Processo nº 825/2011 Data: 27.04.2012
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “emissão de cheque sem provisão”.
“Falta de provisão”.
“Conta liquidada” ou “encerrada”.
SUMÁRIO
1. A “falta de provisão” é um conceito normativo e pode ser integrado por quaisquer expressões com o mesmo significado, designadamente “falta ou insuficiência de fundos”, “falta de quantia disponível”, “falta de depósito disponível”, “falta de cobertura”, “conta encerrada, saldada, liquidada ou cancelada”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 825/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B., decidiu-se absolver a arguida A, com os sinais dos autos, da imputada prática de 2 crimes de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.M., condenando-se, porém, a mesma arguida no pagamento de uma indemnização ao assistente e demandante civil B no valor total de H.K.D.$504.500,00 e juros; (cfr., fls. 321 a 321-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o assistente recorreu.
Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“A. São duas as condições de punibilidade do crime de emissão do cheque sem provisão: (i) a apresentação a pagamento no prazo de oito dias contados da emissão e (ii) a certificação no título, pelo banco sacado, do não pagamento por falta ou insuficiência de saldo.
B. In casu, o Tribunal a quo absolveu arguida da prática dos dois crimes de que vinha pronunciada a fls. 236 a 238, por não considerar verificadas as condições de punibilidade do crime de emissão do cheque sem provisão.
C. Tal decisão viola o disposto no art.° 214.°, n.° 1 do Código Penal, dado que a norma incriminadora não impõe que a data de apresentação a pagamento tenha de ser exarada pelo banco sacado no próprio cheque devolvido ao tomador, nem que a falta ou insuficiência de fundos na conta sacada tenha de ser ou só possa ser certificada pelo banco com a aposição no cheque da fórmula sacramental "falta de provisão".
D. Tal data de apresentação a pagamento, caso não tenha sido exarada no título devolvido ao tomador, pode e deve ser provada com o respectivo "Return Cheque Advice" (退票通知書), como sucedeu no caso "sub judice'' a fls. 16 e 19.
E. A tese sustentada na sentença recorrida é, pois, fortemente redutora dos poderes cognitivos do juiz, nesta matéria, o que viola o disposto nos art.° 111.° e 114.°, n.° 1 do CPP.
F. Quanto à fórmula que o banco sacado pode ou deve usar no carimbo aposto no verso do cheque devolvido ao tomador por falta ou insuficiência de provisão para cumprir a ordem de pagamento, o que importa é que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Maio de 1997, CJ, Ano XXVII, tomo III, pg. 144, sendo o cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal, a entidade bancária confirme que a devolução ou recusa de pagamento se deveu a falta ou insuficiência de fundos, falta de quantia disponível, falta de depósito disponível, falta de cobertura, conta encerrada, saldada, liquidada ou cancelada; - enfim, tudo a significar - falta de provisão - que não é mais do que falta de dinheiro suficiente para o pagamento do cheque.
G. É que, não estando o juiz vinculado a qualquer fórmula utilizada pela Banca e, desde que ao cheque (ainda que conjugado com outros elementos de prova) resulte à evidência que o seu não pagamento dentro do prazo legal se deveu à falta ou insuficiência de fundos, falta essa da responsabilidade do emitente do cheque, deve considerar-se verificada a questionada condição objectiva de punibilidade". [acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo 2/2004]
H. Tanto mais que, in casu, à data da emissão do cheque de fls. 15 (n.° 077003) sobre a conta bancária 10215-200052-6 em 23/10/2002, a arguida não a provisionou, nem o fez depois dentro dos oito dias subsequentes com quantia que permitisse o seu pagamento integral, dado tal conta já se encontrar encerrada em 24/10/2002, quando o tomador apresentou o cheque de fls. 15 a pagamento.
I. E encontrando-se a conta bancária 10215-200052-6 já encerrada à data da apresentação a pagamento do cheque de fls. 15 (n.° 077003) em 24/10/2002, ou seja, muito antes da data de emissão (30/11/2002) aposta no cheque de fls. 17 (n.° 077004), apresentado a pagamento também em 24/10/2002 e também devolvido ao tomador com o carimbo de «conta encerrada», tanto basta para que se considere verificada a falta de provisão dos dois cheques em causa.
