ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 23 de Maio de 2012, A, arguida nos presentes autos, foi condenada, pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes p.p. pelo art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 9 (nove) anos e 3 (três) meses de prisão.
Inconformada com a decisão, recorreu a arguida para o Tribunal de Segunda Instância, que negou provimento ao recurso.
Vem agora a arguida recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conforma com as decisões proferidas pelos Tribunais de duas instâncias, entendendo que a droga foi bem escondida.
2. As sandálias e da mala de mão são como quaisquer sandálias e mala de mão normais. Da sua aparência era impossível observar qualquer coisa, até a autoridade alfandegária da Malásia não descobriu a droga.
3. A recorrente trouxe os objectos para Macau conforme instruções de outrem, não sabendo nada da droga escondida neles.
4. Nas matérias de factos provados dos dois Tribunais, não há prova de que a recorrente sabia da droga escondida no interior nos sapatos de salto alto (sic) e na divisão interior da mala de mão.
5. Na matéria de facto provado, manifestou-se que a recorrente sabia bem que a droga estava escondida no interior da mala de mão e das sandálias. No entanto, não se provou que só quando foi interceptada pelos SA de Macau é que soube que os objectos, que lhe foram entregues por B para trazer para Macau, continham droga.
6. Também não se provou a existência de um acordo entre ela e “B” e que os dois agiram em conjugação de esforços, ou de que a recorrente agiu de prévio acordo com a outra parte, dissimulando a droga nos objectos com vista a levá-la para Interior da China.
7. Dos dados constantes nos autos se pode verificar que a droga foi bem escondida que um homem médio não é capaz descobrir.
8. Pelo exposto, a motivação do recurso interposto pela recorrente não contraria a livre convicção do Tribunal a quo. A convicção deve alicerçar-se nos fundamentos factuais e nas regras da experiência
9. É óbvio que a apreciação da prova violou as regras da experiência, padecendo assim do vício previsto no artº 400º, nº 2, al. c) do CPP.
10. Entende a recorrente que a decisão do Tribunal de Segunda Instância também violou as disposições dos artºs 40º, 64º e 65º do CP.
11. O conteúdo de fls. 127 a 151 dos autos transmite uma mensagem de que a recorrente actuou por instigação de alguém.
12. Caso não se acredite no facto de a recorrente ter sido enganada por alguém, deve reconhecer-se o facto de que a mesma apenas prestar o trabalho de transporte neste caso.
13. Neste caso, a recorrente não era autora principal, nem a membro do grupo ou da associação organizada.
14. Só membro do grupo ou da associação organizada é que causa influência negativa à paz social e à saúde pública.
15. Na determinação da medida da pena, deve ter em consideração muitas circunstâncias, tais como antecedentes criminais, grau de culpa, exigências de prevenção criminal, não só apenas considera o peso da droga.
16. Comparando com o caso do mesmo género (que tem os factos criminosos semelhantes), ao autor, que transportou droga de maior quantidade, foi aplicada uma pena mais leve, menos 18 meses em relação à da recorrente.
17. Pelo exposto, existe a violação das regras da experiência e das respectivas normas aquando da determinação da medida da pena.
Respondeu o Ministério público, terminou a sua resposta com as seguintes conclusões:
1. Como sabemos que existirá erro notório na apreciação da prova quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência comum na apreciação da prova, ou seja, verifica-se o referido erro quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
2. Lida a decisão a quo, não se encontram quaisquer factos incompatíveis nos factos provados, nos factos não provados e na conclusão. Também não se verifica, na apreciação das provas e no reconhecimento dos factos, qualquer violação dos critérios da lógica ou das regras da experiência.
3. Tendo considerado a forma de transporte da droga, o peso da droga, as condições pessoais da recorrente e a sua explicação sobre a droga escondida na mala de mão e no calçado que trazia, o Douto Tribunal a quo não adoptou as declarações prestadas em audiência pela recorrente, dando como assento o facto de que a recorrente já tinha sabido da droga dissimulada na divisão interior da mala de mão e do calçado mas trouxe na mesma a droga para Macau, conforme as instruções do indivíduo africano conhecido por “B” e a droga era para posteriormente transportada para Cantão, e por consequência, ficando condenada a recorrente pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas. A referida decisão não violou as regras de experiência.
4. Pelo exposto, não existe na decisão a quo o vício de “erro notório na apreciação da prova”, previsto no art.º 400.º, nº 2, al. c) do CPP.
5. Segundo a recorrente, o Tribunal a quo deveria dar como assento o facto de que ela trouxe a droga sem ter tido conhecimento prévio da substância. Isso é apenas a versão do facto que ela queira ser dada como provada, a qual, no entanto, não impede que o Tribunal chegue a uma conclusão lúcida com base na análise global das provas e nas regras da experiência.
