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Proc. nº 569/2011
(Recurso contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14 de Junho de 2012
Descritores:
-Fundamentação por remissão.
-Notificação e publicação
-Princípio da igualdade
-Princípio da proporcionalidade
-Interesse público
-Desvio de poder
-Pontes-cais: propriedade e domínio útil


SUMÁRIO:

I - Nos termos do art. 115º, nº1, do CPA é possível a chamada fundamentação por remissão ou “per remissionem”, através da qual o autor do acto remete os fundamentos deste para o conteúdo de pareceres, informações ou propostas.

II - Notificação e publicação são actos extrínsecos ao acto decisor e a ele necessariamente posteriores. São veículos ou instrumentos de comunicação, por isso se dizendo instrumentais. E na medida em que cumprem essa singela função, não visam senão conferir eficácia externa ao objecto comunicado, dotando-o da necessária aptidão para a produção de efeitos, por isso também se intitulando integrativos de eficácia. Deste modo, um acto deficientemente notificado não é necessariamente ilegal, embora seja ineficaz1.

III - A igualdade de situações materiais (cfr. ainda art. 25º da Lei Básica; 5º do CPA), visando a proibição do arbítrio, impõe igualdade de tratamento, enquanto a desigualdade de situações já não obsta a diferentes soluções administrativas.

IV - A proporcionalidade levada ao princípio vazado no art. 5º, nº2, do CPA, acolhe a noção de solução plúrima, isto é, transmite a ideia de que só é desproporcional a medida se outra pudesse ter sido tomada com menor gravame ao interesse privado conflituante, se diferente e com melhor equidade de meios e de resultados pudesse ser adoptada a resolução do caso concreto.

V - O interesse público tem ínsita a ideia de interesse comum, que favorece a totalidade ou pelo menos uma parte significativa de uma determinada comunidade.

VI - O vício de desvio de poder dá-se quando a Administração se subjuga a um interesse principalmente determinante não consentâneo com o fim depositado na norma ao conceder-lhe aqueles poderes discricionários.

VII - A ocupação das pontes-cais em apreço é feita sob licença a título precário.

VIII - Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor dos particulares das pontes-cais, através de decisão judicial, independentemente de acção a ser proposta antes ou depois da criação da Região.









