Processo nº 169/2012
(Recurso Cível)
Data: 21/Junho/2012
Assuntos:
- Contrato aleatório
- Risco do contrato
- Incerteza quanto à aquisição do objecto do negócio prometido
SUMÁRIO :
1. Tendo a A. adquirido a posição contratual da Ré num contrato de promessa de vários parques de estacionamento que ainda não eram detidos pela primitiva promitente vendedora e aceitado a transferência da sorte da acção judicial pendente obre esses parques para a sorte do negócio entre ambas celebrado, não só do ponto de vista jurídico, como também do económico, a ora recorrente tinha consciência do risco que assumia, isto é, sabia que iria perder o dinheiro pago à ora recorrida, em caso de impossibilidade do cumprimento do contrato resultante da perda da acção.
2. Verifica-se assim a celebração de um negócio sujeito a um risco que foi aceite pelas partes e assentava na incerteza de a cedente poder vir a adquirir os referidos parques.
3. Perante esse contrato não pode agora a A. pretender a resolução do contrato e a restituição do preço pago e contratualizado em condições que levaram exactamente em linha de conta aquele risco
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 169/2012
(Recurso Cível)
Data: 21/Junho/2012
Recorrente: A (A)
Recorrida: B (B)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A (A), mais bem identificada nos autos, vem recorrer da sentença proferida em 17/OUT/ 2011 por via da qual foi julgada improcedente a acção ordinária intentada pela Autora contra B (B), em que pedia a resolução de contrato e indemnização por alegado incumprimento de cessão de posição contratual relativa à transmissão de quatro lugares de estacionamento.
Para tanto, alega, fundamentalmente e em síntese:
1.ª - O Tribunal a quo considerou erradamente, e sem que o tenha fundamentado, que a acção judicial a que se refere a cláusula 5.ª do acordo de transmissão da posição contratual de 8 MAR 2006 seria a superveniente e, logo, temporalmente bastante posterior, acção n.º CV2-09-0067-CAO intentada em 15 SET 2009 e não a já então pendente à data desse acordo, ou seja, a acção a que o digno tribunal recorrido se refere na Alínea 6°) da Matéria Fáctica provada.
2.ª - Tal decisão a quo enferma nesse segmento tanto de erro na aplicação do direito aos factos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do arte 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C., como de falta de fundamentação, o que se invoca nos termos e para os efeitos do arte 571.°, n.º 1, al. b) do mesmo diploma.
3.ª - O Tribunal a quo errou igualmente quanto à correcta apreensão do alcance e quanto ao correcto entendimento do conteúdo do risco próprio de um qualquer processo judicial a que alude a referida cláusula 5.ª, julgado erradamente que houve uma desoneração da Recorrida pela recorrente mercê da aludida cláusula adveniente do "risco de perda da acção", não tendo apreendido que nunca se chegou a produzir o desfecho normal de um qualquer processo judicial, a prolação de uma decisão final quanto ao respectivo mérito ou fundo da causa.
4.ª - Tal decisão a quo enferma nesse segmento de erro na aplicação do direito aos factos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do arte 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C.
5.ª - O Tribunal a quo errou igualmente ao não ter apreendido, contrariamente ao que decidiram o T.J.B. no Arresto (apenso) n.º CV-10-0006-CAO-A e o T.S.I. no seu acórdão n.º 1018/2010 de 17 de Março de 2011, que com tal cláusula 5.ª apenas se assumiu o risco de, i) em caso de insucesso da acção já intentada para obter a propriedade dos parques de estacionamento e, cumulativamente, ii) em caso de não existir um comportamento da recorrente destinado a inviabilizar a possibilidade de ingresso da recorrente na posição de promitente-compradora, esta perder não mais que o direito de propriedade sobre tais parques, que não igualmente o direito a reaver o preço pago.
6.ª - Tal decisão a quo enferma nesse segmento de erro na aplicação do direito aos factos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do art. 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C.
7.ª - O Tribunal a quo errou ao não ter valorado e subsumido o comportamento da recorrida ao intentar a acção de 2009 como uma conduta directa e dolosamente violadora do acordo de transmissão da posição contratual celebrado em 2006, tomando incumprível a prestação que, contra o pagamento que recebeu da recorrente, assumira perante esta - a de a colocar na posição de promitente-compradora.
8.ª - Tal decisão a quo enferma nesse segmento de erro na aplicação do direito aos factos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do art. 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C.
9.ª - O Tribunal a quo errou ainda ao não ter correctamente apreendido que com a interpretação que faz da mencionada cláusula 5.ª está a dar objectiva guarida a um duplo, ilegítimo e cumulativo enriquecimento prosseguido pela recorrida pois que esta adoptou ambos os comportamentos: exigiu tanto de um lado (o de C) como do outro lado (o da recorrente), sendo que, tendo sucesso em ambas as pretensões, ver-se-ia ressarcida pela C como obteria a custas da recorrente o direito a ficar com as quantias que esta lhe pagou para poder ingressar na posição de promitente compradora, facto este, porém, tomado já definitivamente impossível precisamente devido à referida acção intentada em 2009 pela recorrida.
10.ª - Tal decisão a quo enferma nesse segmento de erro na aplicação do direito aos factos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do art. 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C.
