Processo nº 283/2012
Data do Acórdão: 14JUN2012
Assuntos:
acidente de trabalho
intervenção principal provocada
SUMÁRIO
1. O incidente da intervenção principal provocada visa permitir chamar o terceiro a intervir, quer como réu quer como autor.
2. No incidente da intervenção principal passiva provocada, o réu devedor não pode invocar a simples circunstância de ter pagado à pessoa diversa do credor como causa do chamamento dessa pessoa que recebeu a prestação.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 283/2012
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A, devidamente identificado nos autos e patrocinado pelo Ministério Público, no âmbito de um processo para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e finda a fase conciliatória sem que houvesse obtido acordo, vem intentar a competente acção mediante a apresentação da petição inicial contra a COMPANHIA DE B, S.A., também devidamente identificada nos autos, acção essa que foi registada sob o nº CV3-09-0085-LAE e que corre os seus termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.
Posteriormente, já na fase de instrução do processo, formulou a Ré um requerimento do seguinte teor:
Exm.o Senhor
Doutor Juiz de Direito do
Tribunal Judicial de Base
A COMPANHIA DE B, S.A., Ré nos autos supra identificados, vem expor e a final requerer o seguinte:
1. O Autor reclama nos artigos 19º a 21º da sua petição a quantia de MOP$169.950,00 devida a esta a título de indemnização por Incapacidade Temporária Absoluta (I.T.A.).
2. No entanto, os documentos 1 e 2 juntos pela Ré em 28 de Novembro de 2011, demonstram que a Companhia de B, S.A., Ré nos presentes autos, procedeu ao pagamento das seguintes quantias:
• Em 25 de Março de 2010 a quantia de MOP$ 69.196,00, a título de despesas médicas e 224 dias de ITA;
• Em 24 de Junho de 2010 a quantia de MOP$32.620,00, a título de despesas médicas e 106 dias de ITA.
3. Tais pagamentos totalizam um valor de MOP$101.816,00 correspondentes a 330 dias de I.T.A.
4. Os pagamentos acima descritos foram efectuados pela Ré à C Contractors (Asia) Limited, ao abrigo da apólice de seguros n.º 001100001607, celebrada entre a Companhia de B e a C Contractors (Asia) Ltd., e junta pela Ré em 17 de Março de 2011.
5. A Ré desconhece se a C Contractors (Asia) Ltd. procedeu à transferência dos referidos montantes indemnizatórios à entidade empregadora do Autor ou directamente a este.
6. Sendo certo, que o Autor não acusa a recepção de quais quantias indemnizatórias.
7. Nos termos do n° 1 do artigo 66° do CPT: “Estando em causa a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventualmente responsável, a qual é citada, sendo-lhe remetida cópia dos articulados já oferecidos.”
8. Assim, é vital para a boa decisão da presente causa e para a descoberta da verdade material, que a entidade segurada e a entidade patronal do Autor sejam chamados a intervir na presente causa laboral associados à Ré, ao abrigo do disposto nos artigos 65° e 66° n.° 1 do Código do Processo de Trabalho e nos artigos 267 ° e seguintes do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. certamente suprirá, se requer que V. Exa. se digne ordenar o chamamento de:
a) C Contractors (Asia), Ltd., com sede em Macau, na Alameda XX, n.ºs XX, Centro XX, XX° Andar, XX;
b) D (Macau) Construction Engineering Limited, com sede em Macau, na Avenida XX, n.º XX, Edf. XX, XX° andar "XX", ou com endereço de contacto conhecido em Hong Kong, XX/XX, XX International Centre, XX Road East, XX.
Por despacho da Exmª Juiz a quo lançado a fls. 532 dos p. autos, o tal requerimento foi indeferido nos termos seguintes:
Despacho
Nos presentes autos, já foi proferido o despacho saneador. Posteriormente, a R. vem requer chamamento de C Contractors Asia, Ltd. e D (Macau) Construction Engineering Limited, alegando que já pagou à C Contractors Asia, Ltd. quantia referida no seu requerimento, ao abrigo do artigo 65.°, 66.° n.º 1 do CPT e artigo 267.° do CPC. O artigo 66.° do CPT dispõe que:
Artigo 66.º
Pluralidade de entidades responsáveis
1. Estando em causa a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, a qual é citada, sendo-lhe remetida cópia dos articulados já oferecidos.
Nos termos do artigo 62.° do Decreto-Lei n.º 40/95/M:
Artigo 62.º
(Transferência de responsabilidade)
1. Os empregadores são obrigados a transferir a responsabilidade pelas reparações previstas no presente diploma para seguradoras autorizadas a explorar o ramo de seguro de acidentes de trabalho no território de Macau.