Processo nº 569/2011
(Recurso Contencioso)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
“Companhia de Importação e Exportação A, Limitada”, sociedade comercial com sede em Macau, na Av. de ……, Ponte Cais nº YY, recorre contenciosamente do despacho proferido pelo Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas em 5/07/2011, que lhe indeferiu o requerimento para a renovação da licença de ocupação da Ponte-Cais nº YY e a notificou para em 30 dias remover todos os objectos existentes na referida ponte-cais, pedindo a sua anulação.
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Após contestação, procedeu-se a produção de prova, na sequência do que as partes foram notificadas para apresentação de alegações facultativas.
*
A recorrente concluiu as suas da seguinte maneira:
«1. O acto recorrido enferma de ilegalidades que, conforme se demonstrará, o tornam inválido e anulável;
2. O regime jurídico geral da fundamentação dos actos administrativos consta actualmente dos artigos 114º. e 115º. do Código do Procedimento Administrativo;
3. A fundamentação deve proporcionar ao administrado (destinatário normal) a reconstituição do denominado iter cognoscitivo e valorativo do autor do acto para que este fique a conhecer o motivo por que se decidiu naquele sentido; para que conscientemente o aceite ou o impugne, ao mesmo tempo que se deseja que aquele decida com ponderação o que, em princípio se conseguirá com a externação dos respectivos fundamentos, prática que, normalmente, conduz à sua reflexão;
4. Do exposto flúi, que a Recorrente tinha o direito de conhecer a respectiva e verdadeira fundamentação, para os fins legalmente previstos. Era necessária uma exposição dos fundamentos de facto e de direito que se apresentasse clara, congruente e suficiente, ainda que sucinta, e esclarecesse concretamente a motivação da decisão, o que não se verifica no acto impugnado, que por isso é ilegal;
5. Com efeito, do acto recorrido não constam quaisquer factos precisos que permitam saber da concreta motivação, nem da justeza das subsunções;
6. Todavia, e por forma a demonstrar a boa vontade do ora Recorrente para a resolução do conflito que o opõe à Administração, foram requeridos atempadamente os documentos necessários à preparação da sua defesa e à instrução do presente recurso contencioso.
7. Deixou assim de enfermar o Despacho do Exmo. Senhor Secretário Para as Obras Públicas e Transportes de Macau do vício de forma, por insuficiente fundamentação porquanto o Parecer que serviu de base para a emissão do despacho ora recorrido ter sido prontamente suportado pelo ora Recorrente.
8. No despacho n.º 58/DAPE/ATJ/2011 da Capitania dos Portos de Macau, refere-se também que “O cais n.º YZ do Porto Interior é constituído por dois edifícios e por uma plataforma de madeira, o rés-da-chão e o segundo andar dos edifícios encontram-se actualmente desocupados. Normalmente não há barcos estacionados no cais.” (tradução da responsabilidade do Recorrente);
9. O que não corresponde de todo à verdade dos factos;
10. Daí que a decisão recorrida está eivada do vício do erro sobre os pressupostos de facto que por si só constitui uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei;
11. Assim sendo, o pressuposto de que o acto recorrido partiu - de que a Ponte Cais não tinha qualquer actividade - apesar da aparência, não se mostrava verificado, pelo que o mesmo se encontra inquinado do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, o que gera a anulabilidade do acto, como resulta do artigo 124º do CPA, que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, nomeadamente para efeitos do estabelecido na alínea d) do nº 1 do artigo 21º do CPAC;
12. Refere ainda o despacho n.º 58/DAPE/ATJ/2011 da Capitania dos Portos de Macau que a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), no seu relatório n.º 2065/DDPDT/2010 de 15 de Dezembro de 2010, “comunicou a intenção de criar uma via exclusiva para autocarros desde as Portas do Cerco até à Barra e sugeriu que o espaço compreendido entre os cais n.º YZ e YY deveria ser reservado à via pública” ;
13. No entender do ora Recorrente também este argumento da Capitania dos Portos de Macau torna o acto administrativo que indeferiu o pedido de renovação da exploração da Ponte Cais n.º YZ anulável, porquanto viola, de forma grosseira o princípio da igualdade, que se encontra plasmado no artigo 5.º do CPA;
14. Daí que teremos de concluir que o acto recorrido padece ainda do vício de violação da lei, para além de se traduzir numa decisão desproporcional, inadequada e injusta relativamente aos direitos e interesses que o ordenamento jurídico da RAEM confere ao Recorrente.
15. Ao decidir como decidiu, o Exmo. Senhor Secretário para os Transportes e Obras Publicas desrespeitou também nesta parte os mais elementares princípios fundamentais do direito que regem a actividade da Administração Pública, nomeadamente o princípio da igualdade e bem como o princípio da proporcionalidade;
16. Configurando uma enfermidade do acto por violação de lei, o que gera a anulabilidade do mesmo acto, como resulta do artigo 124º do CPA, que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, nomeadamente para efeitos do estabelecido na alínea d) do nº 1 do artigo 21º do CPAC;
17. Finalmente, o conceito de interesse público a que alude o art. o 20.º do supra aludido normativo (que prevê a possibilidade de extinção das licenças quando existirem motivos que de interesse público que o justifiquem) é um conceito jurídico indeterminado, gozando a Administração, neste domínio, de liberdade de escolha do elemento ou elementos atendíveis para o preenchimento de tal tipo de conceito, apenas “sancionável” pelo Tribunal no caso de assentar em erro patente ou critério inadequado;
18. Por si só, a opção pelo indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação da Ponte-cais n.º YZ e do seu consequente abandono por parte do ora Recorrente, da autoria da Capitania dos Portos de Macau, por se considerar de interesse público a obtenção daquele espaço, para a futura incorporação “numa via exclusiva para autocarros a construir desde as Portas do Cerco até à Barra”, não revela nenhum erro patente ou uso de critério inadequado;
19. Sucede que, a actuação da Administração i) no que concerne às restantes pontes-cais existentes no Porto Interior - às quais continua a renovar as licenças de ocupação - e bem assim, ii) no que concerne ao licenciamento de novas construções recentemente edificadas no espaço físico onde alegadamente deveria ser construída a nova via pública exclusiva para autocarros;
20. Demonstra que não existe qualquer vontade efectiva da Administração em prosseguir com a implementação da via referida no relatório da DSAT com o n.º 2065/DDPT/2010 de 15 de Dezembro, porque se assim fosse, não teria sido deferido nenhum pedido de renovação da licença de ocupação das restantes Pontes-cais que integram o Porto Interior;
21. Ora, pelas razões acima expostas e na modesta opinião do ora Recorrente, o indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação da Ponte-cais n.º YZ da administração configura um vício de desvio de poder;
22. Pelo que, confrontada a fundamentação do despacho n.º 58/DAPE/ATJ/2011 da Capitania dos Portos de Macau anexo ao despacho do Sr. Secretário das Obras Públicas e Transportes de que ora se recorre, verifica-se que não poderá existir, por parte da administração, uma verdadeira intenção de prosseguir com a construção da via exclusiva para autocarros, pelo que deverá julgar-se procedente o vício de desvio de poder.
23. Finalmente, como referido supra, o acto em apreço viola directamente direitos fundamentais reconhecidos pela RAEM;
24. O essencial é o direito de propriedade da ora Recorrente sobre as edificações existentes no local.
25. Foi, portanto, por acto inter vivos e oneroso que a Recorrente assumiu a propriedade da referida ponte e suas edificações já existentes;
26. É que, essas edificações já existiam antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho;
27. Ao suceder na posse da referida Ponte-cais por acto inter vivos, a posse do Recorrente deverá ser considerada como posse formal existente desde o primeiro possuidor da aludida Ponte-cais, ou seja, pelo menos desde meados do século passado;
29. Durante todo esse período possessório, e tendo exercido pelo menos desde 1993 a mesma, sobre o referido imóvel, todos os actos inerentes ao direito de propriedade, a Recorrente encontra-se em condições de ver o seu direito reconhecido judicialmente;
30. Do exposto resulta que a qualificação da ora Recorrente como proprietário das edificações existentes da ponte em causa, é incompatível com o efeito útil que se pretende com o acto recorrido, que configura uma verdadeira expropriação gratuita e injustificada;
31. Considerando que, como se demonstrou supra, a ora Recorrente é possuidora da referida Ponte Cais cujas edificações foram construídas antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho.
32. Ao contrário da aludida Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho, a Lei 6/73 de 13 de Agosto só estabelecia a reversão gratuita das construções em casos de violação do particular das suas obrigações;
33. Nesta medida, o acto é anulável, por violar directamente o direito da Recorrente, enquadrável no âmbito do n.º 4 do artigo 5º da Lei de Terras; Por violar i) o artigo 17º da Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho e ii) a Lei 6/73 de 13 de Agosto (a contrário).
TERMOS EM QUE, requer-se a V. Exas. se dignem dar provimento ao presente recurso e em consequência anular o despacho do Senhor Secretário para os Transportes que anule o acto recorrido que indeferiu o pedido de renovação de licença de ocupação precária da Ponte-Cais n.º YY do porto interior e da desocupação no prazo de 30 dias da referida Ponte – Cais».
*
O digno Magistrado do MP opinou no sentido do improvimento do recurso.
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Cumpre decidir.
***
II - Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As pares gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1- “Companhia de Importação e Exportação A Limitada” dedica-se à actividade de importação e exportação de pescado e marisco e, bem assim, à exploração de actividade de aluguer de espaço para atracação de embarcações.
2- Adquiriu em 12/10/1993, por trespasse a B, C e D a licença de ocupação a título precário da ponte de atracação nº YY.
3- Na sequência desse trespasse solicitou à Capitania dos portos do Governo de Macau em 19/10/1993 a transmissão para seu nome da licença de exploração da Ponte-Cais nº YY, o que lhe foi deferido por ofício de comunicação de 21/10/1993.
4- Desde então tem a requerente vindo a explorar a referida Ponte-Cais no Porto Interior, local onde além de instalado um estabelecimento de venda de peixe e marisco, se encontram atracadas diversas embarcações e está albergada a sua sede social.
5- Anualmente a requerente vinha ocupando a referida ponte a título precário mediante licença, tendo, na sequência da comunicação de fls. 00707 do apenso instrutor ao presente Recurso Contencioso (2º Vol.) da Capitania dos Portos, sido apresentado pedido de renovação da licença, que lhe foi concedida para vigorar no período de 01/01/2010 até 31/12/2010 (fls. 00714 do cit. apenso).
6- Em 14/10/2010 a requerente solicitou a renovação da licença de ocupação da mencionada Ponte-Cais até 31/12/2011 (fls. 0766 do apenso instrutor, Vol. 3).
7- O Director da Capitania, por ofício de 31/03/2011 notificou a requerente para, em audiência prévia, se pronunciar sobre o eventual indeferimento da renovação (fls. 5 a 10 do apenso “Traduções”)
8- A requerente apresentou em 15/04/2011 resposta escrita em audiência (ver fls. 1058 apenso Rec.).
9- Por ofício da Capitania dos Portos de Macau (Ref. SATJ1100196C), datado de 11/07/2011, foi o recorrente notificado nos seguintes termos (997 a 1003 do p.a., e tradução a fls. 28 e sgs. do apenso “Traduções”):
  “Avenida da ......, n.º …, ….º Andar
  ......LAWYERS
  Sr. Advogado F
  
Assunto: Indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior
  Ex.mo Senhor:
  De acordo com o despacho de 5 de Julho de 2011 proferido pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas na proposta n.º 57/DAPE-ATJ/2011 da Capitania dos Portos de Macau, notifica-se, designadamente:
1. O indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior;
2. O requerimento, ao antigo titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, ou seja, a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada (A貿易有限公司),de proceder, no prazo de 30 dias, à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
  Nos termos do art.º 149.º do Código do Procedimento Administrativo, o interessado pode apresentar a reclamação para o Secretário para os Transportes e Obras públicas no prazo de quinze dias a contar a partir da data da recepção desta notificação.
  Nos termos do art.º 25.º, n.º 2 do Código de Processo Administrativo Contencioso e do art.º 36.º, al. 8) da Lei n.º 9/1999, republicada pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 265/2004, o interessado pode, querendo, recorrer da decisão para o Tribunal de Segunda Instância da RAEM no prazo de 30 dias a contar a partir da data da recepção desta notificação.
  O interessado pode dirigir-se, nas horas de expediente, para o centro de registo e de execução de licenças do Departamento de Assuntos Portuários e Embarcações no Edifício da Capitania dos Portos de Macau para o acesso aos processos da ponte-cais n.º YY do Porto Interior.
  Constante do anexo desta notificação o extracto integral da proposta n.º 57/DAPE-ATJ/2011 da Capitania dos Portos de Macau.
  Com os melhores cumprimentos.
   Director
  (Ass. Vide o original)
  XXX
Notifique-se à Companhia de Importação e Exportação A, Limitada ; duplicados para DAPE, DATM.

