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Processo nº 464/2011
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 26 de Abril de 2012

ASSUNTO
- Notificação
- Ocupação do terreno
- Usucapião do terreno sem titularidade registada

SUMÁRIO
- A notificação é uma das formas de publicidade a par da publicação, daí que não é um elemento constitutivo do acto administrativo a notificar. Tem uma função meramente instrumental, ou seja, “é um instrumento de que a Administração se serve para fazer chegar ao destinatário determinado acto administrativo. Portanto, não cria relações jurídicas nem interfere com a validade ou a perfeição do acto”.
- Quer no âmbito do Diploma Legislativo nº 651, de 03/02/1940, quer do Diploma Legislativo nº 1679, de 21/08/1963, quer da Lei nº 6/80/M, de 05/07/1980, a ocupação do terreno é sempre documentada por licença.
- A usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada já não é legalmente permitida face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM, a não ser que o domínio útil do mesmo tenha sido transitado para o regime da propriedade privada antes da entrada em vigor do citado diploma legal
O Relator,
Ho Wai Neng





















Proc. nº 464/2011
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 26 de Abril de 2012
Recorrente: A
Entidade recorrida: O Chefe do Executivo da RAEM

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
A, melhor identificado nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 20/05/2011, pelo qual se determinou a desocupação, no prazo máximo de 30 dias, do terreno situado junto ao poste de iluminação nº 907B09 da Estrada de Nossa Senhora de XX, em Coloane, com demolição da construção aí edificada e remoção dos objectos, materiais e equipamentos nela existentes, bem como a entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito de indemnização, com os fundamentos seguintes:
1. Recorre-se do despacho de S. Exa. o Chefe do Executivo de 20/05/2011, inserto em edital publicado em 1 de Junho de 2011;
2. O recurso é tempestivo;
3. A notificação pessoal devia ter sido feita ao Recorrente e não tendo sido realizada, ainda que se considere que o acto recorrido seja objectivamente eficaz, ele não se projecta desde logo na esfera juridica do seu destinatário e não lhe é oponivel nem passiveI de execução.
4. Sendo que - nesta situação - o Recorrente não lhe deve obediência e não tem de acatar o acto recorrido que está carecido de eficácia subjectiva externa.
5. Violou o acto recorrido, para além dos preceitos legais supra referidos, os artigos 5°, 8°, 9°, 11 ° e 72°, todos do CPA e carece esse acto de eficácia e executariedade por culpa exclusiva da Entidade Recorrida em virtude da omissão de formalidades essenciais impostas pelo legislador.
6. Não tendo sido notificado pela devida forma, o acto recorrido não é eficaz externamente, nem oponivel ao Recorrente, e não o sendo, ; não poderá de imediato ser executado nos termos do artigo 136°, n.ºs 1 e 2 do CPA - o que se requer que seja aqui declarado.
7. Incumbe ao Tribunal - verificada a falta de notificação pessoal - decidir que o acto recorrido carece de eficácia e executariedade por culpa exclusiva da Entidade Recorrida, por omissão de formalidades essenciais impostas pelo legislador, devendo ser declarado que o Recorrente ainda não se encontra notificado para os devidos efeitos legais, nomeadamente, para defesa atempada dos seus direitos e interesses legais.
8. O despacho é anulável, por violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
9. Salvo o devido respeito, o despacho ignora ostensivamente a posse do Recorrente e dos seus antecessores sobre o terreno em causa - facto que, aliás, não só é notório, como é comum aos demais possuidores de terrenos, na Ilha de Coloane, em situações identicas;
10. O que se traduz em violação de lei, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários (art.º 21° n° 1, al. d) do CPCA).
11. O Recorrente irá intentar acção judicial em que pedirá a aquisição do terreno por usucapião ou, em alternativa, a aquisição do mesmo por acessão industrial imobiliária.
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Regularmente citada, a entidade recorrida contestou nos termos constantes a fls. 34 a 45 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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O recorrente apresentou alegações facultativas, mantendo, no essencial, a posição já tomada na petição inicial.
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O Ministério Público é de parecer da improcedência do recurso, a saber:
“Na petição e nas alegações, o recorrente tomou a posição de que o despacho recorrido é anulável, “por violação de lei, por erro nos pressu-postos de facto e de direito, já que se trata de erro manifesto e de uma to-tal desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.”
Para fundamentar o pedido da anulação, invoca que esse despacho ignorava ostensivamente a posse dele e dos seus antecessores sobre o terreno em causa – facto que não só é notório, como é comum aos de-mais possuidores de terrenos, na Ilha de Coloane, em situações idênticas.
Exarado na Informação n.º 2461/DURDEP/2011 por Sua Exª. Chefe do Executivo (doc. de fls. 117 a 121 do P.A.), o acto in questio traduz em concor-dar as Propostas (19. 建議) aí formuladas, determinando a desocupação do terreno ali identificado no prazo de 30 dias (命令佔用人/利害關係人須在告示刊登日起計三十日內,騰空上述地塊,拆卸和遷離土地上的潛建物,移走其上存有的所有物件、物料及設備,并將土地歸還澳門特別行政區政府,而無權取得任何賠償。).