Tendo em conta que o quesito 15.º da Base Instrutória, se pergunta se a R. já pagou à entidade patronal, os 330 dias de ITA e a indemnização de MOP2816 das despesas médicas, e considerando o disposto no artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, o tribunal entende que não é admitida a intervenção requerida.
Não se conformando com o despacho que decidiu indeferir o requerido chamamento, vem a COMPANHIA DE B, S.A. interpor recurso concluindo e pedindo:
1º
Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a fls. 532 e 532v. dos presentes autos que indeferiu a intervenção provocada das sociedades “C Contractors (Ásia) Ltd." e “D Construction Engineering Limited";
2º
Atendendo aos elementos de prova carreados aos autos, em particular os documentos 1 e 2 juntos pela Recorrente em 28 de Novembro de 2011, é possível constatar que a Ré, ora Recorrente, procedeu a dois pagamentos em 25.03.2010 na quantia de MOP$69.196,00 a título de despesas médicas e 224 dias de I.T.A. e em 24.06.2010 na quantia de MOP$32.620,00 a título despesas médicas de 106 dias de I.T.A. respectivamente;
3º
Tais pagamentos foram, ao abrigo do Artigo 9ª da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, entregues ao tomador do seguro, C Contractors (Ásia) Limited, para que este, por sua vez procedesse à entrega das referidas quantias ao Trabalhador Sinistrado, Autor dos presentes autos;
4º
No entanto, no auto da Tentativa de Conciliação realizada em 30 de Setembro de 2010, o Autor refere ainda não ter recebido os descritos pagamentos;
5º
Tornou-se, assim, imperioso para a boa decisão da causa proceder-se à averiguação do destino dos pagamentos efectuados pela Recorrente e dos motivos pelos quais, até à data, os mesmo não chegaram ainda ao poder do Trabalhador Sinistrado;
6º
Consequentemente, veio o Recorrente requerer, ao abrigo do art. 66º n.º 1 do Código do Processo de Trabalho, a intervenção nos autos do tomador do seguro, "C Contractors (Ásia) Ltd.", e da entidade patronal do Autor, "D Construction Engineering Limited", na medida em que se encontra em causa a determinação da entidade responsável pela sustação dos pagamentos ao Autor;
7º
Assim, o Despacho recorrido violou o disposto no artigo 66º n.º 1 do Código do Processo de Trabalho, ao não admitir a intervenção provocada das referidas pessoas colectivas, quando em tempo e na medida em que está em causa a aferição da entidade responsável pela sustação dos pagamentos efectuados ao abrigo do seguro contratado para acidentes de trabalho;
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta,
assim se fazendo
JUSTIÇA
Admitido o recurso interlocutório com efeito suspensivo e subida imediata, ao recurso não respondeu o Autor.
II
Subido nos próprios autos a esta instância e admitido o recurso, foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPT, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões na petição de recurso, a única questão a apurar é saber se é legalmente possível a intervenção principal provocada da entidade patronal do trabalhador sinistrado D (MACAU) CONSTRUCTION ENGINEERING LTD. e do empreiteiro C CONTRACTORS (ASIA) LTD., em face da relação controvertida configurada quer pelo Autor na petição inicial quer pela Ré na contestação.
Vejamos.
A Ré chamante invocou como causa do chamamento o seguinte:
* o alegado pagamento ao tomador do seguro C CONTRACTORS (ASIA) LTD. a quantia de MOP$69.196,00 em 25MAR2010 e a quantia de MOP$32.620,00 em 24JUN2010, a titulo de despesas médicas e 224 dias de ITA e 106 dias de ITA, respectivamente;
* o alegado desconhecimento de que se a C procedeu à transferência dessas quantias indemnizatórias à entidade patronal do sinistrado D; e
* a circunstância de o Autor não acusar a recepção dessas quantias indemnizatórias.
E alegou como interesse que pretende acautelar através do requerido chamamento “a boa decisão da presente causa e para a descoberta da verdade material” – vide a fls. 527v dos p. autos, e apoiou o chamamento no disposto no artº 66º/1 do CPT e nos artºs 267º e s.s do CPC.
Antes de mais, é de frisar o incidente da intervenção principal provocada visa fazer intervir um terceiro numa acção pendente para ai fazer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu.
E não visa à “boa decisão da presente causa e para a descoberta da verdade material”, como assim pretende a Ré, uma vez que o pretendido se trata obviamente da questão de facto ou matéria de prova.