  Anexo
Extracto integral da proposta n.º 57/DAPE-ATJ/2011 da Capitania dos Portos
Com referência ao pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, apresenta-se o relatório, designadamente:
  Parte I Relatório
  1. Foi emitida à Companhia de Importação e Exportação A, Limitada (A貿易有限公司)(registo comercial n.º …… SO), em 1994, a licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior. A licença é válida pelo período de um ano e é renovável cada ano.
  A Capitania dos Portos emitiu em Dezembro de 2009 à Companhia de Importação e Exportação A, Limitada a última licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior (n.º 257/2009), cujas informações se apresentam, designadamente:
- O titular da licença de ocupação a título precário: a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada;
  - Área ocupada: 310.00 metros quadrados
- Actividades autorizadas pela licença: actividades de comércio e serviços;
- Período de validade: de 1 de Janeiro de 2010 a 31 de Dezembro de 2010
  (v anexo 1 e anexo 2)
  A ponte-cais n.º YY do Porto Interior é composta por um edifício de dois andares e uma plataforma de madeira. A loja localizada no rés-do-chão e no sul da ponte-cais é “XXXXX”(XXXXX). Encontra-se geralmente nos fundeadouros da ponte-cais embarcações de pesca.
  2. A Companhia de Importação e Exportação A, Limitada requereu, em 14 de Outubro de 2010, à Capitania dos Portos, a renovação da licença de ocupação a título precário do ano 2011 da ponte-cais n.º YY do Porto Interior (v o anexo 3)
  3. Tal como sugeriu o ponto 6 do relatório n.º 2065/DDPDT/2010 de 15 de Dezembro de 2010 da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego: notifica-se aos respectivos serviços competentes a concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra, e sugere-se que os respectivos serviços reservassem os espaços das ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior para via pública, e que o desenvolvimento e plano dos edifícios na vizinhança tivessem de ter em conta a necessidade de reservar espaços para o trânsito. (v o anexo 4)
  4. Depois, em 25 de Fevereiro de 2011, realizou-se, entre os representantes da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro e Capitania dos Portos, uma discussão sobre as questões na concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra que têm relação com as ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior. Por estas duas ponte-cais serem bens do domínio público sem registos prediais, e serem ocupadas, a título precário, pelo titular da licença, entende-se viável que sejam reservadas as mesmas a fim da via pública.
  5. A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego emitiu em 10 de Março de 2011 o ofício n.º 1102017/06211DPT/2011 à Capitania dos Portos, cujo ponto 5 referiu que, considerando a partir do ponto de vista do trânsito integral de Macau e para coordenar a execução dos planos recentes e a longo prazo, é necessário e viável reservar as ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior para via pública. O ofício também sugeriu que a Capitania dos Portos adoptasse respectivas medidas para a cooperação da realização do respectivo plano. (v o anexo 5)
  6. Para o efeito de reservar a ponte-cais n.º YY do Porto Interior para via pública, não se pode deferir o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior. Além disso, deve o antigo titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, isto é, a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada proceder à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
  Tendo em conta a especialidade deste caso, a Capitania dos Portos precedeu à audiência escrita da Companhia de Importação e Exportação A, Limitada através do ofício n.º SATJ1100094E de 1 de Abril de 2011. Na respectiva audiência escrita, foi indicado que:
(1) A ponte-cais n.º YY do Porto Interior trata-se do bem do domínio público.
(2) O interessado não tem o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º YY do Porto Interior, por isso, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais.
(3) O interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º YY do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
  (v o anexo 6)
  7. O Sr. Advogado F de ...... LA WYERS apresentou, em 15 de Abril de 2011 e em representação da Companhia de Importação e Exportação A, Limitada, o parecer escrito para a Capitania dos Portos. (v o anexo 7)
  Parte II Análise
  8. Foi emitida à Companhia de Importação e Exportação A, Limitada, em 1994, a licença de ocupação da ponte-cais n.º YY do Porto Interior. A relação jurídica da ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior pela companhia foi regulada pela Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho (Lei do domínio público hídrico) que já entrou em vigor naquele tempo.
  De acordo com o anexo 2 da Lei n.º 1/1999 (Lei de Reunificação), a Lei n.º 6/86/M a Lei n.º 6/86/M não é adoptada como lei da Região Administrativa Especial de Macau. Todavia, enquanto não for elaborada nova legislação, pode a Região Administrativa Especial de Macau tratar as questões nela reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, tendo por referência as práticas anteriores.
  9. Não se encontra actualmente nenhum documento que comprove que a ponte-cais n.º YY do Porto Interior tinha sido uma propriedade privada ou possuída particularmente em 1 de Julho de 1870, nem documento do então Governo Português de Macau que comprovasse, de acordo com a Lei n.º 6/86/M, que a ponte-cais n.º YY do Porto Interior tinha sido uma propriedade privada.
  Por outro lado, o então Governo Português de Macau e o presente Governo da RAEM têm emitido licenças de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior.
  Nos termos da Portaria n.º 122/89/M de 31 de Julho, a ponte-cais n.º YY do Porto Interior localiza-se no domínio público hídrico.
  Com base nos factos acima referidos, considera-se bem do domínio público a ponte-cais n.º YY do Porto Interior.
  10. Nos termos do art.º 7.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República popular da China, os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
  Por ser bem do domínio público a ponte-cais n.º YY do Porto Interior, esta é propriedade do Estado. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão.
  11. A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego referiu no relatório n.º 2065/DDPDT/2010 de 15 de Dezembro de 2010 a concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as portas do Cerco e a Barra, e sugeriu que os respectivos serviços reservassem os espaços das ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior para via pública, e que o desenvolvimento e plano dos edifícios na vizinhança tivessem de ter em conta a necessidade de reservar espaços para o trânsito.
  12. No seu ofício n.º 1102017/0621/DPT/2011 de 10 de Março de 2011, a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego referiu que, considerando a partir do ponto de vista do trânsito integral de Macau e para coordenar a execução dos planos recentes e a longo prazo, é necessário e viável reservar as ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior para via pública.
  13. Nos termos do art.º 20.º, n.º 1 da Lei n.º 6/86/M, as concessões e as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado, se os terrenos dominiais forem considerados necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir.
  Pelo que, com base nas necessidades do uso comum ou de outro interesse público, o Governo da RAEM pode não autorizar a renovação da licença de ocupação a título precário do bem no domínio público hídrico
  14. Nestes termos, para o efeito de reservar a ponte-cais n.º YY do Porto Interior como via pública em cooperação com o desenvolvimento de trânsito integral de Macau, é obvia que o Governo da RAEM não pode deferir o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior.
Se o Governo da RAEM indefira o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada perderia o direito de utilização desta por a caducidade daquela licença. Caso assim, a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada tenha de proceder à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