11.ª - Aqui chegados e visto que a sentença recorrida incorreu nos erros acima referidos e que fazem com que tenha direito a receber de volta pelo menos o dinheiro que pagou pelos parques em questão no processo, cabe agora ver se a mesma tem também direito à indemnização que pediu na sua petição inicial.
12.ª - Ora, a recorrente, salvo o devido respeito por opinião diversa, sempre defendeu e aqui defende que tem direito a ser indemnizada, pois que a Recorrida, ao intentar a referida acção judicial contra C (Proc. n.º CV2-09-0067-CAO), veio inviabilizar definitivamente qualquer possibilidade, remota que fosse, da aqui recorrente alguma vez poder ainda vir a ocupar a posição contratual que aquela ainda ocuparia até então naquele contrato-promessa.
14.ª - Sendo que os referidos parques de estacionamento valem, cada um dos quatro, entre HKD$450.000,00 e HKD$500.000,00 - cfr. "Quesito 4.° Provado" do Acórdão sobre a Base Instrutória de 17 JUN 2011 -, é este o valor dos lucros cessantes que deverá ser indemnizado.
15.ª - Terminando, dúvidas não assistem à recorrente de que a decisão aqui recorrida está inquinada de variados vícios e que violou designadamente e/ou não deu cumprimento aos artigos 228.°, 229.°, 230.°, 752.°, n.º 1, 787.°, 788.°, 556.°, 557.°, 558.° e 560.°, todos do Código Civil.
Pelo que deve a decisão recorrida ser revogada, devendo, em conformidade com o acima exposto, ser decidido o seguinte:
a) Ser decretada a resolução do contrato de cessão da posição contratual celebrado entre a recorrente e a recorrida com fundamento no culposo incumprimento definitivo por parte desta;
b) Ser a recorrida condenada a restituir à recorrente o preço total da cessão que foi pago por esta a favor dela, no montante de HKD$720.000,00, equivalentes a MOP$741.600,00, acrescido dos juros vincendos calculados desde a data da citação até ao efectivo e integral pagamento;
c) Ser a recorrida condenada a pagar uma indemnização à recorrente no montante de HKD$720.000,00, equivalentes a MOP$741.600,00, a título indemnizatório, na vertente de lucros cessantes, acrescido dos juros vincendos calculados desde a data da citação até ao efectivo e integral pagamento; e
d) Ser ainda a recorrida condenada em custas, selos e procuradoria condigna.
B, Ré na acção, e aí igualmente mais bem identificada, contra alega, dizendo, em sede conclusiva:
A. Improcede o argumento expendido na 5.ª conclusão das alegações de recurso porque tendo a ora recorrente transferido a sorte da acção judicial para a sorte do negócio com a ora recorrida, não só do ponto de vista jurídico, como também do económico, a ora recorrente tinha consciência do risco que assumia (resposta ao quesito 5.° da Base Instrutória), isto é, sabia que iria perder o dinheiro pago à ora recorrida em caso de impossibilidade do cumprimento do contrato resultante do insucesso da acção nele referida.
B. À data da celebração do contrato de 8 de Março de 2008, a A encontrava-se ciente de que sobre os lugares de estacionamento ora em causa pendia uma acção judicial na qual se discutia a sua titularidade, por lhe ter sido exibido o respectivo extracto de inscrição (contendo a identificação das partes, o pedido e o respectivo valor), no Cartório do Notário Privado D (respostas aos quesitos 6.° a 9.° da Base Instrutória e certidão de fls. 79).
C. E foi justamente por saber que os lugares de estacionamento eram objecto de uma acção em tribunal na qual a B reivindicava a sua titularidade (fls. 79), que a A acordou na cláusula 5.ª do referido contrato de 8 de Março de 2006 que a B não ficaria responsabilizada pelas consequências jurídicas e económicas que poderiam resultar da sorte da acção referente aos 4 lugares de estacionamento (respostas aos quesitos 5.° a 9.° da Base Instrutória).
D. Assim, embora, à data do contrato de 8 de Março de 2006, o preço de mercado de cada lugar de estacionamento fosse de HKD$280.000,00, cada um foi vendido à A por apenas HKD$180.000,00, tendo a mesma beneficiado de uma redução de preço de HKD$100.000,00 por cada parque, por causa da pendência de registo da referida acção (fls. 79), conforme resulta da resposta aos quesitos 3A, 5.° e 6.° da Base Instrutória.
E. O que significa que a A aceitou o risco do negócio face ao preço bastante inferior ao do mercado que lhe foi proposto pela Ré B.
F. Por isso, aquando da celebração do contrato de 8 de Março de 2006 em conformidade com a cláusula 5.a do contrato e para beneficiar da redução de preço de HKD$100.000,00 por cada parque (HKD400,000.00 no total), a Autora A aceitou desonerar a Ré B de qualquer responsabilidade pelas consequências jurídicas e económicas que poderiam resultar da sorte da acção referente aos 4 lugares de estacionamento, assumindo, por conseguinte, o risco de não conseguir obter os parques e perder todo o preço pago.
