Proc. nº 98/2012
Recurso civil e laboral
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Junho de 2012
Descritores:
-Recurso Jurisdicional
-Objecto
-Conclusões
SUMÁRIO:
I- A delimitação objectiva de um recurso jurisdicional afere-se pelas conclusões das alegações respectivas (art. 589º, nº3, do CPC).
II- As conclusões funcionam como condição da actividade do tribunal “ad quem” num recurso jurisdicional que tem por objecto a sentença e à qual se imputam vícios próprios ou erros de julgamento.
III- Assim, se as alegações e respectivas conclusões visam sindicar algo que não foi sequer discutido, nem decidido na 1ª instância, o recurso terá que ser julgado improvido.
Processo nº 98/2012
(Recurso cível e laboral)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, solteira, titular do BIRP nº XXX, com os demais sinais do s autos, moveu acção de processo comum de trabalho contra STDM, pedindo a condenação desta no pagamento da importância de Mop$ 295.935,00 e juros respectivos relativos a indemnização pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios e licença de maternidade.
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Na sua contestação, a ré, inter alia, invocou a prescrição. Defendeu-se ainda por impugnação nos termos que aqui damos por reproduzidos.
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O despacho saneador julgou prescritos os créditos laborais reclamados anteriores a 13 de Julho de 1990.
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Prosseguiram os autos os seus trâmites normais, vindo na oportunidade a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a STDM a pagar à autora a quantia de Mop$ 2.396,45 e juros legais.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a autora concluiu:
«I. Nos termos do 33º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, o trabalhador não pode ceder créditos laborais, excepto quando seja em seu próprio benefício.
II. A Autora ao passar um recibo de quitação em favor da STDM (a fls.), meramente declarou que recebeu doze mil patacas, não podendo consubstanciar um contrato de remissão de créditos porquanto, ao tempo, as partes desconheciam o quantum indemnizatório.
III. Nos termos gerais do direito, só há contrato em havendo vontade livre e esclarecida o que, patentemente, inexistia no que à parte cognoscitiva diz respeito: Pois que tanto para a A., corno para a Ré, o quantum indemnizatório era completamente desconhecido.
IV. O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, considerando improcedente a acção por considerar que a A. cedera os seus créditos à STDM, violou 33º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
V. Pois que, salvo o devido respeito, tal entendimento é incorrecto, e a interpretação justa do 33º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril é, pura e simplesmente, a literal, ou seja:
O trabalhador não pode ceder a qualquer título um crédito laboral exceptuando quando o faça em seu benefício, ou seja, quando o faça em favor do Fundo do qual irá beneficiar no futuro.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, se requer a V. Excelências se dignem considera procedente o presente recurso e, assim, substituir a sentença recorrida por outra onde se condene a Recorrida a pagar a quantia peticionada fazendo, assim, a habitual JUSTIÇA!».
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A STDM respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«1. A Recorrente baseia as alegações do seu recurso num “recibo passado pela Autora em troca de doze mil patacas”;
2. No entanto, não existe qualquer recibo neste processo, nem mesmo a declaração assinada pelo trabalhador que em outros processos interpostos contra a aqui Recorrida é considerada remissiva dos eventuais créditos relativos a compensações por trabalho prestado em dias de descanso;
3. Tal matéria nunca foi chamada ao processo por qualquer das partes nem por qualquer das instâncias, como resulta da análise quer da matéria assente, quer da base instrutória;
4. Nestes termos, deverá o presente recurso ser considerado, sem mais, como totalmente improcedente;
5. Assim, perante a questão de direito colocada pela Recorrente, sendo esta a de se saber se a Autora, ao passar um recibo de quitação em favor da STDM, que não passou, tal como resulta da matéria assente e da resposta à base instrutória, cedeu, ou não, créditos, e, caso tenha cedido. se essa cessão é válida nos termos do artigo 33.º do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril;
6. Salvo o mais douto entendimento deste Tribunal, entende a Recorrida que a segunda parte da questão fica desde logo prejudicada pela resposta negativa à primeira, ou seja, não existe qualquer recibo ou declaração passado ou assinado pela Autora, como supra exposto;
7. No entendimento da Recorrida, para além da questão relativa à inexistência do recibo, ou declaração, coloca-se a questão de saber se, hipoteticamente, os créditos aqui tratados são salário, para efeitos de aplicação do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril;
8. Entende a Recorrida que o preceito em questão não tem aplicabilidade no caso dos presentes autos, porquanto o mesmo refere-se a valores resultantes de créditos ao salário e não a valores resultantes de eventuais compensações por trabalho prestado em dias de descanso;