  15. É previsto, tanto no Código Civil de 1966 (o art.º 202.º, n.º 2) como no Código Civil vigente (o art.º 193), que todas as coisas que se encontram no domínio público são consideradas fora do comércio e não podem ser objecto de direitos privados, nem apropriadas pessoalmente.
  Por encontrar-se no domínio público a ponte-cais n.º YY do Porto Interior, os seus direitos reais (incluindo o direito de superfície) não podem ser adquiridos ou transmitidos pessoalmente.
  Por o interessado não ter o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º YY do Porto Interior, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais.
  16. Nos termos do art.º 20.º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 6/86/M, as concessões e as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado, se os terrenos dominiais forem considerados necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir; a revogação das licenças não confere ao interessado direito a qualquer indemnização, podendo ser levantadas as benfeitorias que não afectem a utilidade económica do terreno.
  Nos termos do art.º 75.º da vigente Lei de Terras, o ocupante não tem direito de levantar as benfeitorias introduzidas no terreno nem de ser indemnizado por elas, qualquer que seja o motivo do termo da ocupação, devendo, porém, ser reembolsado da importância da taxa correspondente ao tempo por que ainda teria direito a ocupar o terreno.
  Com base no disposto acima referido, o interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º YY do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
  17. Quanto à resposta escrita apresentada em 15 de Abril de 2011 pelo Sr. Advogado F em representação da Companhia de Importação e Exportação A, Limitada, entendemos que:
  (1) Em relação a que “...não pode dizer que o depoente ocupa a título precário a ponte-cais n.º YY” referido no ponto 2 da resposta.
  Segundo as informações da Capitania dos Portos, tanto a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada como o antigo utente ocuparam, a título precário, a ponte-cais n.º YY do Porto Interior usando a licença de ocupação a título precário. Por isso, tal perspectiva acima referida não é insustentável.
  (2) Quanto a que se referiu nos pontos 3 e 4 da resposta, “Em 1993 estabeleceu-se a companhia do depoente. Sendo um dos grandes accionistas da companhia, B (B) injectou a ponte-cais n.º YY no bem social da depoente. Ao longo dos anos, seja qual for a situação económica, o depoente tem explorado esta ponte-cais e lá construiu um prédio permanente de dois andares.”
  B foi o titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior. Porém, seja qual for a relação entre aquele e a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada, estes são dois indivíduos independentes, e também dois titulares diferentes de licença de ocupação quanto ao assunto de ocupação a título precário do domínio público hídrico. Tal companhia sucedeu, em 1994, a B, no direito à ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, devendo aquela considera de forma plena as naturezas jurídicas da respectiva ponte-cais e dos edifícios nela construídos.
  (3) Quanto ao plano de aproveitamento do porto interior referido nos pontos 5, 6 e 7 da resposta escrita
  O Plano de Reordenamento do Porto Interior, aprovado pela Portaria n.º 218/90/M, na redacção dada pela Portaria n.º 171/95/M e Ordem Executiva n.º 5/2002, determina um planeamento global dos fins a que as pontes-cais se destinam. Todavia, tal Plano de Reordenamento do Porto Interior não concede a ninguém o direito à ocupação permanente das pontes-cais a título precário.
  (4) Quanto ao estudo prévio do edifício e às obras de alteração/legalização referidos nos pontos 8, 9 e 10 da resposta escrita Tal estudo prévio não é autorizado oficialmente.
  Nenhuma obra de beneficiação realizada no terreno de domínio público ocupado a título precário não altera as naturezas jurídicas deste e dos edifícios nele construídos.
  (5) Quanto a que se referiu na resposta, “o depoente já pagou a taxa de renovação do ano 2011”
  A Capitania dos Portos cobra, de acordo com a lei, a taxa de ocupação apenas aquando da emissão da licença de ocupação a título precário. Relativamente à ponte-cais n.º YY do Porto Interior, a Capitania dos Portos nunca requereu que a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada pagasse a taxa de ocupação a título precário, nem que esta companhia pagou tal taxa.
  (6) Quando a que “o depoente pediu que fosse reconsiderada a decisão de devolução da ponte-cais n.º YY do Porto Interior ou que lhe fosse concedida outra parcela de terreno...” referido na resposta escrita.
  A ponte-cais n.º YY do Porto Interior trata-se do bem do domínio público. Com base nas necessidades da abertura dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra, a ponte-cais n.º YY do Porto Interior pode ser devolvida ao Governo da RAEM para outro plano de aproveitamento após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
  Quanto à concessão de outra parcela de terreno ao depoimento, não há fundamentos de direito correspondentes a ser citados.
  (7) Conclusão
  Quanto às opiniões importantes referidas na audiência escrita, como “a ponte-cais n.º YY do Porto Interior trata-se do bem do domínio público” e “por o interessado não ter o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º YY do Porto Interior, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais” e “o interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º YY do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário”, estas não foram contraditas com fundamentos de direito e de facto na resposta escrita.
  Faltam fundamentos de direito ou de facto aos pedidos e alegações referidos na resposta escrita.
  Parte III Sugestão
  18. É necessário reservar os espaços das ponte-cais nºs YZ e YY do Porto Interior para via pública para o efeito dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra. Atentas as alegações e análises acima referidas, é de sugerir:
  18.1 O indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior;
  18.2 O requerimento, ao antigo titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º YY do Porto Interior, ou seja, a Companhia de Importação e Exportação A, Limitada (A貿易有限公司), de proceder, no prazo de 30 dias, à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau”.
10- O Director da CAPITANIA DOS PORTOS, pronunciou-se do seguinte modo (cfr. 982 do apenso ao proc. principal e tradução de fls. 15 do apenso aos presentes autos designado “traduções”):
“Parecer
1. Concordo com a sugestão;
2. Submete a despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas.
21/06/2011
XXX (XXX)”
11- Entretanto, o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas proferiu o despacho de 5/07/2011, com o seguinte teor: (cfr. fls. 982 do apenso e tradução de fls. 15 do apenso “traduções”):
“Despacho
Concordo com as opiniões e as sugestões nesta proposta
Secretário para os Transportes e Obras Públicas
(Ass. Vide o original)
05/07/2011
XXX(XXX)”
12- As restantes ponte-cais continuam em funcionamento.
***
IV- O direito
1- Vício de forma por falta de fundamentação
Foi este o primeiro vício invocado. Diz a recorrente que do acto administrativo comunicado não resultam expostos os factos, nem o direito aplicável. E, por essa razão, estariam violados os arts. 114º e 115º do CPA, que dispõem sobre o dever e o modo de fundamentar as decisões administrativas. E mais acrescenta que não cumpre aquele dever a decisão que se limita a remeter para proposta que não seja do conhecimento do destinatário do acto.
Ora bem. Parece-nos que a recorrente faz alguma confusão entre fundamentação e comunicação. Com efeito, diferentemente do que sucede no direito civil onde, em princípio, existe liberdade de forma na manifestação da vontade (art. 21º, C.C.), no direito administrativo a externação da vontade administrativa tem que obedecer a modelos mais ou menos rígidos, em ordem a um princípio de segurança e certeza nas relações jurídico-administrativas. Dir-se-á que não há liberdade de forma neste campo.