G. Face às respostas aos quesitos 3.°, 3A, 5.° a 9.° da Base Instrutória deve a cláusula 5.ª do contrato de 8 de Março de 2006 ser interpretada no sentido da desoneração da responsabilidade da Ré B perante a Autora A pela impossibilidade do cumprimento resultante do insucesso da acção.
H. Só assim é que estão equilibrados todos os interesses em jogo: para a Autora A, porque beneficia de um preço muito inferior ao do mercado por correr o risco de, a final, não conseguir obter os parques em causa e perder o preço pago; para a Ré B, porque consegue realizar antecipadamente o valor da revenda dos parques, mas por um preço muito inferior ao de mercado (cfr. respostas aos quesitos 3A e 6.° da Base Instrutória).
I. É, também, esta a solução que decorre da lei, dado que, havendo dúvida sobre o sentido da declaração e sendo caso de negócio oneroso, temos de recorrer à solução dimanada do art. 229.° do CCM, prevalecendo o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
J. Doutra forma a A teria beneficiado de uma redução do preço em HKD400.000,00 sem correr qualquer risco, designadamente o risco do insucesso da acção a que se refere a cláusula 5.° do contrato.
K. Por isso, ao contrário do propugnado pela recorrente, temos que convir que aquilo que os contraentes claramente deram a entender - é a conclusão interpretativa das declarações negociais com o sentido que lhes seria dado por qualquer normal declaratório colocado na posição dos declaratórios reais (artigos 228.° e 230.° do CCM) - foi que o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 dependia da sorte da acção referente aos 4 lugares de estacionamento, ficando a Ré B exonerada da responsabilidade pelas consequências jurídicas e económicas que daí pudessem resultar.
L. Significa isto que tendo a A aceite o risco da transferência da sorte da acção judicial para a sorte do negócio com a B, não só do ponto de vista jurídico, como também do económico, a A tinha necessariamente consciência do risco que assumia (resposta ao quesito 5.° da Base Instrutória), isto é, sabia que o contrato de 8 de Março se revestia de carácter aleatório (cláusula 5ª), por ser incerto o resultado da acção nele referida, bem como incerta, por controvertida, a titularidade dos bens nela discutida, pelo que sempre seria devido o preço ainda que essa acção se frustrasse e a transmissão dos lugares de estacionamento não chegasse a verificar-se, conforme resulta do disposto nos art. 870.°, n.º 1 e 871.° ex vi do art. 404.°, n.º 1, todos do CCM.
M. Isto significa que só se a B tivesse ganho essa acção referente aos 4 lugares de estacionamento, designadamente a acção de fls. 79, poderia a A vir exigir-lhe o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 ou a competente indemnização resolutória caso esta se recusasse a cumpri-lo.
N. Ora, não tendo ficado provado que a B ganhou a acção de fls. 79 de que dependia o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 ou de que esta se recusou a cumpri-lo, afigura-se manifesto que a A não tem o direito de que se arroga, sendo sempre devido à B o preço que lhe foi pago, ainda que a transmissão dos bens de titularidade incerta a que a acção respeitava não tivesse chegado a verificar-se, conforme resulta do disposto nos art. 870.°, n.º 1 e 871.° ex vi do art. 404.°, n.º 1, todos do CCM.
O. Existe, pois, causa justificativa do pagamento de HKD$720.000.00 à B devido à natureza aleatória conferida pelas partes ao contrato de 8 de Março de 2006.
P. Não procede o argumento expendido pela recorrente na 3.ª conclusão das suas alegações que o Tribunal a quo não apreendeu que não se chegou a produzir o desfecho normal de um qualquer processo judicial, com a prolação de uma decisão final quanto ao respectivo mérito ou fundo da causa.
Q. Isto por se tratar de matéria que não foi alegada pelas partes nem, por conseguinte, levada à selecção da matéria de facto de fls. 160 a 163 e 180 a 181.
R. Sem prescindir, não procede o argumento expendido pela recorrente na 1.ª e 2.ª conclusões das suas alegações porque a decisão de desoneração da recorrida de qualquer responsabilidade proveniente da acção referente aos lugares de estacionamento se funda na matéria considerada provada na sentença recorrida.
S. Sem prescindir, não procede o argumento expendido pela recorrente na 5ª conclusão das alegações de recurso porque a interpretação do Tribunal a quo quanto à cláusula n.º 5 do contrato de 8 de Março de 2006 é, face aos factos que ficaram assentes no despacho saneador e resultaram provados no julgamento da matéria de facto, a que melhor traduz a vontade real das partes, sendo infundada a tese do enriquecimento sem causa por existir causa justificativa do pagamento do preço, atenta a natureza aleatória do contrato.
T. Sem prescindir, não procede o argumento expendido na 7.ª conclusão das alegações de recurso na medida em que, no caso "sub judice", o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 nada tem a ver, agora, com a sorte do contrato-promessa de 7 de Maio de 2004.
U. O qual não foi nem será cumprido pelo C, por várias razões, v.g., por os bens em causa, designadamente os lugares de estacionamento Al-80, Al-81 e Al-82, não lhe terem sido vendidos a ele pela "Sociedade Fomento Predial ......, Limitada", mas à F, em 19 de Maio de 2009, conforme resulta provado a fls. 81, 114 e 147 dos autos.