20. O entendimento subjacente à decisão absolutória afigura-se ainda digno de reparo porque garante a impunidade de quem emite cheques sobre contas encerradas, logo, sem fundos disponíveis, lesando directamente o património dos tomadores com esse comportamento.
J. Tal entendimento viola também o princípio da igualdade previsto no art.° 25.° da Lei Básica da RAEM, já que pressupõe tratamentos diferenciados para situações de facto essencialmente iguais, ou seja, situações de falta ou insuficiência de fundos à disposição do sacador, apenas admitindo a punição dos emitentes dos cheques em cujo verso o banco sacado tenha aposto o carimbo de «falta de provisão», mas já não daqueles que, tendo as contas encerradas, sobre elas continuam a emitir cheques sem que para isso disponham de provisão (fundos disponíveis) no banco sacado, que, naturalmente, os devolve ao tomador, com o carimbo de «conta encerrada».
K. Assim, na esteira dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da RAEM, proferidos por unanimidade nos processos 2/2004 e 492/2007 em 6 de Maio de 2004 e 30 de Abril de 2008, respectivamente, tendo sido emitido um cheque, o qual foi apresentado a pagamento dentro do prazo legal, sendo devolvido com a menção de «conta encerrada», aposta no seu verso pela entidade bancária sacada, tal equivale, para efeitos penais, à verificação de uma recusa de pagamento por falta de provisão - provisão que realmente não existia in casu -, devendo haver-se como preenchida esta condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão.
I. E, sendo esta, precisamente, a situação dos autos, crê-se estarem verificados todas as condições objectivas de punibilidade dos dois crimes de emissão de cheque sem provisão de que a arguida foi pronunciada no caso “sub judice”; (cfr., fls. 327 a 331-v).
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Respondendo diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público:
“1- São as seguintes condições de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão:
1- apresentação a pagamento no prazo legal de 8 dias – a contar do dia que figura no cheque como de emissão.
2- verificação do não pagamento por falta ou insuficiência de provisão. – não basta que o cheque seja apresentado a pagamento no prazo legal, sendo ainda necessário que a verificação da falta de provisão tenha lugar no mesmo prazo.
Estas duas condições objectivas de punibilidade, de verificação simultânea, são insusceptíveis de suprimento por qualquer meio de prova, ou seja, só a prova decorrente da declaração de recusa de pagamento feita por qualquer dos modos previstos no art°. 40° da L.U. vale como meio de prova.
2- Nos presentes autos, não consta a data de apresentação a pagamento e a data de recusa e a falta ou insuficiência de provisão aposta nos referidos dois cheques, efectivamente há falta de condições de punibilidade.
3- Pelo que, é manifestamente improcedente o recurso, pois não se verifica o dito vício”; (cfr., fls. 335 a 338-v).
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Por sua vez, e na sua resposta, pugna também a arguida pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 341 a 343).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Acompanham-se as doutas considerações expendidas pela Exma Colega junto do tribunal “a quo”, as quis demonstram, à saciedade, a falta de razão do recorrente.
Na verdade, pese embora algum sector jurisprudencial venha entendendo que a aposição nos cheques da menção de “conta liquidada” possa equivaler a “insuficiência de fundos”, hão-se, de todo o modo, mostrar-se preenchidas as restantes condições de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão, tais sejam a apresentação a pagamento no prazo de 8 dias a contar da data de emissão e a verificação de não pagamento, nesse mesmo prazo, condições não susceptíveis de suprimento por qualquer outro meio de prova que não pelos previstos no art° 40°, L.U.
Constatando-se que, no caso, apenas foi aposto na face dos dois cheques em questão o carimbo de “conta liquidada”, sem indicação das datas de apresentação a pagamento e de recusa do mesmo, claramente se constata a não ocorrência daquelas condições de punibilidade, pois que os avisos de devolução dos cheques não podem ser tratados como comprovativo das datas de apresentação a pagamento.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entende não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 387 a 388).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Do julgamento efectuado no T.J.B. resultaram provados os factos seguintes:
“No ano de 2002, a arguido A era a titular da licença do “C” sito na Rua Nova à Guia nº 239, rés-do-chão, um stand de carros usados e de venda de acessórios para veículos.
O ofendido B conheceu a arguida através do exercício da actividade de compra e venda de veículo em segunda mão.
