ao “valor do pedido” ou “alçada”.
Macau, aos 26 de Abril de 2012
José Maria Dias Azedo
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