V. E não dependendo o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 da sorte do contrato-promessa de 7 de Maio de 2004, mas da sorte da acção referida na cláusula 5.ª daquele, nunca a acção movida contra o contra o C em 15 de Setembro de 2009 poderia afectar, agora, quaisquer direitos adquiridos pela A.
W. Direitos esses de que a A se arroga, mas que na realidade não possui, porque o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 pela B dependia apenas da sorte da acção referente aos lugares de estacionamento.
X. Se a B ganhasse a referida acção, o contrato seria cumprido e a A obteria da B a transmissão dos lugares de estacionamento com um desconto de HKD400,000.00, se, pelo contrário, a B não conseguisse ganhar a acção, o contrato de 8 de Março de 2006 não seria cumprido e a A perderia o preço pago, face ao risco inerente à natureza aleatória do próprio contrato.
Y. Sendo, por isso, à data da acção referida na alínea R) dos Factos Assentes, totalmente indiferente à A a sorte do contrato-promessa de 7 de Maio de 2004 para efeitos do cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006.
Z. Mesmo que, por hipótese de raciocínio, assim não se entendesse, nunca a acção movida contra o C em 15 de Setembro de 2009 poderia afectar quaisquer direitos adquiridos pela A, face ao disposto no art. 429.°, n.º 1 do Código Civil de Macau.
AA. Assim, não dispõe a A do direito de resolver o contrato de 8 de Março de 2006, nem de pedir a devolução do que foi prestado à B por conta desse contrato, nem de pedir qualquer indemnização por lucros cessantes, nada havendo a censurar à sentença recorrida.
BB. Sem prescindir, também não procede o argumento expendido nas 9.ª e 12.ª conclusões das alegações de recurso na medida em que não há qualquer enriquecimento sem causa, atenta a natureza aleatória do contrato de 8 de Março de 2006.
CC. Sem prescindir, também não procede o argumento expendido na 14ª conclusão das alegações de recurso porque a indemnização que se pode cumular com a resolução do contrato não é a indemnização pelo interesse contratual positivo, mas a indemnização pelo interesse contratual negativo, por ser apenas essa que permite colocar o prejudicado na situação em que encontraria se o contrato não tivesse sido celebrado.
DD. Improcedem assim todas as questões levantadas nas conclusões das alegações de recurso
Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se, em consequência, a douta sentença recorrida.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Em 7 de Maio de 2004, C (C) e a ora R., B (B), celebraram por escrito, um acordo, que denominaram de contrato-promessa de compra e venda, tendo por objecto quatro lugares de estacionamento, em conformidade com o teor do documento n.º 1 junto aos autos de arresto apensos a esta acção, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (A)
De acordo com o referido negócio, C (C) comprometeu-se a vender à Ré quatro lugares de estacionamento com os nos. 11, 12, 13 e 14 do prédio urbano denominado "Lote X" sito na Zona das Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE), Rua de ......, nos. …, Alameda Dr. ……, nos. …, Avenida do ……, nos. …, e Rua de ……, nos. …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 21937 do livro B-104A, pelo preço global de HKD$233.000,00, equivalente a MOP$240.340,00. (B)
Tendo as partes estipulado assim o preço de HKD$58.250,00 por cada lugar de estacionamento (cláusula 1.ª do aludido acordo escrito). (C)
Os referidos parques de estacionamento com os nos. 11, 12, 13 e 14 são actualmente quatro fracções autónomas designadas, respectivamente, por "A1-79", "Al-80", "A1-81" e "A1-82", correspondentes ao 1º andar "A", para estacionamento, do referido prédio urbano. (D)
No momento da celebração do aludido acordo, a R. pagou a C (C) o montante de HKD$116.500,00 equivalente a metade do preço convencionado, tendo liquidado o remanescente do preço em 10 de Maio de 2004. (E)
Em 11 de Maio de 2004, a R. pagou os 3% de imposto de selo relativo à (promessa de) compra e venda dos referidos lugares de estacionamento. (F)
No momento da celebração do acordo aludido em A), C (C) não era, nem ainda é, o proprietário daqueles lugares de estacionamento. (G)
Na data da celebração do acordo aludido em A) os lugares de estacionamento estavam inscritos em nome da "Sociedade Fomento Predial ......, Limitada" conforme inscrição nº 69587 do livro G. (H)
De acordo com a cláusula 2.ª do acordo aludido em A) a escritura de compra e venda deveria ser formalizada no prazo de três meses a contar da celebração do mesmo contrato, ou seja, até 7 de Agosto de 2004. (I)
No dia 28 de Fevereiro de 2006, a R., representada pela Sra. G, prometeu transmitir à A., a sua posição no acordo aludido em A). (J)
Nesse negócio de cessão da posição contratual A. e R. acordaram que o preço total da cessão era de HKD$720.000,00 (equivalente a MOP$741.600,00) que seria pago da seguinte forma:
- no acto de assinatura deste contrato, a A. pagaria à R. a quantia HKD$360.000,00, correspondente a 50% do preço convencionado, a título de princípio de pagamento e sinal;