Em dia indeterminado de Agosto de 2002, a arguida disse ao ofendido que o “C” tinha problema financeiro e precisava de dinheiro em numerário para resolvê-lo, pedindo ao ofendido que lhe emprestasse um montante no valor de HKD300.000,00. O ofendido emprestou-lho. Após ter recebido o montante, a arguida passou-lhe dois cheques do Banco Luso Internacional como recibo de empréstimo, um dos quais no valor de HKD99.000,00 (nº 054890), com data de apresentação a pagamento de 1 de Setembro de 2002. Outro tinha valor de HKD200.000,00 (nº 077003) e com data de apresentação a pagamento de 23 de Outubro de 2002, perfazendo o valor total de HKD299.000,00. A arguida alegou que ia pagar em numerário o remanescente montante do empréstimo no valor de MOP1.000,00 (vd. a fotocópia do cheque em fls. 13 e o cheque em fls. 15 dos autos).
Em dia indeterminado na última dezena de Agosto do 2002, a arguida disse ao ofendido que o “C” estava a tratar dum negócio maior de compra e venda de acessórios para automóvel e, por isso, necessitou prementemente do capital circulante. A mesma exigiu ao ofendido que lhe emprestasse mais HKD303.500,00 e prometeu ofercer-lhe uma matrícula de carro que permite circular no Interior da China depois de o negócio ser realizado.
Então, mais uma vez o ofendido emprestou-lhe uma quantia no valor de HKD303.500,00, pela qual a arguida passou ao mesmo, como recibo de empréstimo, um cheque do Banco Luso Internacional (nº 0770044) no valor de MOP304.500 (abrangendo a importância deste empréstimo no valor de HKD303.500,00 e o remanescente montante do primeiro cheque emitido no valor de HKD1.000). A data de apresentação para pagamento era 30 de Novembro de 2002 (vd. o cheque em fls. 17 dos autos).
Em 24 de Outubro de 2002, o ofendido apresentou os referidos três cheques a pagamento junto do Banco Luso Internacional, mas foi-lhe dito que a respectiva conta à ordem (102152000526) já foi liquidada. Para comprovar o Banco passou-lhe três avisos de devolução de cheque (vd. fls. 14, 16 e 18 dos autos).
Depois de entrar no Interior da China através do Ponto Fronteiriço das Portas do Cerco em 17 de Outubro de 2002, a arguida deixou de contactar o ofendido, por isso, o ofendido fez denúncia à Polícia Judiciária em 9 de Novembro de 2002.
Neste caso, o ofendido sofreu uma perda no valor de HKD603.500,00.
A arguida agiu livre, voluntaria e conscientemente, emitindo os aludidos cheques e deixando o ofendido apresentá-los ao banco em 24 de Outubro de 2002, apesar de ter conhecimento de que a conta já foi liquidada, dos quais, o cheques que não foram pagos por a conta ser liquidada são: o cheque nº 077003, no valor de HKD200.000,00 e com data de apresentação a pagamento de 23 de Outubro de 2002, não foi pago no prazo de apresentação a pagamento por a conta ser liquidada, e o cheque nº 077004, no valor de HKD304.500,00 e com data de apresentação a pagamento de 30 de Novembro de 2002, não foi pago antes do prazo de apresentação a pagamento por a conta ser liquidada. A conduta da arguida causou ao ofendido uma perda de grande valor.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.
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Os seguintes factos no requerimento de indemnização civil e contestação foram dados como provados:
O valor do cheque nº 077003 que não foi pago era de HKD200.000,00, sendo 23 de Outubro de 2002 o dia de pagamento acordado e 24 de Outubro de 2002 o dia de apresentação a pagamento.
O valor do cheque nº 077004 que não foi pago era de HKD304.500,00, sendo 23 de Novembro de 2002 o dia de pagamento acordado e 24 de Outubro de 2002 o dia de apresentação a pagamento, mais cedo do que a data combinada.
O valor total dos referidos cheques que não foi pago era de HKD504.500,00.
Foram provados também os seguintes factos:
Nos aludidos cheques apenas foi aposto o carimbo de “conta liquidada”, sem indicando o tempo da apresentação dos cheques para pagamento.