Sem prejuízo do respeito pelo entendimento diferente, opinamos que não merece provimento o recurso em apreço.
Nos acórdãos decretados nos Processos n.º 316/2004, n.º 323/2005 e n.º 37/2009, o TSI reitera afirmando que: No novo quadro constitucional ope-rado a partir da entrada em vigor da Lei Básica que prevê, no artigo 7º, que todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, com excepção dos que integram o domínio privado pertencente aos particulares, deixa de ser possível a aquisição por usucapião do domínio útil a que se refere o artigo 5º, n.º 4 da Lei de Terras ou a sua constituição por qualquer outra forma.
Tendo procedido doutamente à arrumação das jurisprudências per-tinentes, o sumário n.º 10 do Acórdão proferido no Processo n.º 625/2011 enunciou: No âmbito do CC66, bem como no de 99 - ....., embora exista o decurso do tempo indispensável, se não ocorre um invocação (....), anterior à Lei Básica, de modo a ter-se o direito por reconhecido, não é possível declarar que o direito real, seja de propriedade stricto sensu, seja de domínio útil, se mostra re-conhecido.
Por sua vez, o Alto TUI consolida a tese de que de acordo com o art.7º da Lei Básica, o direito de propriedade de terreno, na posse de par-ticulares e não reconhecido como propriedade privada até ao estabeleci-mento da RAEM, não pode ser adquirido por usucapião. (Acórdãos nos Proces-sos n.º 32/2005, n.º 17/2010 e n.º 71/2010)
Ainda inculca propositadamente:
Se a acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos fosse proposta por interessados apenas depois do estabelecimento da Região, os seus pedidos estariam manifestamente em desconformidade com o art.º 7.º da Lei Básica, por força do qual todos os terrenos não reconhecidos como de proprieda-de privada até ao estabelecimento da Região passam, a partir deste, a integrar na propriedade do Estado.
Mesmo que a acção tenha sido instaurada antes do estabelecimento da Região, os referidos pedidos também não podem proceder se não houver senten-ça transitada até ao momento do estabelecimento da Região, pois os pedidos de interessados violam a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
Os tribunais não podem proferir sentença de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre os terrenos, em desobediência ao disposto no art.º 7.º da Lei Básica, após o estabelecimento da Região, ou seja, a partir da entrada em vigor da Lei Básica.
No caso sub judice, é inquestionável que a dita «posse» nunca foi invocada, nem sequer judicialmente reconhecida anteriormente ao esta-belecimento da RAEM, pelo que não detém a virtualidade de legitimar a ocupação pelo recorrente do terreno referido no despacho recorrido.
Nesta medida, não se vislumbra nenhum dos vícios invocados pelo recorrente, quais são a violação de lei, o erro manifesto nos pressupostos de facto e de direito, e ainda a total desrazoabilidade no exercício de po-deres discricionários.
Por todo o exposto, pugnamos pela improcedência do presente recurso contencioso.”
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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O Tribunal é o competente.
As partes possuem personalidade e capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II – Factos
É assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
1. O recorrente desde o seu nascimento até agora é residente de XX na Ilha de Coloane, vivendo unido de facto com Liang Iong Hao.
2. Em 2009, o recorrente mandou construir no terreno situado junto ao poste de iluminação nº XX da Estrada de Nossa Senhora de XX, em Coloane, uma obra em estrutura de betão, conforme demonstrada pela foto constante de fls. 4 e 5 do PA, em substituição da antiga casa rural.
3. O recorrente não possui qualquer licença para ocupar ou utilizar o terreno em causa.
4. A construção da casa não foi autorizada por entidade competente.
5. Em 02/04/2009, foi determinado o embargo da obra pela DSSOPT.
6. Contudo, a obra continuou até à fase final, conforme se pode evidenciar pelas fotos constantes de fls. 116 e 184 do PA.
7. De acordo com a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, em 08/09/2010, sobre o terreno em referência não se encontra registado o direito de propriedade privada ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, aforamento ou arrrendamento (fls. 74 do PA).
8. Em consequência, foi instaurado o procedimento administrativo de desocupação e restituição do terreno.
9. Em 28/03/2011, o recorrente interveio como interessado directo (cfr. fls. 101 a 115 do PA), através do seu mandatário forense, na instrução do processo (audiência do interessado).
10. Por despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 20/05/2011, foi determinade a desocupação, no prazo máximo de 30 dias, do terreno em referência, com demolição da construção aí edificada e remoção dos objectos, materiais e equipamentos nela existentes, bem como a entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito a indemnização.
11. Em 14/03/2011, procedeu-se à notificação através de publicacão de edital do despacho supra ao recorrente e demais interessados desconhecidos.
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III – Fundamentos
I. Do pedido da declaração da ineficácia do acto recorrido:
Para o recorrente, o acto recorrido não é eficaz nem lhe é oponível, já que a lei (artº 72º, nº 1 do CPA) exige que a notificação do acto deve ser feita pessoalmente e a notificação edital só tem lugar quando a notificação pessoal se revela impossível, ou os interessados a notificar forem desconhecidos ou em número tal que inviabilize a notificação pessoal (nº 2 do citado artº 72º).