- o remanescente do preço, no montante de HKD$360.000,00, seria pago pela Autora no momento da celebração do contrato prometido de cessão da posição contratual, o qual seria celebrado até ao dia 30 de Março de 2006. (L)
Conforme acordado entre as partes, em 28 de Fevereiro de 2006 a A. entregou à Sra. G, na qualidade de representante da R. e com poderes para o efeito, o montante de HKD$360,000.00, através do cheque n.º 206XXXX sacado sobre o BCM. (M)
Em 8 de Março de 2006 foi celebrado, no Cartório do Notário Privado D, um acordo escrito nos termos do qual a R. transmitiu à A. a sua posição contratual de promitente compradora das referidas fracções autónomas (parques de estacionamerto com os n.ºs 11, 12, 13 e 14) designadas, respectivamente, por "Al-79", "AI-80", "A1-81" e "A1-82", correspondentes ao 1º andar "A", para estacionamento, do referido prédio urbano denominado "Lote X" sito na Zona dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE). (N)
Em 8 de Março de 2006, a A. entregou à R. o montante de HKD$360.000,00, através de dois cheques (cheque n.º 206XXXX sacado sobre o Banco Tai Fung no valor de HKD$120.000,00 e cheque n.º 206XXXX sacado sobre o BCM no valor de HKD$240.000,00). (O)
Antes da celebração do acordo aludido em N) a R. exibiu à A. o contrato-promessa que celebrou com C (C). (P)
C (C), na qualidade de contraente cedido, não deu consentimento ou autorização à referida cessão da posição contratual e não teve conhecimento da mesma. (Q)
Em 15 de Setembro de 2009, a R. veio intentar uma acção declarativa de condenação registada sob o n.º CV2-09-0067-CAO contra C (C) cujos termos correm no 2º Juízo Cível deste Tribunal. (R)
Na referida acção judicial, alega a R. que C (C) não procurou marcar data para a celebração da escritura de compra e venda daqueles parques, fosse dentro do prazo convencionado no contrato-promessa de 7/5/2004 fosse posteriormente, nem tão pouco apresentou qualquer outra forma de resolução da situação, não obstante as interpelações feitas pela R. junto daquele nesse sentido. (S)
Nessa acção judicial a R. imputa a C (C) o incumprimento do contrato em causa, alegando ainda que perdeu o interesse que tinha no cumprimento daquele contrato-promessa. (T)
Pedindo a R., em consequência, o dobro do sinal que prestou e, subsidiariamente, a restituição do sinal que prestou. (U)
No âmbito dessa Acção Ordinária a R. alegou que, no momento da celebração do acordo escrito aludido em A), C (C) exibiu-lhe o contrato-promessa anterior "a fim de provar que já adquirira o direito à aquisição dos referidos lugares de estacionamento". (V)
Mais alega a R. nessa acção que, pela razão aludida em V) acreditou que C (C) possuía o direito de aquisição dos lugares de estacionamento em causa. (X)
O filho da A. é agente imobiliário. (Z)
Quando a R. exibiu à A. o contrato-promessa que celebrou com C, afirmou-lhe que adquirira dessa forma o direito à aquisição dos referidos lugares de estacionamento. (1º)
Tendo a A., por essa razão, acreditado que aquela possuía o direito de aquisição daqueles lugares de estacionamento, decidindo então celebrar o acordo aludido em N). (2º)
Quando assinou o contrato de cessão da posição contratual de 8 de Março de 2006, a A conhecia perfeitamente o teor do contrato, designadamente do consentimento prévio dado pelo C na cláusula 9ª do contrato de 7 de Maio de 2004. (2ºA)
A A. pretendia adquirir os aludidos parques de estacionamento com vista à sua revenda por um preço superior. (3º)
No 1º trimestre de 2006 o preço de mercado por cada parque de estacionamento supra referido era de HKD$280.000,00. (3ºA)
Actualmente os aludidos parques de estacionamento valem, cada um entre HKD$450.000,00 e HKD$500.000,00. (4º)
Quando assinou o acordo aludido em N) a A. conhecia bem e aceitou o risco representado na cláusula 5ª do mesmo. (5º)
A A. prevaleceu-se da pendência de um registo provisório de uma acção judicial para beneficiar de menos HKD$100.000,00 por parque. (6º)
A A. foi assistida pelo seu filho e agente imobiliário que sabia da inscrição provisória dessa acção judicial por lhe ter sido exibida, no dia 8 de Março de 2006, no escritório do Cartório do Notário Privado D. (7º)
Antes de assinar a A. certificou-se junto do filho se o podia fazer. (8º)
Tendo o mesmo respondido afirmativamente depois de ter consultado a pessoa terceira. (9º)
Depois da celebração do acordo aludido em N) a R. pagou ao filho da A. a quantia de HKD$120.000,00 a título de comissão na intermediação no negócio. (10º)”
III - FUNDAMENTOS
1. O caso
A A. celebrou com a Ré um contrato de cessão de posição contratual relativo à promessa de compra e venda de quatro lugares de estacionamento que esta anteriormente prometera comprar a outro promitente vendededor, C, sendo que este também não era o dono desses lugares de estacionamento, possuindo apenas um contrato promessa de aquisição dos mesmos e não autorizou a celebração do contrato celebrado entre A. e Ré.
Pretende agora a A. reaver o dinheiro entregue e ainda indemnização por alegado incumprimento da ré, alegando que esta se colocou voluntariamente numa posição de incumprimento ao accionar o anterior promitente vendedor, pedindo a resolução do contrato pelo qual era suposto adquirir os referidos estacionamentos.
