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Processo nº 856/2011-I Data: 31.05.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Aclaração de acórdão.



SUMÁRIO

A aclaração de uma de uma decisão apenas se justifica quando a mesma seja ininteligível – o que se verifica quando aquela apresente aspectos de significação inextrincável, em termos de não ser possível apurar o que se quis dizer – ou se mostra passível de se lhe atribuir dois (ou mais) sentidos.
O pedido de aclaração destina-se a permitir que uma decisão pouco clara, de percepção difícil ou dicotómica, seja apreendida pelo destinatário, que não a questionar eventuais erros de julgamento ou pôr em causa a bondade do julgado


O relator,

______________________

Processo nº 856/2011-I
(Autos de recurso penal)
    (Incidente)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em 27.04.2012, proferiu este T.S.I. Acórdão onde se decidiu “conceder provimento ao recurso interposto pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida na parte em que se decidiu suspender a execução da pena decretada ao arguido”; (cfr., fls. 199 a 206 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Notificado do assim decidido, veio o arguido A, apresentar pedido de aclaração do mencionado acórdão.

Alega, em síntese, que:

“(...)não entende se o entendimento do Douto Tribunal de Primeira Instância e a sua livre convicção, que determinaram que se afirma-se “Porém, ao abrigo do disposto no art. 48° do CPM, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, este Juízo entende que a simples censura do facto e a ameaça da prisão já realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que decide suspender a execução da pena acima referida por 2 anos, com regime de prova previsto pelo art. 51° do CPM e acompanhado peo Instituto de Acção Social.”, foram ou não sujeitos a sindicância e juízo”; e que,
“(…) questiona-se, pois, em relação a que circunstâncias, em concreto, se refere esse Venerando Tribunal e se valorou de forma diferente do Tribunal ad quem, quais as circunstâncias é que considerou mais gravosas do que aquele Tribunal, bem como qual o exacto critério que determinou a prognose desfavorável à sua personalidade, não logrando obter resposta no Vosso Douto Acórdão, não lhe restando outro meio de esclarecimento que não a aclaração da Decisão”; (cfr., fls. 213 a 215).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Vem o arguido pedir a aclaração do acórdão por este T.S.I. proferido em 27.04.2012, com o qual se decidiu conceder provimento ao recurso do Exmo. Magistrado do Ministério Público, nos termos que atrás se deixou consignado.

Como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar:

“A aclaração de uma de uma decisão apenas se justifica quando a mesma seja ininteligível – o que se verifica quando aquela apresente aspectos de significação inextrincável, em termos de não ser possível apurar o que se quis dizer – ou se mostra passível de se lhe atribuir dois (ou mais) sentidos.
O pedido de aclaração destina-se a permitir que uma decisão pouco clara, de percepção difícil ou dicotómica, seja apreendida pelo destinatário, que não a questionar eventuais erros de julgamento ou pôr em causa a bondade do julgado”; (cfr., v.g., o Ac. de 19.05.2011, Proc. n.° 1022/2010-II).

–– No caso dos presentes autos, pelo T.J.B. foi dada como provada a seguinte factualidade:

“Em 21 de Abril de 2011, pelas 18h15, o arguido A, vestindo uma camisa verde e carregando uma mochila preta, entrou no Café B situado no Largo do XX. Pelas 19 horas, o arguido entrou na casa de banho para mulheres do Café e fixou com chiclete uma câmara pinhole (apreendida aos autos, vide as fotos nas fls. 5 dos autos) ao balde de lixo ao lado do vaso sanitário (vide as fotos nas fls. 6 e 7 dos autos), e depois de ajustar o ângulo e abrir a função de filmagem, puxou a descarga e saiu da casa de banho.
A lesada C entrou na casa de banho após a saída do arguido, e inconscientemente, foi filmada pela supracitada câmara pinhole, incluindo a sua aparência e a parte íntima (vide o auto de assistência nas fls. 42 e as fotos nas fls. 43 e 44 dos autos). As respectivas imagens são armazenadas no cartão de memória da referida câmara pinhole (ora apreendido aos autos).
Mais tarde, quando D usou a casa de banho, descobriu a câmara pinhole e notificou a gerente do Café e a lesada. Por a lesada suspeitar o arguido de instalação da câmara pinhole, a gerente do Café telefonou para a polícia.
Em 23 de Abril do mesmo ano, pelas 14h30, os guardas encontraram a camisa verde e a mochila preta usadas pelo arguido no dia do facto (ora apreendidas aos autos, vide as fotos nas fls. 40 dos autos) na Agência de automóveis E do amigo do arguido, situada na Avenida XX, n.º XX, rés-do-chão.
O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária ao instalar equipamentos de filmagem secreta na casa de banho para mulheres no Café e filmou a lesada contra a vontade desta.
O arguido sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
De acordo com o CRC, o arguido é delinquente primário.
Provaram-se também as condições pessoais e a situação económica do arguido:
O arguido tem como habilitações literárias o bacharelado, aufere mensalmente cerca de MOP$25.000,00 e tem a seu cargo os pais, a esposa e dois filhos”; (cfr., fls. 164 a 165).