9. Esta posição da Recorrida tem, inclusivamente, acolhimento neste douto Tribunal de recurso».
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Durante a relação mantida com a R., a A. deu à luz um filho em 26/11/1991, o XXX. (al. A dos factos provados)
O gozo de dias de descanso por parte da A. não correspondia a qualquer rendimento. (al. B dos factos provados)
As gorjetas eram distribuídas pela Ré. (al. C dos factos provados)
A A. manteve uma relação com a R., desde 1984 a qual cessou em Junho de 1994. (resposta ao ponto 1º da base instrutória)
Dessa relação, o A. recebia um rendimento composto por uma parte fixa e outra variável. (resposta ao ponto 2º da base instrutória)
O rendimento variável era constituída pelas gorjetas dadas pelos clientes da R.. (resposta ao ponto 3º da base instrutória)
A parte fixa era de MOP$ 4,10 por dia, a partir de 1 de Julho de 1989 até à 31 de Agosto de 1994. (resposta ao ponto 4º da base instrutória)
A Ré sempre entregou as gorjetas de dez a dez dias à A. (resposta ao ponto 5º da base instrutória)
A contabilização das gorjetas eram feita exclusivamente pela R.. (resposta ao ponto 7º da base instrutória)
As gorjetas eram distribuídas pela R. aos trabalhadores de acordo com o critério fixada por esta. (resposta ao ponto 8º da base instrutória)
Desde o início dessa relação e até ao seu fim, nunca a R. autorizou a A. a gozar um dia de descanso em cada período de 7 dias, sem perda do respectivo rendimento (resposta ao ponto 10º da base instrutória)
Nunca a R. autorizou a A. a gozar 6 dias de descanso anual, sem perda do respectivo rendimento. (resposta ao ponto 11º da base instrutória)
Desde 1 de Janeiro de 1990 até à data da cessação da relação, nunca a R. autorizou a A. a descansar nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo Chinês, no dia 10 de Junho, e nos dias de Chong Chao, Chong Yeong e Cheng Meng, tendo a A. trabalhando nesses dias. (resposta ao ponto 12º da base instrutória)
Sem que a R. tivesse proporcionado qualquer acréscimo no rendimento da A. (resposta ao ponto 13º da base instrutória)
Nem compensado a A. com outro dia de descanso. (resposta ao ponto 14º da base instrutória)
Por força desse parto, à A. foi dispensada a trabalhar, pelo menos 35 dias, com perda do respectivo rendimento. (resposta ao ponto 15º da base instrutória)
A actividade profissional e a exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos obriga a funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano.1 (resposta ao ponto 17º da base instrutória.)
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III- O Direito
A sentença considerou que o salário da autora, enquanto empregada da STDM, era mensal e composto de uma parte fixa (remuneração-base) e de outra variável (gorjetas). Todavia, mesmo partindo desse pressuposto, julgou a acção parcialmente provada e procedente e procedeu à condenação da ré somente no pagamento da quantia de Mop$ 2.396,45 e juros legais.
Com efeito, a sentença condenou em tão escasso valor indemnizatório, com fundamento na circunstância de se não ter dado como provado que o rendimento anual fosse aquele que se quesitava no artigo 9º da Base Instrutória, ou outro qualquer (pois a resposta foi negativa), limitou-se a tomar como factor de referência para o cálculo da indemnização a remuneração base que foi adquirida em sede de prova ao quesito 4º: Mop$ 4,10 diários2.
Mas, em vez de se insurgir contra o julgado na parte em que, por falta de prova, excluiu da fórmula de cálculo da indemnização o valor das gorjetas no apuramento do valor diário do seu rendimento total, a autora da acção permitiu-se atacar a sentença com argumentos totalmente alheios ao caso e à decisão impugnada.