6. Aparentemente, a recorrente está a pôr em questão a livre apreciação das provas do Tribunal através de invocar vícios, o que viola o art.º 114.º do CPP.
7. Segundo os art.ºs 40.º e 65.º do CP, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
8. De acordo com o art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2008, quem cometer o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, pode ser punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.
9. Ao autor do referido delito, não se pode aplicar pena não privativa da liberdade, portanto, é improcedente a alegação da violação do art.º 64.º do CP do Tribunal a quo.
10. Atendendo, à natureza e gravidade do ilícito criminal em apreço, à moldura penal aplicável, ao tipo e à quantidade da droga apreendida, à culpabilidade, às condições pessoais da recorrente, às circunstâncias concretas do caso, bem como as repercussões negativas causadas pelo acto de tráfico de droga à saúde pública e à ordem social, e após sintetizadas as exigências da prevenção penal, entendemos que a pena de 9 anos e 3 meses de prisão aplicada pelo Tribunal a quo à recorrente não é excessivamente elevada, não violando o disposto nos art.ºs 40.º e 65.º do CP.
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.
Foram corridos vistos.
2. Os Factos
Nos autos foram apurados os seguintes factos:
- Em 17 de Junho de 2011, às 10:38 horas, a arguida, que acabou de chegar a Macau por via do voo nº AK50 proveniente de Kuala Lumpur da Malásia, foi interceptada pelo pessoal dos Serviços de Alfândega (SA) na zona de inspecção de bagagens do Aeroporto Internacional de Macau.
- Na zona de inspecção de bagagens do Aeroporto, o pessoal dos SA encontrou dois pares de sandálias de plataforma femininas na sua mala de viagem de tecido que continham no espaço entre as solas e as palmilhas 12 sacos plásticos de cristais amarelos. Além disso, na sua mala de mão de cor de marfim, foram encontrados 4 sacos de papel contidos de pó amarelo-claro (vd. fls. 5 e verso, os objectos apreendidos nºs 1 a 3 em fls. 33 a 35 dos autos).
- Sujeitos a exame laboratorial revelou-se que os cristais amarelos continham “heroína”, substância abrangida na Tabela-A da Lei nº 17/2009, com peso líquido de 464,70 gramas. A análise quantitativa mostrou que a percentagem de “heroína” contida foi de 23,55% num peso de 109,44 gramas. E o pó amarelo-claro continha “heroína”, substância abrangida na Tabela-A da Lei nº 17/2009, com peso líquido de 986,53 gramas. De acordo com a análise quantitativa, a percentagem de “heroína” contida foi de 43,88% num peso de 432,89 gramas.
- A arguida A sabia bem que havia droga nos referidos sapatos de alto salto (sic) e na divisão interior da mala de mão que foi adquirida por si em 16 de Junho de 2011, à noite, numa fracção autónoma para habitação sita em Kuala Lumpur, a um indivíduo africano com identidade não apurada mas conhecida por “B”, para, conforme as instruções deste, serem transportadas para Macau e depois serem entregues em Cantão a um outro indivíduo de identidade não apurada mas conhecida por “C”, em troca de dez mil renminbis de recompensa para ela própria.
- Ademais, os agentes da Polícia Judiciária apreenderam os objectos da arguida que abrangem: um telemóvel, dois cartões telefónicos SIM, dois cartões de memória, uma pilha, dois bilhetes electrónicos de voo, um “boarding pass”, um identificador de bagagem e USD100, RMB 335,2 e MYR70 (vd. objectos apreendidos nº 4 do auto de apreensão em fls. 34 dos autos).
- O referido telemóvel, dinheiro e bilhetes electrónicos de voos são os instrumentos que foram utilizados pela arguida no tráfico de estupefacientes.
- A arguida sabia das características e natureza da droga acima referida.
- A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de realizar os actos mencionados.
- A arguida adquiriu, deteve e transportou a referida droga com o objectivo de fornecer a outrem a fim de obter, ou procurar obter, interesse pecuniário.
- A arguida sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
- A arguida não tem antecedentes criminais em Macau, conforme o registo criminal.
- Declarou que era empregada de serviço pós-venda de automóveis e que já se exonerou antes de ser detida. Mais declarou ter os pais a seu cargo e ter concluído com aproveitamento um curso de bacharelato.
E não foram considerados provados os factos constantes da contestação que não estão em conformidade com os factos provados acima referidos, designadamente:
- Tendo confiança neles, a arguida trouxe os objectos da Malásia para Macau a fim de os levar posteriormente ao Interior da China.
- Só quando foi interceptada pelos SA de Macau é que soube que os objectos, que lhe foram entregues por B para trazer para Macau, continham droga.
