打印全文
Processo n.º 75/2012
(Recurso Cível )

Data : 7/Junho/2012


ASSUNTOS:
    
    - Ampliação da base instrutória
    - Impugnação de paternidade
    - Apuramento de um facto alegado essencial para o desfecho da acção em termos da pretensão colocada na acção


SUMÁRIO:
    
    1. O artigo 553.° do Código do Processo Civil comete ao juiz que preside à audiência o encargo de providenciar, até ao encerramento da discussão, pela ampliação da base instrutória da causa, adentro dos limites consentidos pelo princípio do dispositivo proclamado no artigo 5. ° - cfr. n.ºs 1 e 2, alínea f).
  
     2. Assim, se em acção de impugnação de paternidade, o Ministério Público alegou que os menores foram registados como filhos do réu perfilhante e que este não é o seu pai biológico e avançou ainda com um acervo factual explicativo das circunstâncias e razões que estiveram na base da perfilhação desconforme à verdade biológica, não obstante esse facto não ter sido depurado no saneador - que o réu não é o pai biológico das crianças - , deve se aditado e investigado, não devendo por isso deixar de se prosseguir a justiça material do caso concreto.


O Relator,

              
              (João Gil de Oliveira)










Processo n.º 75/2012
(Recurso Cível)
Data: 7/Junho/2012

Recorrentes: A (menor) e B (menor)
(representados pelo M.P.)

Recorrido: C

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO

A (menor) e B (menor), representados pelo M.P., inconformados com a sentença que julgou improcedente a acção de impugnação de paternidade interposta contra C, todos eles mais bem identificados nos autos, vêm dela interpor recurso, alegando fundamentalmente e em síntese:
    1. Na acção de impugnação da paternidade dos menores A e B, que o Ministério Público intentou contra C, foi alegado que este, apesar de pai registral, não é pai biológico dos menores.
    2. Este facto, essencial ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não consta da matéria de facto seleccionada no despacho saneador, não estando entre os factos assentes, nem tendo sido levado à base instrutória.
    3. Tal omissão impunha a ampliação da base instrutória em sede de audiência de discussão e julgamento, sob pena de insuficiência da matéria de facto, ampliação que não foi feita.
    4. A decisão sobre a matéria de facto padece, pois, de insuficiência, repercutível na sentença recorrida, por não constituir base bastante para uma decisão de direito respaldada na verdade e na justiça.
    5. Houve violação dos artigos 6.°, n.º 3, e 553.°, n.º 2, alínea f), do Código do Processo Civil.
    6. Deve, no provimento do recurso, revogar-se a decisão recorrida e anular-se o julgamento relativo à matéria de facto, para possibilitar aquela ampliação, mediante formulação de novo quesito indispensável à justa decisão da causa, com o que se fará justiça.
    
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    “Da Matéria de Facto Assente:
    - A, de sexo masculino, nasceu em Macau a 12 de Junho de 1999 (alínea A) dos factos).
    - B, de sexo feminino, nasceu em Macau a 14 de Outubro de 2000 (alínea B) dos factos).
    - Relativamente a A e B está inscrito na Conservatória do Registo de Nascimentos que são filhos de C e de Ng lok Lan (alínea C) dos factos).
    - A paternidade foi estabelecida pela perfilhação na Conservatória do Registo de Nascimentos respectivamente a 25 de Junho de 1999 e 14 de Novembro de 2000 (alínea D) dos factos).
    - D, casou-se civilmente com E, filho de C, na aldeia de Gu Jing da cidade de Xin Hui da província de Guongdong da china a 15 de Outubro de 1998 (alínea E) dos factos).”

    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se o Presidente do Colectivo, em sede de julgamento, devia ou não ter apurado um facto que fora alegado e se mostrava crucial para a definição do direito e desfecho da acção, isto é para o afastamento do vínculo de filiação estabelecido entre os menores e o réu C, por via da perfilhação por si feita, na exacta medida em que o mesmo não é o pai biológico daqueles menores, matéria que foi acertada e oportunamente alegada no artigo 5º da p.i.
    