Demonstrada a inadequação do instituto do chamamento a que recorreu a Ré chamante para tutelar o interesse de “boa decisão da presente causa e para a descoberta da verdade material”, passemos agora a ver se são de acolher as razões de direito invocadas para requerer o chamamento dos C e D.
Há que ver portanto o que está previsto e estatuído nas referidas normas invocadas pela Ré chamante como fundamento legal do chamamento.
Diz o artº 66º/1 do CPT que “estando em causa a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, a qual é citada, sendo-lhe remetida cópia dos articulados já oferecidos.”.
Ao passo que reza o artº 267º do CPC que:
1. Qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2. Nos casos previstos no artigo 67.º, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.
3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar.
De acordo com preceituado no citado artº 267º/1 do CPC, o incidente da intervenção principal provocada visa permitir chamar o terceiro a intervir, quer como réu quer como autor.
Assim sendo, para que seja legalmente possível o chamamento, é preciso que o chamado tenha legitimidade para intervir numa acção pendente como autor ou como réu.
No caso em apreço, a Ré primitiva COMPANHIA DE B, S.A., pretende chamar à demanda, ao seu lado como co-réus o empreiteiro C e o subempreiteiro-empregador D.
Por isso importa averiguar se C e D têm a legitimidade passiva face à relação controvertida configurada pelo Autor.
In casu, é com base na alegada ocorrência de um acidente de trabalho e nos danos que lhe alegadamente foram causados pelo acidente que o Autor vem pedir a condenação da Ré, que é demandada por ser seguradora para quem foi transferida a responsabilidade de indemnização conforme a apólice que se junta aos autos a fls. 94.
Assim sendo, em face da relação controvertida que o Autor configura, é responsável apenas a Ré e não também os chamandos C e D, pois estes útlimos não são responsáveis principais nem solidários, dado que por força do disposto no artº 62º do D.L. nº 40/95/M e do estipulado no referido contrato de seguro, a responsabilidade de indemnização pelos danos causados pelos riscos aos trabalhadores no local e no período de tempo das obras ai especificados já foi transferida para a seguradora ora Ré chamante.
Como se sabe, ter legitimidade passiva significa ser susceptível de ser condenado.
Por razões que vimos supra, ou seja, por lei e pelo contrato de seguro, não sendo responsáveis pelos danos alegadamente causados ao Autor pelo acidente de trabalho que constituem a causa de pedir, os chamandos C e D nunca podem ser condenados na presente acção.
Por outro lado, mesmo que viesse a ser provado que a Ré já pagou ao chamando C as tais quantias de indemnização e que as tais quantias não foram feitas afinal chegar às mãos do Autor sinistrado, os chamandos C (empreiteiro) e D (subempreiteiro e empregador do Autor sinistrado) nunca poderiam ser condenados no pagamento de qualquer indemnização a favor do Autor.
Pois a simples circunstância de o devedor ter pagado à pessoa diversa do credor não exonera o devedor da obrigação de pagar nem obriga essa outra pessoa, diversa do credor, que recebeu a prestação, a pagar ao credor, a não ser nas situações previstas no artº 760º do CC, quais são:
a) Se assim foi estipulado ou consentido pelo credor;
b) Se o credor a ratificar;
c) Se quem a recebeu houver adquirido posteriormente o crédito;
d) Se o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a considerar como feita a si próprio;
e) Se o credor for herdeiro de quem a recebeu e responder pelas obrigações do autor da sucessão;
f) Nos demais casos em que a lei o determinar.
Todavia, tendo em conta o alegado pela Ré na contestação, não estamos perante qualquer dessas situações.
Deste modo, o que a Ré pode fazer é apenas reaver as tais quantias alegadamente pagas ao chamando C, mediante uma acção a intentar contra C e D com fundamento na eventual apropriação das tais quantias ou no eventual incumprimento da obrigação, assumida por qualquer forma pelo C perante a Ré seguradora, de fazer chegar ao Autor as tais quantias.
Mas nunca pode fazê-lo através do instituto da intervenção principal provocada.
Demonstrada a inadequação do instituto da intervenção principal provocada para tutelar o interesse que a Ré pretende acautelar através do chamamento e dados não verificados os pressupostos da intervenção principal provocada exigidos pelo artº 267º e s.s. do CPC, ora invocado pelo Ré como fundamento legal do chamamento, não podemos senão indeferir o requerido chamamento pela Ré de C e D.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso interposto pela COMPANHIA DE B, S.A..
Custas pela recorrente.
Notifique.
RAEM, 14JUN2012
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Lai Kin Hong
(Relator)
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Choi Mou Pan
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)