–– Seguidamente, consignou o mesmo T.J.B. que:

“Juízo dos factos:
Na audiência, o arguido negou a prática dos factos lhe imputados. O arguido admitiu que tinha entrado na respectiva casa de banho para mulheres porque tinha pressa de urinar e estava fechada a casa de banho para homens. O arguido ainda alegou que saiu da casa de banho para mulheres depois de ter urinado, não fez nada ao balde de lixo nem instalou qualquer câmara, e que não houve qualquer pessoa à espera fora da casa de banho quando saiu. Além disso, o arguido alegou que vestiu camisa verde e carregou uma mochila preta naquele dia.
A lesada C prestou declarações na audiência, alegando que na altura, ao entrar na casa de banho para mulheres, viu um homem que vestiu uma camisa verde e carregou uma mochila preta fora da casa de banho, este tocou a chave da porta da casa de banho para homens (não sabe se empurrou a porta) e depois dirigiu-se a abrir a porta da casa de banho para mulheres e entrou nesta, pelo que a lesada teve de esperar fora. Uns minutos depois, o referido homem saiu da casa de banho para mulheres, a lesada entrou na casa de banho e não atendeu se estava instalada câmara na casa de banho. Além disso, a lesada alegou que queria efectivar a responsabilidade penal do agente e não solicitou indemnização cível.
A testemunha D prestou declarações na audiência, alegando que no dia do facto, viu que o arguido sentava-se num lugar perto da casa de banho por cerca de 1 hora e tinha um olhar suspeitoso, e depois entrou na casa de banho, pelo que a testemunha entendeu mais suspeitoso o arguido. Mais tarde, depois de o arguido sair da casa de banho para mulheres, a testemunha entrou na casa de banho e observou com cuidado o ambiente na casa de banho, encontrando uma câmara aderida ao balde de lixo com chiclete, pelo que removeu a câmara e entregou-a aos empregados do Café.
Dois guardas do CPSP compareceram à audiência e prestaram depoimentos, contando o decurso da investigação.
Duas testemunhas compareceram à audiência e prestaram depoimentos, contando a personalidade e o comportamento em tempos normais do arguido.
Examinaram-se na audiência as provas documentais e os objectos apreendidos, e viu-se o filme apreendido.
No início do filme, vê-se uma mão a mover antes da lente e a lente também moveu-se e fez som parecido com o de saco plástico, a seguir, um homem vestido de camisa verde puxou a descarga e saiu da casa de banho. Mais tarde, foi filmada a primeira pessoa que entrou na casa de banho para mulheres após a saída do arguido, ou seja a lesada.
Analisando os dados acima referidos e de acordo com o filme, este Juízo entende que o homem no filme estava a abrir a função de filmagem quando vemos uma mão a mover antes da lente, e estava a fixar a câmara ao saco plástico do balde de lixo quando ouvimos o som, e depois o homem no filme puxou a descarga e saiu da casa de banho.
Além disso, o homem no filme vestiu uma camisa verde, e de acordo com a lesada e a testemunha D, bem como a roupa e a mochila apreendidas, pode-se provar que o arguido é o homem no filme.
Tendo em consideração os factos de que o arguido entrou na casa de banho para mulheres em vez de para homens, e colocou a roupa e a mochila na loja do amigo e não em sua casa, conjunto com os depoimentos prestados pela lesada e pelas testemunhas, bem como as provas documentais apreciadas na audiência, este Juízo formou a sua convicção. Apesar de o arguido negar a prática dos factos acusados, este Juízo entende que os supracitados factos são suficientes para provar que o arguido entrou na casa de banho para mulheres, instalou e activou equipamento de filmagem, saiu da casa de banho e deixou o referido equipamento filmar o uso da casa de outrem”; (cfr., fls. 166 a 168).

–– E, atento o assim considerado, dando como verificado o crime de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., acabou por condenar o arguido na pena de 8 meses de prisão, suspendendo a execução de tal pena por 2 anos.