Contrapõe a ré, dizendo que a autora, ao celebrar consigo o referido contrato, bem sabia o que estava a comprar, inteirada estava da incerteza sobre a possibilidade de efectivação do contrato prometido, tanto mais que sabia da existência de uma acção pendente onde se discutia a titularidade do direito prometido transmitir, aceitou os riscos do negócio e por isso mesmo beneficiou de um preço substancialmente inferior ao valor real das fracções em virtude desse mesmo risco negocial.
Quid Juris?
2. Desde logo se constata que o presente litígio não deixa de resultar de uma atitude especulativa e gananciosa que infelizmente se observa na sociedade de Macau, gerando-se negócios em cadeia com transmissões sucessivas de bens que ainda não existem na titularidade dos transmitentes, não podendo os contratantes deixar de, dentro das regras da liberdade contratual, de assumir os riscos inerentes a tais negócios.
Atentemos na fundamentação da douta sentença.
Aí se sustentou:
“(...)
( ... )
Em sede do enquadramento jurídico, cumpre analisar os factos e aplicar o direito. Encontra-se provado que entre A. e R. foi celebrado um contrato, nos termos do qual esta transmitiu à A. a sua posição contratual de promitente-compradora num contrato-promessa de compra e venda de quatro parques de estacionamento, contrato-promessa essa que tinha sido celebrado entre a R. e um indivíduo de nome C.
( ... )
Assim, são três protagonistas dessa operação: o contraente que transmite a sua posição (cedente), o terceiro que adquire essa posição (cessionário) e a contraparte do cedente no contrato originário, que passa a ser a contra parte do cessionário (cedido).
( ... )
A lei exige que o cedido preste consentimento na transmissão da respectiva posição contratual ao cessionário.
( ... )
No caso vertente, provado está que não obstante o promitente-vendedor originário C ter dado o consentimento prévio à cessão da posição contratual aquando da celebração do contrato-promessa com a ora R., mas o mesmo não teve conhecimento da referida cessão por nunca ter sido notificado.
( ... )
Nestes termos, uma vez que o cedido C não foi notificado da cessão da posição contratual acordada entre A. e. R., entendo eu que, salvo o devido respeito por opinião contrária, deve julgar ineficaz essa transmissão em relação ao cedido.
Contudo, embora seja ineficaz esse vínculo perante C, ainda se mantém operante e válido entre A. e R. o acordo celebrado por elas.
Nos termos do artigo 442º do Código Civil de Macau, dispõe-se que havendo incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa por um contraente, tem a parte contrária direito de resolver o contrato e fazer seu o sinal já pago ou exigir o dobro do sinal, consoante o caso.
Ora bem, mas independentemente de haver ou não incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da R., compete-nos apreciar em primeiro lugar, tal como sustentou a R. na defesa, a questão da desoneração ou não da responsabilidade pela impossibilidade de cumprimento, pois procedente a referida excepção peremptória, ficará prejudicado o conhecimento da questão de incumprimento.
De acordo com os factos provados, resulta que aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda dos parques em causa entre A. e R. , aquela tinha perfeito conhecimento de que esta ainda não era proprietária dos mesmos e de que estes eram objecto de uma acção pendente no tribunal.
Mesmo assim, acordaram as partes na cláusula ja do referido contrato-promessa que a R. não ficaria responsabilizada pelas consequências jurídicas e económicas que poderiam resultar duma outra acção intentada pela R. contra C no referente aos mesmos 4 lugares de estacionamento.
De acordo com a matéria provada, o preço de mercado de cada parque de estacionamento era de HKD$280.000,00, mas apenas foi vendido por HKD$180.000, 00 à A., pelo que a mesma beneficiou de uma redução de preço de HKD$100.000,00 por parque, por causa da pendência de registo da referida acção. Face à matéria acabada de expor, e salvo o devido respeito por opinião contrária, entendo que, aquando da celebração do contrato-promessa, precisamente em conformidade com a cláusula ja do contrato, a A. aceitou desonerar a R. de qualquer responsabilidade proveniente da eventual perda do litígio, no fundo, vinha a assumir o risco de, em caso de perder a acção, não conseguir obter os parques e perder todo o preço pago.
Se assim não fosse, então qual o risco que a A. assumiria para poder beneficiar de um preço bastante inferior ao de mercado?
Só assim, como diz a R., é que estão equilibrados todos os interesses em jogo: para a A., porque beneficia de um preço muito inferior ao de mercado por correr o risco de, afinal, não conseguir obter os parques e perder todo o preço pago; e para a R., porque conseguiu vender antecipadamente os parques cuja pendência da acção estava registada em seu desabono, mas por um preço muito inferior ao de mercado. Caso assim não entendesse, então a A. não assumiria qualquer risco, visto que, se perdesse aquela acção, poderia reaver todo o preço pago sem qualquer perda; e se a acção procedesse, poderia adquirir os parques com um preço bastante inferior ao de mercado.
Nestes termos, considerando que a A. tinha consciência do risco que assumia, isto é, sabia que iria perder o dinheiro pago à R. em caso de impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa resultante da perda da referida acção, outra solução não resta, salvo melhor opinião, senão julgar improcedente a acção.