A regra é a de que os actos têm que aparecer pela forma escrita (art.º112º, nº1, C.P.A.), deverão conter certo número de menções e terão que obedecer a certos requisitos de fundamentação (art. 115º do CPA)2. Observado isto, o acto há-de ser levado ao conhecimento do interessado em certas circunstâncias e através de um dos modelos de publicidade referidos na lei (arts. 68º, 70º, 120º e 121º, do C.P.A.).
Do que não há dúvida, porém, é que a fundamentação tem que ser observada no procedimento concreto e no respectivo contexto decisório, isto é, deve ser contextual, por isso não se admitindo, geralmente, a fundamentação “a posteriori”. Mas, é precisamente por isso mesmo, isto é, por se entender que cumpre o requisito da contextualidade a chamada fundamentação por remissão, aquela através da qual o autor do acto remete os seus fundamentos para o conteúdo de pareceres, informações ou propostas (art. 115º, nº1, do CPA).
Foi o que aqui sucedeu, tal como, de resto, a recorrente reconhece. De modo que sobre o assunto, pouco mais haverá que dizer, senão que a principal crítica que ela erige se foca na ausência de comunicação do teor do acto, o que é coisa bem distinta. Com efeito, viu-se ela na necessidade de pedir certidão a fim de se inteirar do conteúdo da proposta, que o acto assumiu e fez sua. Todavia, como é sabido, notificação e publicação são, no entanto, já actos extrínsecos ao acto decisor e a ele necessariamente posteriores. São veículos ou instrumentos de comunicação, por isso se dizendo instrumentais. E na medida em que cumprem essa singela função, não visam senão conferir eficácia externa ao objecto comunicado, dotando-o da necessária aptidão para a produção de efeitos, por isso também se intitulando integrativos de eficácia. Deste modo, um acto deficientemente notificado não é necessariamente ilegal, embora seja ineficaz3.
Assim, e como o pressentia a própria recorrente ao invocá-lo (art. 35º das alegações), o vício tem que ser julgado improcedente.
*
2- Vícios de violação de princípios de igualdade, proporcionalidade, justiça e desrazoabilidade
No que a estes vícios respeita, a censura que a recorrente dirige ao acto centra-se na circunstância de ele, enquanto atenta contra os seus interesses, deixa intocados os interesses de outros ocupantes de ponte-cais no mesmo local e em igualdade de circunstâncias. Ou seja, insurge-se contra o sacrifício do equipamento que explora, enquanto o de outros permanece em actividade por outros operadores. E nisso estaria o desrespeito pelo princípio do art. 5º do CPA na vertente da igualdade ali estabelecida.
Não nos parece. Com efeito, embora as restantes ponte-cais continuem a sua laboração, a verdade é que os elementos do procedimento administrativo fornecem a razão para o sacrifício desta: o alargamento da via a fim de permitir um corredor exclusivo para autocarros com destino à Barra e origem nas Portas do Cerco. É certo que outras estruturas deste tipo existem no local e, por isso, aparentemente todas haveriam de ser atingidas pelo mesmo sacrifício. Todavia, só mesmo aparentemente é possível tal raciocínio.
Se o princípio da igualdade visa acautelar e proteger os cidadãos da actuação administrativa discricionária, ele por outro lado só lhes acode se as situações de facto forem realmente as mesmas. Isto é, a igualdade de situações materiais (cfr. ainda art. 25º da Lei Básica), visando a proibição do arbítrio, impõe igualdade de tratamento, enquanto a desigualdade de situações já não obsta a diferentes soluções administrativas. A diversidade de situações – mesmo que com fortes pontos de contacto – não pode gerar a violação do princípio. É o que a mais representativa jurisprudência local vem defendendo4.
Ora, como resulta do processo administrativo, a situação de todas as ponte-cais não é exactamente igual. Umas encontram-se instaladas em zonas da via em que esta é mais larga, não sendo necessária a ocupação do seu espaço para vir a poder suportar o fluxo exclusivo de veículos pesados de passageiros. Mas as pontes YZ e YY situam-se num ponto onde a via tem pouco mais de 3 metros de largura, o que do ponto de vista técnico, e atendendo ao fim rodoviário a que ela tende, se mostra ser escasso. Foi essa a justificação para somente estas duas pontes deverem ser removidas, algo que se não mostra desrazoável, nem ofensivo sequer do senso comum imanente a qualquer cidadão normal minimamente atento à problemática do trânsito rodoviário no meio citadino. Portanto, sendo diferentes os casos em que se encontram estas duas estruturas relativamente às outras, não encontramos motivo para poderem ser salvas da demolição, apenas porque as outras se manterão de pé. E, o que vai dar no mesmo, não se entende que a violação do princípio (art. 5º, nº1, CPA; 25º da Lei Básica) se mostre verificado, apenas por não terem sido renovadas as licenças relativas a estas duas.
Mas a recorrente ainda defende que a solução tomada prejudica exclusivamente o seu direito e o de G, detentores das referidas pontes YY e YZ, respectivamente. No seu critério, a decisão impugnada é desproporcional, inadequada e injusta.
Ora, como a recorrente reconhece, o quadro da actuação administrativa em causa é de discricionariedade. A solução que a Administração encontrou tem assento no exercício de poderes discricionários, no respeito pelo interesse público por ela prosseguido e na ponderação dos interesses particulares que com aquele outro possam estar em conflito.
O que a recorrente pensa, mesmo que o não tenha expressado com esta carga, é que, para realizar o interesse público subjacente, a Administração se excedeu, foi além do que devia e podia, atingiu um núcleo de direitos e interesses que mereciam outra atenção, outro cuidado, outro sopesamento que evitasse tamanhos prejuízos na sua esfera. E isso traduziria a hipótese da norma que conforma o princípio da proporcionalidade (art. 5º, nº2, do CPA), segundo a qual “As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar”.
Em boa verdade, tanto quanto nos é dado perceber, a recorrente dificilmente conseguiu concretizar a imputada violação, por difícil lhe ser contornar o peso maior que o interesse público nesta disputa parece merecer. Com efeito, esta proporcionalidade levada ao princípio acolhe a noção de solução plúrima, isto é, transmite a ideia de que só é desproporcional a medida se outra pudesse ter sido tomada com menor gravame ao interesse privado conflituante, se diferente e com melhor equidade de meios e de resultados pudesse ser adoptada a resolução do caso. E isto porque, deste modo, a prossecução deste projecto de construção de via apenas para autocarros não só afectou a renovação da licença de ocupação das pontes, como impede a continuação de toda a actividade da recorrente e a manutenção da sua sede social no local. Coisa que, em seu entender, parece ir além dos limites da adequação e da proporcionalidade, como até da própria justiça.
Compreendemos, sinceramente, a posição da recorrente. O que sucede é que, se a Administração no uso dos seus poderes discricionários e para não ferir o princípio da proporcionalidade, tem que ser comedido e procurar a solução de menor dano ao interesse particular – reconhecendo-se-lhe, assim, a escolha da boa solução – ela aqui não teria outra opção que pudesse tomar em prejuízo desta. Isto é, para a via passar neste local, os estudos terão certamente levado em consideração tanto o local de partida, como o da chegada. Terá sido o trajecto mais aconselhável, o menos danoso: a não ser este, muito provavelmente outro não haveria, ou se o houvesse, teria que ser muito mais gravoso aos interesses envolvidos. Isto é o que pensamos ter acontecido. Mas para que não pudéssemos assim pensar, deveria a recorrente ter trazido aos autos uma outra leitura da situação, uma configuração diferente da satisfação do interesse público, que se haveria de bastar com um trajecto diferente deste ou com um traçado que não implicasse o sacrifício das pontes em apreço.
E havia essa possibilidade? Não sabemos. A ser assim, teremos que aceitar como boa a solução do trajecto e do traçado da via, e nem outra poderá ser a posição do tribunal ante o carácter técnico da opção. E porque assim é, difícil ou impossível seria a salvaguarda dos interesses da recorrente na medida em que se não vê como pudesse ser desenhada uma nova via para o local e para aqueles fins sem o alargamento no ponto onde ela é actualmente mais estreita. Dito por outras palavras, a decisão da Administração é idónea, porque permite a circulação naquele trajecto de autocarros de passageiros entre dois pontos nevrálgicos da cidade, descongestionando outras artérias (eventualmente, atenuando até os efeitos da poluição). Por outro lado, a recorrente não pôs em crise a ideia de que a medida é necessária, isto é, não demonstrou que outras havia com menor sacrifício. E não o tendo feito, admite-se que ela seja fundamental à resolução do desiderato que presidiu à sua tomada. Neste sentido, a recorrente não conseguiu evidenciar nenhum grave desequilíbrio de interesses na correlação de forças envolvidas, porque o sacrifício dos seus não é desmesurado em relação ao imenso benefício que para a cidade e para os seus cidadãos resulta do alargamento da via. Portanto, não sufragamos a ideia de desproporcionalidade que defendeu.