    2. Face aos factos que vêm provados a argumentação da Mma Juíza mostra-se irrepreensível, tal como vertida foi nos seguintes termos:
    “Pela presente acção vem o Ministério Público, em representação dos menores A e B, impugnar a paternidade estabelecida entre estes e o Réu.
    Para o efeito, alega que os menores nasceram em Macau e foram registados como sendo filhos do Réu porque este os perfilhou na então Conservatória do Registo de Nascimento não sendo, no entanto, o Réu pai biológico dos mesmos. Além disso, o Ministério Público alegou que, à data do nascimento dos menores, a mãe dos mesmos era casada com um terceiro.
    Contestando a acção, vem o Réu reconhecer que perfilhou os menores e que a mãe dos menores era casada à data do nascimento dos mesmos. No entanto, defende que a mãe dos menores veio residir a Macau depois do casamento, que o Réu manteve relações sexuais com a mesma desde meados de 1998 enquanto que, durante vários meses antes do nascimento dos menores, o marido da mãe esteve ausente de Macau.
    Nos termos do artigo 1710° do CC, "A perfilhação que não corresponde à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado."
    Flui da norma transcrita que a impugnação feita nestes autos só pode proceder se se provar a seguinte matéria alegada pelo Ministério Público: que houve perfilhação dos menores pelo Réu e que tal perfilhação não corresponde à verdade porque o Réu não é pai dos menores.
    Vejamos, então, se esses factos constam da matéria assente.
    No que concerne à perfilhação, ficou assente que, pouco depois do nascimento dos menores, o Réu os perfilhou na então Conservatória do Registo de Nascimento. Aliás, da exposição feita vê-se que não se trata de um facto controvertido.
    O mesmo já não acontece com o facto "o Réu não é pai biológico dos menores" impugnado pelo Réu. Anote-se, porém, que esse facto não consta da matéria provada não porque o tribunal colectivo o deu como não provado mas sim porque não teve oportunidade de se pronunciar sobre o mesmo. Com efeito, tal facto não foi levado à base instrutória aquando da selecção da matéria de facto.
    Pelo que, por não estar presente um dos factos essenciais para a procedência da presente acção, nada resta senão julgá-la improcedente.
*
    Estando também assente que, à data do nascimento dos menores, a mãe destes era casada com um terceiro, coloca-se a questão de saber se este facto pode levar ao afastamento da perfilhação feita pelo Réu.
    Segundo o regime de estabelecimento de paternidade vigente em Macau, a presunção de paternidade a favor do marido da mãe prevalece sobre as restantes formas de estabelecimento desta relação (cfr. artigos 1685°, n.° 1, e l701º do CC). Tendo os menores nascido na constância do casamento da mãe, em princípio, deve-se considerar o marido desta como pai dos mesmos o que afasta a perfilhação feita pelo Réu.
    No entanto, convém não perder de vista que consta dos autos que o marido da mãe dos menores é residente do interior da China. Assim, por força do disposto no artigo 54° do CC, a lei do interior da China é competente para reger o estabelecimento da relação paterno-filial entre os menores e o marido da mãe destes a qual não prevê qualquer presunção de paternidade a favor do marido da mãe dos menores.
    Nessa medida, a perfilhação feita pelo Réu não pode ser afastada pelo simples facto de os menores terem nascido na constância do casamento da mãe com um terceiro.”
    
    3. O ponto está em saber se da sentença não deviam constar outros factos que devessem ter sido oficiosamente apurados pelo Tribunal.
    O Ministério Público propôs acção de impugnação da paternidade dos menores A e B, melhor identificados nos autos, fundamentando-a na factualidade que articulou na respectiva petição inicial.
    No articulado inicial, o Ministério Público alegou que os menores A e B foram registados como filhos do R. C, que este não é o seu pai biológico, e avançou um acervo factual explicativo das circunstâncias e razões que estiveram na base da perfilhação desconforme à verdade biológica.
    Entre o mais, alegou que os menores estão registados como filhos de Ng Kuok Kei e que este não é o seu pai biológico - artigos 3.° e 5.°, não obstante a perfilhação por ele operada em 25 de Junho de 1999 na CRN (Conservatória dos Registos de Nascimentos) - art. 4º.
    Tendo o processo seguido os seus normais trâmites, instruída e discutida a causa, veio a ser proferida a douta sentença agora em recurso, que julgou a acção improcedente, absolvendo o R. do pedido, a partir de matéria de facto manifestamente insuficiente para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