Na medida em que improcede a acção, fica prejudicado o conhecimento dos restantes pedidos da A.
(...)”
3. Começa a A., ora recorrente, por alegar que o Tribunal errou ao ter considerado que a acção a que se referia a cláusula 5º do acordo de transmissão de posição contratual era a acção pendente ao tempo da celebração do contrato entre A. e Ré, em 2006, e não a acção que a Ré viria, em 2009, a intentar contra o promitente vendedor.
Não tem razão a recorrente nesta observação porquanto não se alcança da referida sentença que tenha havido qualquer confusão entre as duas acções, pois que aí se diz expressamente que “ ... aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda dos parques em causa entre A. e R., aquela tinha perfeito conhecimento de que esta ainda não era proprietária dos mesmos e de que estes eram objecto de uma acção pendente no tribunal.”
É na acção de 2009 que a A. se baseia para sustentar o incumprimento por parte da R., na medida em que foi pedir aí a resolução do contrato, mas tal facto não foi considerado relevante na sentença proferida.
4. Diz ainda a A., ora recorrente, que o Tribunal a quo errou igualmente ao não ter apreendido, contrariamente ao que decidiram o T.J.B. no Arresto (apenso) n.º CV-10-0006-CAO-A e o T.S.I. no seu acórdão n.º 1018/2010 de 17 de Março de 2011, que com tal cláusula 5.ª -
nos termos da qual a R. não ficaria responsabilizada pelas consequências jurídicas e económicas que poderiam resultar duma outra acção intentada pela R. contra C no referente aos mesmos 4 lugares de estacionamento -
apenas se assumiu o risco de, em caso de insucesso da acção já intentada para obter a propriedade dos parques de estacionamento e, cumulativamente, em caso de não existir um comportamento da recorrente destinado a inviabilizar a possibilidade de ingresso da recorrente na posição de promitente-compradora, esta perder não mais que o direito de propriedade sobre tais parques, que não igualmente o direito a reaver o preço pago.
Importa observar que o acórdão do TSI de 17/3/2011 proferido no processo 1018/2010, reflecte bem as duas perspectivas que estavam em jogo, tendo-se acolhido na posição que fez vencimento a tese da requerente do arresto, a A., ora recorrente, salvaguardando, face aos elementos indiciários existententes a possibilidade de aquela reaver as quantias entregues por incumprimento da A. e acolhendo, por seu turno, o voto de vencido aí vertido a tese da requerida, num juízo de antecipação, e que se veio a mostrar acertado, dos elementos que efectivamente se viriam a comprovar, no sentido da configuração de um contrato verdadeiramente aleatório e de que a adquirente assumia os riscos do negócio em todas as suas vertentes.
Refira-se exactamente a comprovação do elemento intelectual e da consciência da precariedade, se não incerteza, quanto ao direito transmitido.
Donde, sermos agora, face aos elementos que confirmados vêm a sufragar o entendimento de que, tendo a ora recorrente transferido a sorte da acção judicial para a sorte do negócio com a ora recorrida, não só do ponto de vista jurídico, como também do económico, a ora recorrente tinha consciência do risco que assumia, isto é, sabia que iria perder o dinheiro pago à ora recorrida em caso de impossibilidade do cumprimento do contrato resultante da perda da acção.
Na verdade, no sentido da desoneração da responsabilidade da recorrida pela impossibilidade de cumprimento resulta, não apenas o teor da supra citada cláusula 5.ª do contrato de 8 de Março de 2006, mas também o facto de, à data da sua celebração, a A ter conhecimento que o C não era titular dos lugares de estacionamento que prometera vender à cedente B e de que estes eram objecto de uma acção pendente no tribunal, disso se tendo prevalecido para obter um preço bastante mais favorável por cada lugar de estacionamento em relação ao preço de mercado.
Não há, pois, qualquer erro de julgamento, seja na ponderação dos elementos que forjam um conhecimento da situação jurídica do objecto do negócio, seja na ponderação dos elementos de facto que se comprovaram e são determinantes para a compreensão da álea do negócio. Com efeito, à data da celebração do contrato de 8 de Março de 2006, a A., A, ficou a saber que sobre os lugares de estacionamento referidos pendia uma acção judicial quanto à sua titularidade, por lhe ter sido exibido o respectivo extracto de inscrição.
E assim se compreende que terá sido por saber que os lugares de estacionamento não pertenciam ao C mas à "Sociedade Fomento Predial ......, Limitada", conforme resulta da matéria provada e que eram objecto de uma acção em tribunal em que a B reivindicava a sua titularidade (fls. 79), que a A acordou na cláusula 5.ª do referido contrato de 8 de Março de 2006, por isso mesmo beneficiando de uma redução de preço de HKD$100.000,00 por parque, por causa da pendência de registo da referida acção, conforme resulta da resposta aos quesitos 3A, 5.° e 6.° da Base Instrutória.
5. Não se acolhe a tese da A. no sentido de que o risco era apenas quanto à aceitação de ficar sem os parques e não já o de perder as quantias entregues, pois que esse é o risco próprio dos negócios quando haja uma causa legítima de resolução, não implicando normalmente em termos de custos e valores negociais uma redução do valor do mesmo.
