Processo nº 385/2012 Data: 31.05.2012
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime(s) de “burla”.
Erro notório na apreciação da prova.
Pena.
Suspensão da execução da pena.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 385/2012
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência no T.J.B. respondeu A, com os sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como co-autor de 2 crimes de “burla”, (sendo 1 “simples” e o outro de “valor elevado”,) p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 3° do C.P.M., nas penas parcelares de 1 ano e 1 ano e 6 meses de prisão, e, em cúmulo, na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 408-v a 469-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, a final, e em síntese, imputar à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo também a “suspensão da execução da pena”; (cfr., fls. 473 a 477).
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Respondendo, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 494 a 499-v).
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Nesta Instância e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer, pugnando pela integral confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 580 a 582).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“1°
Os arguidos B e A são residentes do Interior da China. Têm uma relação de amizade.
2°
No início de 2011, o arguido B comprou na cidade de Zhuhai, junto de um homem que chamou a si mesmo de “XXX”, pelo menos onze colares de cor prateada (todos gravados com as letras “PT950”, isto é ouro branco).
3°
Mesmo sabendo bem que os colares não eram de ouro branco verdadeiro, o arguido B planeava levá-los a Macau para os empenhar, um por um, em casas de penhor como colares de ouro branco verdadeiro, a fim de obter interesses ilícitos.
4°
No dia 14 de Maio de 2011, à tarde, o arguido B entrou em Macau com um passaporte da China, n.° GXXX(cfr., fls. 87 dos autos).
5°
Nessa altura, o arguido levou com ele os onze colares de cor prateada acima referidos, e, secretamente, dois passaportes da China (um em nome de C e de n.° GXXX, e o outro em nome de D de n.° GXXX), planeado utilizar esses passaportes no empenhamento em Macau, com o intuito de esconder a sua identidade verdadeira.
6°
No dia 18 de Maio do mesmo ano, pela 1h da madrugada, o arguido B deslocou-se à casa de penhor “XX At” (XX押), sita na Avenida XX, n.° 16-S, R/C, onde tirou um colar de cor prateada gravado com as letras “PT950”, pedindo ao empregado E que fosse empenhado o colar. Após um exame preliminar, o empregado E, por acreditar erradamente que era um colar de outro branco, aceitou empenhado o colar, sendo de HKD$26.000,00 o preço negociado e acordado pelas partes. O arguido B mostrou ao empregado um passaporte da China (em nome de XX, de n.° GXX) para efeitos do registo, em troca, este pagou ao arguido a quantia de HKD$26.000,00, emitiu-lhe uma nota de empenho, n.° 69, e fez o respectivo registo. (vide o registo do empenhamento a fls. 314 dos autos, o auto de apreciação de vídio a fls. 317 a 321 e o auto de apreensão a fls. 352).
7°
Além de empenhar esses objecto ele próprio, o arguido B aidna entregou ao arguido A dois colares gravados com as letras “XXX PT950” para este os empenhar, prometendo-lhe uma remuneração pecuniária. A fim de obter remuneração pecuniária, o arguido A, mesmo sabendo perfeitamente que os dois colares não eram de outro branco, prometeu ao arguido B que os levasse, por ele, a casas de penhor para os empenhar.
8°
No dia 20 de Junho de 2011, pelas 23h, o arguido A dirigiu-se à casa de penhor “XX At” (XX押), localizada na Avenida da XX, n.° XX, X, R/C, onde tirou do seu pescoço um colar de cor prateada gravado com as letras “XXX PT950”, pedindo ao empregado F que fosse empenhado o colar a preço de HKD$35.000,00. Após um exame preliminar, o empregado F, por acreditar erradamente que era um colar e outro branco, aceitou-o empenhado no valor de HKD$33.000,00 e pagou ao arguido A tal quantia referida, emitiu-lhe, depois, uma nota de empenho, n.° 4024, e fez o respectivo registo. (vide o registo do empenhamento a fls. 6 dos autos, o auto de apreensão a fls. 51 e o auto de apreciação de vídeo a fls. 26 a 30).
9°
Em seguida, o arguido A entregou o dinheiro adquirido através do empenhamento, na importância de HKD$33.000,00, ao arguido B, que estava à sua espera fora da casa de penhor, e este veio a dar ao arguido A um montante de HKD$12.000,00.
10°
No dia 21 de Junho de 2011, pelas 23h, o arguido A dirigiu-se à casa de penhor “XX At” (XX押), situada na Praça de XX, n.° 24, Centro Comercial XX, R/C, lote D, onde tirou do seu pescoço um colar de cor prateada gravado com as letras “XXX PT950”, pedindo empenhado o colar ao empregado G. Após um exame preliminar, o empregado G, por acreditar erradamente que era um colar de outro branco, aceitou-o empenhado e pagou ao arguido A HKD$23.000,00, a seguir, emitiu-lhe uma nota de empenho, n.° 166, e fez o respectivo registo. (vide o registo do empenhamento a fls. 201 dos autos, o auto de apreensão a fls. 204 a 205 e o auto de apreciação de vídeo a fls. 239 a 243).
11°
Ao praticar os supra aludidos actos de empenhamento, o arguido A mostrou, todas as vezes, o seu salvo-conduto da China para deslocações a Hong Kong e Macau, n.° WXXX. Após o empenhamento, o arguido A entregou ao arguido B a verba adquirida, no valor de HKD$23.000,00, recebendo HKD$3000,00 a título de remuneração.