E, para terminar este item, para densificar a violação do princípio não basta dizer que a obra poderá demorar a ser iniciada e a ser concluída, como se quisesse a recorrente relevar o argumento de que não havia pressa na não renovação da licença. É que, como opina o digno Magistrado do MP, as obras de grande envergadura, como esta, precisam de tempo. Tempo para a ideia, para eventual estudo de impacte ambiental, para o plano; tempo para o projecto propriamente dito, para o concurso de adjudicação, para a selecção do adjudicatário; tempo para a ultimação de preparativos no local com realojamentos eventuais, demolições prévias, estabelecimento de estaleiros, aterros, etc, etc. Tudo tem que ser feito com planeamento e com tempo. A não renovação enquadra-se nesta perspectiva, isto é, mesmo que o termo da renovação em curso não coincida com o início da obra, isso não significa que estejamos perante um “tempo morto” que pudesse ser aproveitado pela recorrente para a manutenção da sua actividade na ponte.
E a mesma razão leva-nos a rechaçar a ideia de injustiça que a recorrente aponta ao acto, como se entrevisse na actuação administrativa a violação do art. 7º do CPA.
Quanto a nós, injusto seria que os utentes dos transportes públicos que se deslocam da Barra para as Portas do Cerco, e vice-versa, não pudessem percorrer o trajecto em condições mais rápidas (a intenção também é a de transformar a artéria, na medida do possível, em via rápida para autocarros) e com outro conforto; injusto seria que os condicionamentos na zona do Porto Interior não fossem resolvidos e se arrastassem sem solução, com congestionamentos no trânsito e atropelos até à saúde dos utentes, transeuntes e moradores; injusto seria se, havendo uma solução que a todos beneficia, não pudesse ela ser adoptada por causa de poucos por ela prejudicados. Não é que a justiça se meça por padrões aritméticos ou de quantificação de lesados, mas sem dúvida que esse aspecto também tem que entrar na equação consoante os casos.
E se isto dizemos da justiça, tautologicamente o assimilamos à desrazoabilidade invocada, cujo assento se teria que colher do art. 21º, nº1, al. d), do CPAC. Quer dizer, as razões expostas para consideramos não injusto o acto sindicado são as mesmas que ora invocamos para não o acharmos desrazoável. Não cremos necessário desenvolver mais a ideia, sob pena de inutilmente nos repetirmos.
*
3- Desvio de poder
Este foi outro dos vícios de que, segundo a recorrente, o acto está inquinado.
Como se sabe, para fazer vingar este vício o recorrente tem que demonstrar uma actuação administrativa motivada por interesses contrários ao interesse público para cuja satisfação a lei concedeu à Administração poderes discricionários. Além disso, forçoso é também que demonstre que aqueles “interesses contrários” foram determinantes, ou que pesaram decisivamente, na decisão5.
Ora bem. O interesse público tem ínsita a ideia de interesse comum, que favorece a totalidade ou pelo menos uma parte significativa de uma determinada comunidade. Como diz, por exemplo, M. REBELO DE SOUSA, e nisto outros autores estão de acordo, que «só estamos perante um interesse público quando as necessidades a satisfazer são colectivas e o processo de satisfação é assumido pela colectividade, ela própria»6. Ou, como se exprime RAMON PARADA, «o interesse de um ou de alguns indivíduos não é de natureza pública»7.
O interesse público é, assim, aquele que respeita à existência, conservação e desenvolvimento da colectividade política e socialmente organizada, daí que esteja presente em todas as normas jurídico-administrativas8. É o interesse colectivo, o interesse geral de uma comunidade, é o bem comum (bem comum que representa «aquilo que é necessário para que os homens vivam, mas vivam bem», segundo São Tomás de Aquino) que se associa à satisfação de necessidades colectivas. Sendo assim, trata-se de uma noção que acentua a ideia de interesse geral ou interesse comum de modo a favorecer a totalidade ou pelo menos uma parte importante de uma comunidade. Um interesse público, geral, colectivo, comum, é assim um interesse objectivo, insusceptível de individualização: por pertencer a um grupo indiferenciado, não se identifica com os interesses próprios dos seus membros.
Contrapondo-se a ele, existe o interesse privado, ligado a necessidades individuais, subjectivamente sentidas, expressas em tendências, desejos ou atitudes pessoais. O interesse privado é, desta maneira, um interesse do indivíduo singularmente considerado. Daí, também, que na função administrativa a Administração se paute por directivas positivas e negativas, devendo ser no diálogo permanente que estabelece com os membros da comunidade que se deve encontrar o justo equilíbrio entre os interesses de cada um dos pólos da relação, procurando no fundo uma composição de interesses ou um acerto nos conflitos.
Parece entender a recorrente que a Administração se subjugou a um interesse principalmente determinante não consentâneo com o fim depositado na norma ao conceder à Administração aqueles poderes discricionários (art. 20º da Lei nº 6/86/M, de 26/07: segundo o qual as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado, se os terrenos dominiais forem considerados necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir).
E para assim concluir, disse inexistir qualquer vontade efectiva da Administração em prosseguir com a implementação da referida via, porque, caso contrário, não teria deferido nenhum pedido de renovação da licença de ocupação das restantes pontes-cais que integram o Porto Interior.
Mas, se esta é a sua opinião a respeito da caracterização concreta do vício, parece que ele terá mesmo que improceder. Em primeiro lugar, porque não se colhe da alegação se, para a recorrente, o fim principalmente determinante é outro interesse público ou o interesse privado dos restantes titulares de licenças para ocupação das pontes-cais. E era preciso dizer e provar qual ele era, com recurso a factos. Por outro lado, como já vimos, o sacrifício dos interesses privados não teria que estender-se a todos os ocupantes das ponte-cais, mas sim e apenas aos que exploram as que têm os nºs YZ e YY. Não vemos, pois, onde foi a recorrente deduzir que a nova via implica a destruição da totalidade ou da maioria das pontes-cais, se tal não resulta do p.a., nem dos autos. Daí que o facto de continuar a renovar as licenças aos restantes ocupantes não significa, nem que a Administração tenha abandonado o projecto, nem que queira favorecer aqueles ocupantes, muito menos que queira dolosamente prejudicar a recorrente.
E também não acode à recorrente a alegação de que, tal como sucedeu para a implementação do metro ligeiro, haveria que proceder a uma consulta ou discussão pública à população, a qual se iria arrastar por um período muito superior à duração da licença, uma vez que a construção da via em questão obriga a uma profunda alteração da estrutura viária e habitacional de uma parte significativa da península de Macau. Trata-se de um argumento compreensível à luz do pensamento comum, mas pouco sustentável à luz do pensamento jurídico. Ainda não existe em Macau um regime legal geral, nem sectorial, que saibamos, que determine e defina os casos de consulta pública necessária e o modo de processamento9. Logo, não é possível afirmar que ela tivesse que existir no caso presente e que, havendo-a, haveria tempo para a pretendida renovação.
Sendo assim, não vemos que a Administração tenha exercido aqueles poderes discricionários para uma finalidade diversa da depositada na norma. O que equivale a dizer que se não pode dar por procedente o correspondente vício.
*
4- Violação de Lei e direitos constituídos
Vem, por fim, a recorrente invocar a propriedade sobre as edificações existentes no local, na sequência de trespasse com os anteriores titulares da licença de uso precário. Para o efeito, diz que elas já existiam há mais de 75 anos e, portanto, antes do Código Civil de 1966 e até mesmo da Lei nº 6/86/M, de 26 de Julho e eram propriedade daqueles a quem as tomaram de trespasse. Acha, por isso, que se encontra com direito a ver reconhecido o direito de foreiro no âmbito de uma concessão por arrendamento, uma vez que tanto o permite o nº4, do art. 5º da Lei de Terras.
Em 1º lugar, segundo resulta do p.a., a ocupação das pontes-cais em apreço era feita sob licença a título precário. A própria reconhece isso, o que em tese fecharia a porta à posição jurídica substantiva reclamada por si. E se a questão que agora suscita a respeito da propriedade da edificação ou, até mesmo, do domínio útil usucapível a encaminha para a densificação de mais um vício, antes de mais nada cumprir-nos-ia dizer que tal questão se nos apresentaria prévia e eventualmente prejudicial à solução do presente pleito, circunstância que nos aconselharia o accionamento do princípio da devolução facultativa a que se refere o art. 14º do CPAC.
Todavia, a tanto não nos leva a observância do poder ali inscrito, uma vez que sobre este tema concreto pode este tribunal emitir pronúncia e dispositividade desde já.
A questão só pode ter uma solução. É aquela que a entidade recorrida defende e à qual o digno Magistrado do MP adere nos seguintes termos:
«Dispondo, alem do mais, o art. 7º da LBRAEM que “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Maca” e tendo o acórdão do Venerando TUI, proferido no âmbito do proc. nº 32/2005, publicado no BO, II série, de 2/08/06, consignado que “Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor dos particulares, dos referidos terrenos através de decisão judicial, independentemente de acção a ser proposta antes ou depois da criação da Região”, todo o argumentado pela recorrente, sendo estimável, se revela inócuo, já que, não tendo, quer antes, quer depois do estabelecimento da RAEM, logrado estabelecer o registo a seu favor do direito de propriedade, ou outro qualquer direito real, designadamente de concessão por aforamento ou qualquer outro direito real sobre a dita ponte-cais, constatando-se a existência, apenas, de mera licença de ocupação a título provisório emitida pela Capitania dos Portos, nada lhe permitindo arrogar-se, como o faz, neste domínio»10.
Remetemos para a transcrita posição a nossa decisão. Todavia, reforçamo-la com um expressivo aresto deste mesmo TSI (Ac. de 27/05/2010, Proc. nº 662/2009), que se debruçou sobre a propriedade e dominialidade das pontes-cais. E, por isso, face à especificidade do tema ali tratado, dele nos socorremos com a devida e respeitosa deferência, transcrevendo o trecho que ao caso melhor serve:
“ (…) De acordo com o art. 1 ° da Lei n° 6/86/M, de 26 de Julho (Lei de Domínio Público Hídrico), pertencem ao domínio público hídrico do Território os leitos e margens das águas navegáveis ou flutuáveis confinantes com o Território, as praias e os cais, pontes-cais, rampas de alagem e crenagem e planos ou carreiras de construção e reparação (sublinhado nosso).
É evidente, assim, que a Ponte-cais n.º … pertencia ao domínio público do então Território de Macau, por comando da Lei promulgada em 1986.11
Como se sabe, estão fora do comércio todos os bens pertencentes ao domínio público (art. 202°, n.º 2 do C. Civi1 66, e art. 193°, n.º 2 do C. Civi1 99). Tendo assim definido a natureza do terreno em causa, passaremos a examinar se a Ré, ora recorrente, tem razão.
(…)
Prevê o art. 1524° do C. Civil 66 (art. 1417° do C. Civil 99) que "O direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter; perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações."
E o direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião e pode resultar da alienação de obra já existente, separadamente da propriedade do solo. (art. 1528° do Civil 66, e art. 1421º do Civil 99).
Da matéria de facto dada como provada, é patente não haver contrato ou testamento que puderam criar o direito de superfície a favor da Ré. Mas a verdade é que a Ré ocupava o terreno em causa por força da licença passada pela Administração, e até continua a ocupá-lo, não obstante a não renovação da licença.
Resta assim a terceira possibilidade de aquisição.
3. Da usucapião do direito de superfície
A Ré veio sustentar a sua aquisição originária por via de usucapião.
Resulta claramente do art. 1287º do C. Civil 66 (art. 1212º do C. Civil 99) que o que é relevante no instituto de usucapião é a posse, que deve ser correspondente a determinado direito do gozo objecto da aquisição por usucapião, mantida por certo lapso do tempo, e a qual se consiste em dois componentes -, um destes, é o corpus, e o outro é o animus.
Deste modo, só quando se logram provar simultaneamente, a existência deste dois componentes, com duração do certo período de tempo, é que é possível a usucapião.
O corpus traduz-se em actos exercidos pela Ré correspondentes ao exercício do direito de superfície, que são idóneas de concretizar o seu poder de facto, enquanto o animus traduz na convicção na mente da mesma de que é titular do direito.
Importa acrescentar ainda um elemento indispensável para que a usucapião possa operar. Trata-se da sua invocação, elemento este que tem sido negligenciado nos nossos Tribunais, mas esse elemento não deixa de ser o detonador da demonstração da situação jurídica que se visa patentear. O que tem assento legal no requisito da activação da prescrição aquisitiva positiva – art. 296º (invocação) e 1213º (“Invocada a usucapião...”) do CC. 12
Antes de fazer uma abordagem quanto a verificação da posse, convém examinar o instituto do domínio público hídrico, o qual regia os direitos e obrigações entre o Governo e a Ré, sendo certo que estava sujeita a este instituto.
Neste diploma legal preceitua-se que os terrenos pertencentes ao domínio público hídrico podem ser objecto de uso privativo nas modalidades de concessão por arrendamento ou de uso ou ocupação a título precário. (art. 11º da Lei de Domínio público Hídrico).
Sustenta a Ré que, "tratando-se os mencionados edifícios, como efectivamente se tratam, de infraestruturas sólidas, fixas e indesmontáveis, a autorização para a sua reconstrução ou aplicação faz presumir a existência de qualquer outro direito que não uma simples licença, dada a precariedade desta."
O art. 12º do mesmo diploma, que indica que são objecto de concessão por arrendamento os usos privativos que exijam a realização de investimentos em instalações fixas e indesmontáveis e sejam considerados de utilidade pública, e são objecto de licença todos os restantes usos privativos.
Assim sendo, o exercício de actividades adstritas à função económica dos portos (art. 12°, n.° 2, al. b) levado a cabo pela Ré, para além de ser considerado como sendo de utilidade pública, exige realização de investimentos em instalações fixas e indesmontáveis, isto, como o que sucede neste caso, a construção de dois edifícios. Por essa natureza, uma concessão por arrendamento afigurar-se-ia mais adequada a fim de conformar a actividade da Ré.
Seja como for, a verdade é que à Ré nunca foi concedida uma concessão por arrendamento. Quanto a este é ainda pertinente o art. 25º da Lei de Domínio público Hídrico.
Este artigo, por um lado, preceitua que as ocupações por licença autorizadas antes da entrada em vigor desta lei passam a reger-se por esta, sem necessidade de substituição do título. Por outro, abre a porta a que os actuais titulares de licenças de parcelas do domínio público hídrico, que possam ser objecto de concessão por arrendamento, devem requerer, no prazo de seis meses, contado da data da entrada em vigor desta lei, a sua conversão nesta modalidade de uso privativo.
Se se perguntar a razão por que o Governo não autorizou o exercício portuário desenvolvido pela Ré através duma concessão, das duas uma: ou o seu pedido foi indeferido pelo Governo ou nem sequer o tinha formulado.
Não tendo requerido a conversão ao Governo, só poderia continuar, como o que acontece à Ré, a reter um título precário (licença de ocupação), o qual carece de renovação periódica do Governo.
Por isso, enquanto todos os direitos que a Ré gozara tinham por origem a licença, devia ela actuar conforme os seus limites, não podendo, porém, vir questionar retroactivamente se a forma empregada pela Administração (licença) era adequada ou não.
Há-de aceitar, desta feita, que o uso privativo consentido em relação ao terreno em causa é titulado por um acto unilateral da Administração, que reveste a forma de licença13 que não deixa de assumir a forma de um título precário14.
Portanto, o regime da licença tem por natureza a simplicidade do processo, prazo curto, precariedade dos poderes de uso, inexistência de um dever de utilização efectiva, menores direitos e garantias, qualificação de interesse privado15.
(…) é de concluir que todos os actos materiais praticados pela Ré, ao longo dos anos e na dominalidade da ponte-cais n° …, foram praticados completamente em consonância, e, aliás, dentro dos limites da licença de ocupação.
Deste modo, não se pode deixar de concluir que a Ré, enquanto ocupando o terreno, não é mais do que um detentor, que detém todo o prédio, ora a ponte-cais n.º …, apenas em nome do então Território e da R.A.E.M.16
(art. 1177º do C. Civil). Dum ponto de vista objectivo, os actos praticados pela Ré não deixam de ser tão-só os de concretização e execução durante a sua detenção do terreno legitimada pela licença e que nunca se manifestaram como corpus do direito de superfície, nem sequer muito menos, revelam o animus da Ré.
Como é evidente, uma mera detenção em nome de outrem é insusceptível de dar azo a aquisição por usucapião.
Sob outro prisma, não se provou, nem se suscitou qualquer outro meio de aquisição originária da posse, como por exemplo, a inversão da posse, donde seja de excluir a possibilidade de usucapião. Por fim, ainda que se aceitasse que a Ré tem a posse correspondente ao direito de superfície, certo é que este se toma insusceptível de ser adquirido por via de usucapião, depois da entrada em vigor da Lei Básica.
Ora, nos termos do preceito contido no art. 7° da Lei Básica:
"Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.
O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau."
A este respeito, decidiu bem o tribunal a quo ao afirmar que o invocado direito de superfície não foi reconhecido antes de 20 de Dezembro de 1999 e, como tal, torna-se inviável fazê-lo agora.
Deste modo, está legalmente vedada a constituição por usucapião do direito de superfície de que as Rés se arrogam titulares”.
Tudo isto significa que o vício não pode proceder.
***
V- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 14 / 06 / 2012