–– Na motivação de recurso então apresentada, alegou o Exmo. Magistrado do Ministério Público o que segue:

1. O Ministério Público acusou o condenado de ter praticado em autoria material e na forma consumada 1 crime de gravações e fotografias ilícitas p. p. pelo art.º 191.º, n.º 2, al. a) do CPM.
2. O tribunal a quo condenou o arguido pela prática dum crime de gravações e fotografias ilícitas na pena de prisão de 8 meses, com suspensão da execução por 2 anos, e com regime de prova previsto pelo art.º 51.º do CPM e acompanhado pelo Instituto de Acção Social.
3. Na determinação da medida da pena, o tribunal a quo não violou a lei, nomeadamente os artigos 40.º, 64.º e 65.º do CPM.
4. Porém, o tribunal a quo não condenou o condenado na pena de prisão efectiva de 8 meses, e o recorrente entende que esta decisão violou o art.º 48.º do CPM.
5. O tribunal a quo atendeu à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, e entendeu que a simples censura do facto e a ameaça da prisão já realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que decidiu suspender a execução da pena acima referida com regime de prova por 2 anos.
6. O Ministério Público não está de acordo.
7. In casu, apesar de ser delinquente primário, o condenado negou desde o início a prática dos factos acusados e não manifestou arrependimento. O condenado é guarda do CPSP, e como agente de autoridade, deve exercer a atribuição de defender a lei e prevenir crimes. O condenado tem conhecimento jurídico profissional, mas ainda cometeu crime e ignorou a lei. De acordo com as circunstâncias concretas no presente processo, o condenado escolheu o Café B situado no Largo do XX onde se encontra grande número de pessoas para praticar o crime, entrou na casa de banho para mulheres perante o público, pelo que é muito intenso o seu dolo. O condenado tinha plano para praticar o crime e transferiu as provas depois do crime, perturbando dolosamente o processo judicial. As condutas criminosas do condenado não só causaram prejuízo à fé pública na polícia, mas também trouxeram influência negativa à sociedade. A suspensão da execução da pena de prisão não é aceitável para o público e traz influência negativa. Atendendo à personalidade do condenado, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, é difícil crer que o condenado deixará de cometer novos crimes. Por isso, entende-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
8. Por isso, a sentença feita pelo tribunal a quo padece do vício de violação da lei previsto pelo art.º 400.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, conjugado com o art.º 48.º do CPM, e deve-se anular a referida sentença e condenar o condenado na pena de prisão efectiva de 8 meses”; (cfr., fls. 130 a 133-v e 174 a 182).

E, neste T.S.I, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Encontra-se em causa no presente recurso o inconformismo da Exma Colega junto do tribunal “a quo” relativamente à suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada.
Cremos que lhe assistirá razão.
Na verdade, atentos os circunstancialismos específicos que rodearam o ilícito e características deste, a revelar alto grau doloso por parte do recorrido, a forma de actuação do mesmo, antes e após a prática do facto, a sua condição como agente da PSP e o facto de sempre ter negado a prática dos factos imputados, afastando, assim, a contrição pelos mesmos, estamos em crer que, com tais parâmetros, se não justificará a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizarão, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, que, no caso, não poderão deixar de contemplar os efeitos altamente negativos na fé pública a depositar nos agentes policiais e os perniciosos reflexos na sensibilidade social com tal tipo de casos.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 191).

Disto isto, e certo sendo que na decisão ora em crise, para além de se expor os pressupostos legais da suspensão da execução da pena, (transcrevendo-se o estatuído no art. 48° do C.P.M. e citando-se o consignado sobre tal questão no Ac. de 29.03.2012, Proc. n.° 192/2012), se subscreveu, expressamente, o entendimento assumido no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, haverá algo a aclarar?

Sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido distinto, cremos que nada há a aclarar.

Com efeito, e em nossa opinião, a decisão em questão mostra-se lógica na sua fundamentação e clara no seu sentido.

É certo – e isto é óbvio – que mais se poderia dizer.

Todavia não se pode olvidar que na análise de uma decisão se deve atentar ao seu todo.

E, nesta conformidade, cremos que no acórdão deste T.S.I. explícitos ficaram os motivos (de facto e de direito) da decisão de revogação da decretada suspensão da execução da pena imposta ao arguido.

Com efeito, o tipo de crime, (“gravações e fotografias ilícitas”), as circunstâncias e modo do seu cometimento, (nomeadamente, através de uma pequena máquina de filmar, discretamente instalada na casa de banho de um estabelecimento público, e montada de forma a captar imagens de partes íntimas dos ofendidos que a utilizassem, o que veio efectivamente a suceder), o facto de ser o arguido um agente da P.S.P., e de ter, como dever profissional, zelar pela segurança e paz social, o seu dolo directo e intenso, a sua postura processual, negando os factos e revelando, assim, falta de arrependimento, e as necessidades de prevenção especial e geral, levaram pois este Tribunal a divergir do entendimento assumido pelo T.J.B., e a concluir, (como oportunamente se consignou), que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Decisão

3. Nos termos que se deixam expostos, acordam, julgar improcedente o pedido apresentado.

Custas pelo incidente a cargo do requerente com 3 UCs de taxa de justiça.

Macau, aos 31 de Maio de 2012


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José Maria Dias Azedo
(Relator)

_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 856/2011-I Pág. 18

Proc. 856/2011-I Pág. 1