- A arguida foi enganada pelos três indivíduos acima mencionados.
- A arguida não sabia que a mala de mão de cor marfim e os dois pares de sandálias de plataforma continham droga.
3. O direito
A recorrente suscitou duas questões, que se prendem, respectivamente, com o vício do erro notório na apreciação da prova e com a medida concreta da pena aplicada.
3.1. Erro notório na apreciação da prova
Alega a recorrente que nos autos não há prova de que ela tinha conhecimento da existência da droga escondida nos sapatos e na divisão interior da mala de mão que trazia consigo, sendo certo que ela trouxe os objectos envolvidos nos autos para Macau conforme instruções de outrem, não sabendo nada da droga escondida neles, e é óbvio que a apreciação da prova feita pelo tribunal violou as regras da experiência, padecendo assim do vício previsto no art.º 400.º n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal de Macau.
Ora, como é sabido, este Tribunal de Última Instância tem entendido que existe erro notório na apreciação da prova “quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores”.1
No caso sub judice, não se nos afigura que está verificada alguma das situações acima referidas que consubstanciam o vício imputado pela recorrente. O que se mostra é a sua discordância relativamente à valoração que o Tribunal fez da prova produzida em audiência de julgamento, pondo em causa a convicção formada pelo Tribunal.
Ora, resulta dos autos que o Tribunal Colectivo de 1.ª instância formou a sua convicção com base na análise conjunta e objectiva das declarações prestadas pela própria recorrente, sujeitas sempre à livre apreciação do julgador, do depoimento das testemunhas, incluindo os agentes dos Serviços de Alfândega que interceptaram a recorrente no Aeroporto Internacional de Macau e os da Polícia Judiciária que fizeram investigação do caso, das provas documentais e dos objectos apreendidos nos autos, tendo decidido não acreditar nas palavras da recorrente que declarou ter sido enganada por indivíduos não identificados nos autos.
Com a fundamentação de facto exposta não se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova, no sentido de erro ostensivo, evidente para qualquer pessoa que examine os factos dados como provados e os meios de prova utilizados.
Improcede manifestamente a questão suscitada.
3.2. Medida concreta da pena
Pretende a recorrente a redução da pena concreta.
Nos termos do art.N 40. n. 1 do Código Penal de Macau, a aplicação de penas visa não só a reintegração do agente na sociedade mas também a protecção de bens jurídicos.
E ao abrigo do art.º 65.º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial, atendendo a todos os elementos pertinentes apurados nos autos, nomeadamente os elencados no na 2 do artigo.
No caso sub judice, o crime pelo qual foi condenada a recorrente é punível com a pena de 3 (três) a 15 (quinze) anos de prisão.
Não resultam dos autos quaisquer circunstâncias que militem a favor da recorrente, com excepção de ser delinquente primária.
A recorrente negou a prática dos factos, declarando ter sido enganada por outrem e não ter conhecimento da existência da droga.
Destaca-se o peso líquido de heroína apreendida nos autos, a intensidade de dolo da recorrente e o alto grau de ilicitude dos factos, revelados pela forma como foi realizado o crime, com todos os passos bem planeados.
A recorrente, sendo residente do interior da R.P.C., deslocou-se à Malásia, donde trouxe a Macau uma quantidade elevada de Heroína, com peso líquido de 542.33 gramas, com destino para Cantão da R.P.C..
Tudo aponta para o dolo intenso da recorrente e a gravidade dos factos ilícitos.
No que tange às finalidades da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, impondo-se prevenir a prática do crime em causa, com carácter transfronteiriço, que põe em risco a saúde pública e a paz social.
Tudo ponderado, não se afigura excessiva a pena de 9 (nove) anos e 3 (três) meses de prisão concretamente aplicada à recorrente.
E tal como tem entendido este Tribunal, “Ao Tribunal de Última Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”2, pelo que se não se estiver perante essas situações, como é no caso vertente, o Tribunal de Última Instância não deve intervir na fixação da dosimetria concreta da pena.
É de concluir pela manifesta improcedência da pretensão da recorrente.
4. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso.
Nos termos do art.º 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal de Macau, é a recorrente condenada a pagar 4 UC.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça fixada em 4 UC.
Macau, 12 de Dezembro de 2012
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 cfr. Ac. do TUI, de 30-1-2003, 15-10-2003 e 11-2-2004, nos processos n.º 18/2002, 16/2003 e 3/2004, entre muitos outros.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 23-1-2008, 19-9-2008, 29-04-2009 e 28-9-2011, nos Processos n.ºs 29/2008, 57/2007, 11/2009 e 35/2011, respectivamente.
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14
Processo n.º 70/2012