Segundo o registo criminal, a arguida não é primária: ○1 Em 21 de Julho de 2006, foi condenada pelo Tribunal na pena de prisão de três meses no processo CR1-04-0034-PCC, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, suspensa na sua execução por dois anos, sob condição de pagar, no prazo de três meses, uma indemnização ao ofendido pelos danos sofridos. ○2 Em 26 de Março de 2009, foi condenada, pelo Tribunal no processo CR1-08-0093-PCC, na pena de prisão de um ano e três meses, pela prática, em 14 de Novembro de 2001, de um crime de destruição de objectos colocados sob o poder público, suspensa na sua execução por dois anos.
A arguida alegou ser administradora de condomínios, auferindo um salário mensal de MOP14.000,00. Tem a seu cargo sete filhos e precisa de cuidar da sogra. Tem o curso complementar do ensino secundário”; (cfr., fls. 308 a 310).
Do direito
3. Vem o assistente recorrer da decisão proferida pelo Colectivo do T.J.B. que absolveu a arguida A, com os sinais dos autos, da imputada prática de 2 crimes de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.M..
Eis o teor da decisão (na parte) recorrida:
“Esta causa envolve apenas os dois cheques bancários de nºs 077003 e 077004 acima referidos.
O artº 214º do Código Penal prevê:
“1.Quem emitir um cheque que, apresentado a pagamento nos termos e no prazo legalmente fixados, não for integralmente pago por falta de provisão é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A pena é a de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias se:
a) O quantitativo sacado for de valor consideravelmente elevado;
b) …
c) …
3. …”
Os elementos constitutivos do crime de emissão de cheque sem provisão: Objectivamente - o autor emitiu o cheque bancário. Há falta ou insuficiência de fundos no banco. Entregou o cheque ao tomador e causou prejuízo patrimonial. Subjectivamente - o conhecimento pelo autor da falta ou insuficiência de fundos na sua conta e da ilicitude da sua conduta aquando da emissão do cheque.
A condição objectiva de punibilidade do referido crime: O cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo legal de 8 dias. O protesto por falta de pagamento, devido à falta ou insuficiência de fundos, deve ser feito no verso ou na folha de alongamento.
A conduta de emissão de cheque sem provisão só pode ser penalmente perseguida quando se encontra verificada a aludida condição objectiva de punibilidade. Esta condição não pode ser complementada por outras provas, devendo ser exposta no protesto.
Embora alguma jurisprudência considere que a “conta liquidada” corresponde à “insuficiência de fundos”, de qualquer maneira, devem ser preenchidos os respectivos elementos constitutivos e condição objectiva de punibilidade antes de poder punir o autor pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
In casu, foi apenas aposto o carimbo de “conta liquidada” na face dos dois cheques mencionados, não sendo indicadas as datas em que o tomador apresentou os cheques para pagamento e foi recusado. Os avisos de devolução de cheque não podem ser tratados como prova das datas de apresentação a pagamento. Tal como disse anteriormente, a data de apresentação a pagamento deve ser escrita no cheque ou na folha de alongamento. Pelo exposto, há falta da condição de punibilidade neste caso, não podendo condenar a arguida pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão.
Nos termos expostos, deve declarar-se improcedente a acusação da prática do crime de emissão de cheque sem provisão contra a arguida.
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Segundo a jurisprudência, é possível que o facto, que foi imputado à arguida, constitua o crime de burla. No entanto, não se provou que a arguida, ao praticar o acto em causa, tinha intenção de obter para si ilegalmente e por meio de erro ou engano o enriquecimento do ofendido. Assim, não se constitui o crime de burla”.
Será de manter o assim entendido?
Sem prejuízo do muito respeito por entendimento diverso, cremos que de sentido negativo deve ser a resposta.
Vejamos.
A decisão ora recorrida entendeu que não se verificavam os imputados crimes de “emissão de cheque sem provisão” dado que provado não ficou que a conta bancária em questão “não tinha provisão”, considerando também insuficiente a matéria provada quanto à “data da apresentação do cheque a pagamento”.
Ora, quanto à “data de apresentação a pagamento”, está provado que o ora assistente apresentou os cheques a pagamento no dia “24.10.2002”.
E, se do julgamento efectuado assim resultou provado, motivos não vislumbramos para não se dar relevo a tal factualidade, extraindo-se as devidas consequências.
Note-se que este T.S.I. também já entende que “o cheque é pagável à vista, considerando-se não escrita qualquer menção em contrário” e que “não obsta à verificação da condição da sua punibilidade a circunstância de o cheque ter sido entregue ao portador e apresentado a pagamento antes da data nele aposta como sendo a da emissão”; (cfr., Ac. de 14.07.2011, Proc. n.° 377/2011).