(Relator) José Cândido de Pinho

(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong

Presente (Segundo Juiz-Adjunto) Mai Man Ieng Choi Mou Pan


1 Em sentido semelhante, Ac. TSI, 7/12/2011, Proc. nº 346/2010.
2 Ac. TSI, de 22/03/2012, Proc. nº 423/2011; 6/02/2012, Proc. nº 527/2010;
3 Em sentido semelhante, Ac. TSI, 7/12/2011, Proc. nº 346/2010.
4 Ac. do TUI, de 12/05/2010, Proc. nº 5/2010; mais recentemente, Ac. de 16/05/2012, Proc. nº 27/2012.
5 Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, pag. 394.
6 Lições de Direito Administrativo, I, pag. 146.
7 Derecho Administrativo, I, pag. 342.
8 Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, pag. 49.
9 A necessidade de um estudo de impacte ambiental (art. 28º da Lei de Bases do Ambiente: Lei nº 2/91/M, de 11/03), embora implique uma certa demora, não pode servir de amparo à alegação do recorrente, uma vez que nem sequer foi alegada a sua inexistência até ao momento. E mesmo que se entrevisse no art. 29º da mesma lei a necessidade de uma consulta pública (mas nem isso é seguro), tal não seria motivo para nos pormos ao lado da recorrente, pela simples razão de que ela pode já ter acontecido ou estar até em curso. Quer dizer, não pode ser a necessidade de observância de certos trâmites procedimentais mais ou menos demorados que haveriam de servir de apoio à defesa da tese da recorrente, de que, enquanto eles durassem, a licença poderia ser renovada. Sobre isto, apenas nos cumpre dizer que a oportunidade e a conveniência são conceitos e factores que só à administração cabe prosseguir na sua actuação concreta, sem que os possamos sindicar.
10 Ver tb. Ac. TUI, de 30/05/2012, Proc. nº 12/2012
11 1 As ponte-cais pertenciam sempre ao domínio público hídrico de Macau por força do art. 1º da Lei de Domínio público Hídrico. Daí que esta qualificação nunca mudou antes do estabelecimento da R.A.E.M., nem tão pouco por via dos diplomas legislativos invocados pelas partes (como a Portaria 122/89/M, de 31 de Julho), que respeita às margens, as quais não se confundem com as ponte-cais.
12 - Cfr. Pinto Duarte, ob. cit., 295; José Alberto Gonzalez, Dtos Reais, Dto Registral Imobiliário, 2001, 102; por todos, Oliveira Ascensão, ob. cit., 300.
13 FREITAS DO AMARAL, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, Lisboa, 1965, pág. 170 e ss.
14 4 MÁRIO TAVARELA LOBO, Manual do Direito de Águas, Vol. 1, Coimbra Editora, 1989, pág. 220.
15 FREITAS DO AMARAL, ibid, pág. 250-251.
16 Para o BERTHÉLEMY, os poderes de uso privativo derivado de licenças não passavam de meros poderes de facto, consentidos por um acto de pura tolerância; citado na obra do Prof. FREITAS DO AMARAL, ibid, pág. 254,
onde o próprio autor fez alguma crítica a tese do BERTHÉLEMY.
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