12°
No dia 28 de Junho de 2011, pelas 18h, o arguido A foi interceptado pelos agentes do CPSP quando voltou a entrar em Macau pelas Portas do Cerco. Acompanhados pelos arguido A, os agentes policiais chegaram a capturar o arguido B no estabelecimento de churrasqueira XX (“XX燒烤店”), sito na Rua XX, Edifício XX, R/C. No saco que o arguido B levou com ele, os agentes encontraram cinco colares de metal de cor prateada e um passaporte da China, em nome de D e de n.° GXXX (vide fls. 72 a 79 dos autos).
13°
Após exame preliminar, comprovou-se que os aludidos colares de cor prateada apreendidos no respectivo estabelecimento e os cinco encontrados no saco do arguido B são todos de metal comum, mas não de ouro branco, não possuindo qualquer valor. (vide o Relatório pericial a fls. 37 a 45, 252 a 265 e 322 a 330, bem como o auto de exame e avaliação a fls. 17 a 19 e 97 a 98).
14°
Os supracitados actos dos dois arguidos causaram à casa de penhor “XX At” uma perda de HKD$26.000,00, à casa de penhor “XX At” uma perda de HKD$33.000,00, e à casa de penhor “XX At” uma perda de HKD$23.000,00.
15°
Quando foi interrogado no Juízo de Instrução Criminal, o arguido B identificou-se como B, e preencheu o termo de identidade e residência.
16°
Os arguidos B e A agiram livre, voluntária e conscientemente ao praticar os actos acima referidos.
17°
Com o objectivo de obter interesses pecuniários ilícitos, o arguido B fez colares de metal comum gravados com as letras “PT950” passar por colares de ouro branco de forma a empenhá-los em casas de penhor em Macau, fazendo com que os “XX” (avaliador dos objectos do empenho) fossem burlados, por acreditarem erradamente que os colares continham ouro branco verdadeiro.
18°
O arguido B ainda conspirou com o arguido A, mais recentemente, entregou-lhe uns colares de ouro branco falsos para os empenhar, ficando os interesses pecuniários partilhados entre os dois. Devido à conduta dos dois arguidos, as referidas casas de penhor foram burladas e sofreram danos patrimoniais.
19°
O arguido B ainda utilizou propositadamente documentos de identificação alheios, pretendendo esconder a sua entidade verdadeira com vista a obter interesses ilegítimos.
20°
Os dois arguidos sabiam perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei”; (cfr., fls. 464 a 466 e 525 a 531).
Do direito
3. Duas são as questões pelo arguido ora recorrente trazidas à apreciação deste T.S.I..
Imputa pois à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo também a “suspensão da execução da pena” em que foi condenado.
Cremos que não tem o recorrente razão, sendo de se rejeitar o presente recurso dada a sua manifesta improcedência; (cfr., art. 410°, n.° 1 do C.P.P.M.).
Vejamos.
–– Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”.
Pois bem, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 07.12.2011, Proc. n.° 656/2011 do ora relator).
No caso dos autos, não se vislumbra como, onde ou em que termos, tenha o Tribunal a quo violado qualquer regra sobre o valor das provas tarifadas, as regras de experiência ou legis artis.
Assim, e constatando-se que mais não faz o recorrente do que tentar impor a sua versão dos factos, afrontando o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 114° do C.P.P.M., mais não é preciso dizer sobre o ponto em questão.
–– Da pretendida “suspensão da execução da pena”.
Nos termos do art. 48° do C.P.M.:
“1. Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.
2. Só pode ser aplicada medida de segurança ao estado de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento.
3. Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime ou definir um estado de perigosidade, nem para determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde”.
Também sobre o instituto em questão já teve este T.S.I. oportunidade de consignar que:
“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 01.03.2011, Proc. n° 837/2011, do ora relator, e, mais recentemente, de 22.03.2012, Proc. n° 703/2011).
No caso, provado está que o ora recorrente cometeu dois crimes de “burla”, uma “simples” e outro de “valor elevado”, tal como foi condenado.
Verifica-se que agiu em conjugação de esforços com o co-arguido dos autos B e com dolo directo e intenso.
Por sua vez, nada de abonatório se retira da factualidade dada como provada com excepção de ser “primário”, sendo de se notar porém que se colhe igualmente dos autos, que o ora recorrente, deslocou-se a Macau, onde cometeu os crimes, vindo do interior da China, como “turista”.
E, nesta conformidade, evidente é que também aqui, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Na verdade, e como bem salienta o Ilustre Procurador Adjunto:
“A apontada circunstância de o recorrente ser primário não deixou de ser consignada e sopesada expressamente no acórdão controvertido, sendo que, não tendo premente necessidade de o fazer, os julgadores não se esquivaram a, no douto acórdão em escrutínio, genericamente esclarecer das razões da não concessão da suspensão da execução da pena, razões essas que não poderão deixar de se prender sobretudo com as apontadas necessidades de prevenção geral deste tipo de criminalidade na Região, com influência negativa na ordem social, bem como do facto de se não antever contrição do visado de qualquer pela conduta respectiva, o que, eventualmente, poderia decorrer de eventual integral confissão, que não existiu, revelando-se, assim, também desfavorável o seu prognóstico individual à luz de considerações exclusivas da execução da prisão, tudo indicando, pois, que a mera ameaça de prisão e a censura do facto não realizarão, efectivamente, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, afastando o recorrente da prática de novos ilícitos.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, entendemos ser de manter o decidido, negando-se provimento ao recurso”.
Tudo visto, e sendo nós de subscrever, na íntegra, o transcrito entendimento, visto está também que, afastada, de todo, está a possibilidade da suspensão da execução da pena ao recorrente.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente 5 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).
Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$1.200,00.
Macau, aos 31 de Maio de 2012
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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