Por sua vez, e como já decidiu o S.T.J. em Acórdão de fixação de jurisprudência: “a declaração ‘devolvido por conta cancelada’, aposta no verso do cheque pela entidade bancária sacada, equivale, para efeitos penais, à verificação da recusa de pagamento por falta de provisão, pelo que deve haver-se por preenchida esta condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão”; (cfr., Ac. n.° 13/97, de 08.05.1997, Proc. n.° 837/96, in D.R. n.° 138 de 18.06.1997, pág. 2939 e segs.).
De facto, e como se escreveu no Ac. da Relação de Lisboa de 21.05.1997, (in C.J., Ano XXII, T III, pág. 144 e segs.), “não estando o juiz vinculado a qualquer fórmula utilizada pela Banca e, desde que ao cheque (ainda que conjugado com outros elementos de prova) resulte à evidência que o seu não pagamento dentro do prazo legal se deveu à falta ou insuficiência de fundos, falta essa da responsabilidade do emitente do cheque, deve considerar-se verificada a questionada condição objectiva de punibilidade”.
Na verdade, a “falta de provisão” é um conceito normativo e pode ser integrado por quaisquer expressões com o mesmo significado, designadamente “falta ou insuficiência de fundos”, “falta de quantia disponível”, “falta de depósito disponível”, “falta de cobertura”, “conta encerrada, saldada, liquidada ou cancelada”.
Nesta conformidade, há pois que concluir que cometeu a arguida os crimes pelos quais estava acusada, passando-se agora a ver das penas aplicáveis.
Aos crimes em questão cabe a pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias; (cfr., art. 214°, n.° 2, al. a) do C.P.M.).
Atento o art. 64° do C.P.M. e tendo presente os antecedentes criminais da arguida, cremos que adequado não é optar-se por uma pena não privativa da liberdade.
E tendo presente a moldura penal em questão e o estatuído no art. 65° do dito Código, sendo evidente o dolo directo e intenso da arguida, justo e equilibrado se nos mostra a pena de 10 meses de prisão para cada crime, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 15 meses de prisão; (cfr., art. 71° do C.P.M.).
Ponderando ainda no preceituado no art. 48° do C.P.M., e afigurando-se-nos que a mera censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as necessidades da punição, mostra-se de decretar a suspensão da execução de tal pena única de 15 meses de prisão por um período de 3 anos, na condição de, no prazo de 1 ano, proceder a arguida, ao integral e efectivo pagamento da indemnização de MOP$504.500,00 e juros em que foi condenada a pagar ao assistente.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso.
Custas pela arguida em taxa de justiça de 5 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.000,00.
Macau, aos 27 de Abril de 2012
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (vencido parcialmente quanto à fundamentação da decisão do recurso do assistente, decisão essa que subscrevo por seguintes razões:
−1) Tenho defendido em processos penais anteriores congéneres que embora o cheque seja pagável à vista (art.º 1239.º do Código Comercial), a violação pelo portador do cheque do acordo então ajustado com o emitente do cheque acerca da data de apresentação do cheque ao pagamento, como é do foro da relação imediata e pessoal entre esses dois sujeitos da relação cartular, releva efectivamente para afastar o dolo do emitente na prática do crime de emissão de cheque sem provisão, porque tal violação do acordo sobre a data de apresentação do cheque ao pagamento constitui uma excepção que o emitente pode opor ao portador inicial (tomador), até porque o emitente pode sempre vir a honrar o pagamento do cheque através de canalização de fundo suficiente para tal, para a conta do cheque, até antes da data inicialmente acordada para a apresentação do cheque ao pagamento;
−2) Entretanto, se o emitente vir liquidar ou cancelar a conta do cheque depois da emissão do cheque mas antes da data inicialmente acordada com o tomador sobre a apresentação do cheque ao pagamento, ele já tem o inegável dolo de prática do crime de emissão de cheque sem provisão (e mesmo que o tomador venha apresentar o cheque ao pagamento antes da data inicialmente acordada), posto que a liquidação da conta representa a intenção de não honrar o pagamento do cheque).
Proc. 825/2011 Pág. 22
Proc. 825/2011 Pág. 1