Em consequência, pede que seja declarada a ineficácia do acto.
Quid iuris?
A notificação é uma das formas de publicidade a par da publicação, daí que não é um elemento constitutivo do acto administrativo a notificar. Ela tem uma função meramente instrumental, ou seja, “é um instrumento de que a Administração se serve para fazer chegar ao destinatário determinado acto administrativo. Portanto, não cria relações jurídicas nem interfere com a validade ou a perfeição do acto1”.
É certo que a notificação além da sua função informativa, tem ainda a função da atribuição de eficácia ao acto, funcionando como um acto integrativo de eficácia.
Contudo, não é em sede do recurso contencioso que se discute se o acto recorrido é ou não eficaz.
Pois, como é sabido, o recurso contencioso é de mera legalidade e tem por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica (cfr. artº 20º do CPAC).
Nesta conformidade, o pedido da declaração da ineficácia do acto formulado pelo recorrente nunca pode proceder, por estar fora do âmbito da natureza e finalidade do recurso contencioso.
De qualquer forma e sem prejuízo do acima expandido, entendemos que para o caso em apreço, a Administração deveria proceder primeiro à notificação pessoal do acto recorrido e só quando esta se revela impossível é que procede à notificação edital, visto que o ora recorrente já interveio como interessado directo (cfr. fls. 101 a 115 do PA), através do seu mandatário forense, na fase de instrução do processo (audiência do interessado), ou seja, a Administração já possuía a sua identificação e os meios de contacto naquele momento, não tendo portanto qualquer razão para não proceder à sua notificação pessoal.
Apesar de a Administração não ter procedido de forma correcta à notificação do acto recorrido, não significa que a eficácia do mesmo dependa duma nova notificação regular.
Dispõe a al. b) do nº 2 do artº 69º do CPA que “é dispensada a notificação dos actos quando o interessado, através de qualquer intervenção no procedimento, revele perfeito conhecimento do conteúdo dos actos em causa”, que é o caso.
Pois, com a notificação edital e pela petição do presente recurso contencioso, evidencia, sem qualquer margem de dúvida, que o recorrente tomou perfeito conhecimento do conteúdo do acto recorrido e exerceu a defesa dos seus direitos e interesses.
Improcede, assim, este argumento do recurso.
II. Do mérito da causa:
Na óptica do recorrente, o acto recorrido é anulável, por violação da lei e por erro nos pressupostos de facto e de direito, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Mas não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, não foi feita prova da existência da licença da ocupação do terreno a favor da recorrente, já que quer no âmbito do Diploma Legislativo nº 651, de 03/02/1940, quer do Diploma Legislativo nº 1679, de 21/08/1963, quer da Lei nº 6/80/M, de 05/07/1980, a ocupação do terreno é sempre documentada por licença.
Nos termos da Lei de Terras (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho), os terrenos de Macau são classificados como terrenos do domínio público do Território (hoje RAEM), terrenos do seu domínio privado e terrenos de propriedade privada, e apenas os últimos são passíveis de aquisição por usucapião.
Dispõe o artº 5º da citada Lei de Terras, na nova redacção dada pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, que:
Artigo 5.º
(Propriedade privada)
1. Consideram-se sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público.
2. O Governo procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade privada, confinem com o domínio público.
3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
Como é sabido, é pacífica e unânime na jurisprudência da RAEM que após a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada já não é legalmente permitida face ao disposto do artº 7º do citado diploma legal, a não ser que o domínio útil do mesmo tenha transitado para o regime da propriedade privada antes da entrada em vigor do citado diploma legal (cfr. Acórdão do TUI, de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007).
No caso em apreço, como não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter sido integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.
Não tendo a recorrente qualquer título legítimo para ocupar o terreno em referência, nem havendo possibilidade legal da aquisição por usucapião, quer da propriedade, quer apenas do domínio útil do terreno, é inevitável a sua desocupação e restituição ao Governo da RAEM.
Não há, portanto, qualquer desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Aliás, o que está em causa nem é o exercício de um poder discricionário, mas sim de um acto vinculado.
Assim, o presente recurso contencioso não deixa de se julgar improcedente.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao presente recurso contencioso, mantendo o acto recorrido.
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Custas pelo recorrente, com 8UC de taxa de justiça.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 26 de Abril de 2012.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong

Estive Presente
Mai Man Ieng
1 CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE MACAU, ANOTADO E COMENTADO, Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho, pág. 412.
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