Assim é que, malogradamente, quer nas alegações, quer nas conclusões, não abordou senão o desvalor que deveria ser conferido ao documento assinado pela autora, segundo o qual declarava ter recebido a quantia de 12.000,00 patacas. Estaria em causa, portanto, uma declaração que, para si, e ao contrário do que o teria considerado a sentença recorrida, não devia ser considerada como quitação ou remissão, porque a tanto o impediriam as circunstâncias concretas – em que a autora dizia desconhecer nessa ocasião qual o valor da indemnização - e, bem assim, o proibiria a lei (art. 3º, do DL nº 24/89/M, de 3/04), por não admitir a cedência por parte dos trabalhadores dos seus créditos salariais.
Fê-lo talvez impressionada por tão insignificante quantia indemnizatória, e provavelmente na linha do que semelhantemente tem acontecido noutras ocasiões em que a indemnização é tão baixa por aquela razão, assim como também se pode ter dado o caso de, porventura, tal alegação ser destinada a outro processo (embora na epígrafe das alegações, estivesse correcta a numeração do processo atribuída na 1ª instância), mas o certo é que foi junta a este e, na oportunidade, não houve lugar a nenhum convite à correcção.
O facto objectivo é que a evidência do argumentário por si utilizado está manifestamente desfasado dos autos, uma vez que nenhuma questão de quitação ou remissão foi discutida e decidida no presente processo.
Ora, o objecto do recurso jurisdicional, como recurso de revisão, é a decisão proferida. E como se sabe, o recurso jurisdicional assenta numa discordância do recorrente em relação a um julgado desfavorável. Uma reacção jurisdicional desse tipo configura sempre uma censura à decisão, cujo âmbito é delimitado pelo próprio recorrente nas conclusões da alegação, expressa ou tacitamente – art. 589º, nº3, do CPC (Ac. TSI, de 10/04/2003, Proc. nº 127/2001).
Do que se trata é de impor ao recorrente uma conduta de boa ordem, método e disciplina processual, de maneira a evitar uma peça confusa, difícil e prolixa e, portanto, de forma a reunir em menos e mais concisas palavras a sua oposição reactiva de parte insatisfeita com a sentença lavrada na 1ª instância. Ou seja, o que se pretende é tornar claras as razões jurídicas que o recorrente entende assistirem-lhe para obter o provimento do recurso (ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil anotado, V vol., pag. 360).
Deste modo, as conclusões funcionam como condição da actividade do tribunal “ad quem” num recurso que tem por objecto a sentença (ou despacho recorrível) e à qual se imputam vícios próprios ou erros de julgamento.
Por isso se diz que, se nas conclusões do recurso jurisdicional nenhum reparo ou juízo crítico for feito à sentença recorrida através da menção das normas jurídicas por ela violadas, é de considerá-la transitada em julgado.
Falta ou omissão que para alguma jurisprudência se resolve pelo não conhecimento do recurso, e para outra se resolve pela improcedência do recurso jurisdicional.
Assim sendo, porque a delimitação objectiva do recurso se afere pelas conclusões das alegações respectivas e porque estas puseram em marcha uma impugnação a que a entidade recorrida deu até resposta alegatória, nesta instância já nada podemos fazer, senão decidir em conformidade com a pretensão recursiva.
E, porque assim é, resta-nos julgar improcedentes todas as conclusões alegatórias.
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IV- Decidindo
Face ao exposto e sem mais escusados considerandos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela autora.
TSI, 07 / 06 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 A selecção dos factos foi lavrada em português, mantendo aplicar português nesta parte.
2 Com o devido respeito, não procedeu correctamente a sentença recorrida. Realmente, se tinha sido provado que a remuneração abrangia as gorjetas (art. 3º da B.I.), então, mesmo que não se tivesse apurado o rendimento total anual - com inclusão do montante das gorjetas - ao menos devia ter, nessa parte, efectuado a condenação relegando a sua liquidação para execução de sentença. Essa, porém, é questão que aqui não está em discussão e, portanto, escapa ao nosso dever de conhecimento, nos termos do art. 589º, nº4, do CPC.
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