    4. Acontece que na selecção da matéria de facto pertinente ao litígio o Mmo Juiz não seleccionou toda a factualidade que interessava para a decisão da causa, segundo as várias perspectivas de solução possíveis, pois não incluiu na matéria assente, nem levou à base instrutória, a alegada inverdade biológica da paternidade registral.
    Bem se sabe que um facto negativo não deve em regra ser quesitado, a não ser nos casos em que ele é pressuposto do direito invocado, como é o caso na situação presente. O direito invocado corresponde à impugnação da paternidade estabelecida em inverdade e desconformidade à realidade naturalística.
    Trata-se, aliás, de um facto que com os modernos meios científicos ao dispor dos interessados e dos Tribunais, referimo-nos aos exames de DNA que com um altíssimo grau de probabilidade afastam ou confirmam a paternidade, para além de todos os outros meios probatórios legalmente admissíveis, não deixa de poder ser demonstrável qua tale.
    Deixou, assim, o saneador de fora um facto essencial e imprescindível à boa decisão da causa.
    Sendo ele essencial e imprescindível, não obstante não ter sido seleccionado, nem objecto de oportuna reclamação, falha que o Ministério Público mui louvavelmente admite - e só a inteligência reconhece o erro -, o facto é que a lei processual não faz redundar em fracasso ou improcedência a pretensão legítima, por meras razões formais, quando ela puder ser assegurada dentro da margem concedida ao Tribunal para indagar os factos alegados que se mostrem pertinentes.
    
    5. Na verdade, a insuficiência da matéria de facto seleccionada em sede de saneamento não deve ser susceptível de afectar de forma necessariamente irremediável o desfecho da acção.
    Assim, o artigo 553.° do Código do Processo Civil comete ao juiz que preside à audiência o encargo de providenciar, até ao encerramento da discussão, pela ampliação da base instrutória da causa, adentro dos limites consentidos pelo princípio do dispositivo proclamado no artigo 5. ° - cfr. n.ºs 1 e 2, alínea f).
    Como bem diz o recorrente, vistas as coisas à luz do artigo 6.°, n.º 3, do Código do Processo Civil, trata-se inquestionavelmente de um poder-dever, que o juiz está vinculado a exercitar sempre que a matéria de facto seleccionada se apresente insuficiente em termos que comprometam a justa decisão da causa.
    Perante isto, somos a concluir que Mmo Juiz Presidente não fez uso daquele poder-dever, como se lhe impunha, pelo que a discussão da matéria de facto se restringiu à base instrutória oportunamente fixada, que, como se viu, era deficitária, na medida em que importaria apurar se o réu perfilhante não era realmente o pai das crianças.
    
    6. A sentença recorrida padece, assim, necessariamente, da apontada insuficiência factual e tratando-se de uma insuficiência ainda processualmente suprível, nos termos vistos, importa decidir no sentido do apuramento dessa factualidade, impondo-se a anulação do julgamento relativo à matéria de facto para possibilitar aquela ampliação - artigo 629.°, n.º 4, do Código do Processo Civil.
    Deve, pois, repetir-se o julgamento, fazendo incluir na matéria de facto a apurar um quesito correspondente à matéria alegada no artigo 5º da petição inicial.
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em anular o julgamento para inclusão e apuramento do referido facto integrante do afastamento da paternidade estabelecida.
    Sem custas por não serem devidas.
                Macau, 7 de Junho de 2012,
                João A. G. Gil de Oliveira
                Ho Wai Neng
                José Cândido de Pinho
75/2012 1/11