É que se assim não fosse, ou seja, se não existisse este risco, não se justificaria a redução do preço de que a Autora A beneficiou em relação ao preço de mercado dos lugares de estacionamento no caso concreto, já que as vantagens ou desvantagens daí decorrentes têm de ser vistas na perspectiva dos interesses de ambas as partes. Se a adquirente não perdesse nada, face ao risco - já que o valor real reflectiria sempre a não aquisição da coisa -, qual a vantagem para o alienante em reduzir o preço?
É que, como diz, Menezes Cordeiro1, a álea existe num contrato quando, no momento da sua celebração, são desconhecidas as vantagens patrimoniais que dele emerjam para as partes. O desconhecimento deve ser da própria natureza do contrato em causa, de tal forma que este não fizesse sentido se não existisse a tal incerteza. Isto, porque todos os contratos pressupõem sempre uma certa margem de risco, no tocante às vantagens que deles derivem para as partes.
Somos assim, face à análise da factualidade que comprovada vem, a sufragar a solução preconizada na douta sentença recorrida e que vai no sentido de que a cláusula 5ª do contrato de 8 de Março de 2006 deve ser interpretada no sentido da desoneração da responsabilidade da Ré B perante a Autora A pela impossibilidade do cumprimento resultante do insucesso da acção.
6. Esta a interpretação mais consentânea com o disposto nos artigos 228º e 229.° do Código Civil, aquela que conduz ao maior equilíbrio das prestações, vista a natureza aleatória do contrato celebrado e o enquadramento doutrinário que tais contratos devem revestir.
Só assim é que estão equilibrados todos os interesses em jogo: para a Autora A, porque beneficia de um preço muito inferior ao do mercado por correr o risco de, a final, não conseguir obter os parques em causa e perder o preço pago; para a Ré B, porque consegue realizar antecipadamente o valor da revenda dos parques, mas por um preço muito inferior ao de mercado.
Nem se diga, como pretende a A., que esta interpretação acarreta um enriquecimento por banda da Ré, na medida em que recebe por aquilo que não tem um duplo pagamento: o da ré e o da promitente vendedora pelo alegado incumprimento desta e vista a acção que lhe moveu. Só que convém não esquecer que foram as partes que se sujeitaram aos riscos que previsivelmente não deviam deixar de configurar, fazendo depender o seu ganho ou perda da sorte e das contingências de factores externos e da actuação de terceiros.
Assim não seria se fosse uma das partes que, ao arrepio, das contingências a que se submeteram, por acção própria subvertesse as regras do jogo.
Na verdade, a lei não deixa de permitir às partes celebrarem contratos com natureza aleatória, como decorre dos artigos 867.° e 871.° do Código Civil, neste último se prevendo que “Quando se vendam bens de existência ou titularidade incerta e no contrato se faça menção dessa incerteza, é devido o preço, ainda que os bens não existam ou não pertençam ao vendedor, excepto se as partes recusarem ao contrato natureza aleatória.”
No caso concreto, ficou provado que a acção referida na cláusula 5.ª do contrato de 8 de Março de 2006 respeitava a bens de titularidade incerta, porque litigiosos, não tendo as partes recusado ao contrato a natureza aleatória resultante da incerteza do resultado da acção.
Só se a B tivesse ganhado a acção referente aos 4 lugares de estacionamento, designadamente a acção de fls. 79, poderia a A vir exigir-lhe o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 ou a competente indemnização resolutória caso esta se recusasse a cumpri-lo.
Não tendo ficado provado que a B ganhou a acção de fls. 79 de que dependia o cumprimento do contrato de 8 de Março de 2006 ou de que se recusou a cumpri-lo, afigura-se manifesto que a A não tem o direito de que se arroga, sendo sempre devido à B o preço que lhe foi pago, ainda que a transmissão dos bens de titularidade incerta a que a acção respeitava não tivesse chegado a verificar-se, conforme resulta do disposto nos art. 870.°, n.º 1 e 871.° do Código Civil.
Tudo isto à luz do entendimento de que um contrato aleatório é “aquele em que reina a incerteza sobre o seu significado patrimonial para cada um dos contraentes; tem-se a expectativa de ganhar mas também se corre o risco de perder. Tipos: no 1º só uma das partes alcança um benefício, mas é incerto a qual delas ele aproveitará (caso do jogo ou aposta); no 2º um dos contraentes suporta sacrifício patrimonial certo em vista de atribuição incerta, que, todavia, a verificar-se, será ou poderá ser de valor superior, ou então há reciprocidade de atribuições, mas o valor de ambas, ou de uma delas, não é conhecida antecipadamente e pode variar em função de determinado valor (caso do seguro, lotaria, renda vitalícia)”.2
7. Invoca ainda a recorrente o argumento de que o Tribunal a quo não apreendeu que "nunca se chegou a produzir o desfecho normal de um qualquer processo judicial, a prolação de uma decisão final quanto ao respectivo mérito ou fundo da causa."
Refira-se que esse argumento não foi invocado nos articulados, donde não dever agora ser invocado.
Em todo o caso não se deixa de referir que a recorrente não deixa de reconhecer a impossibilidade de efectivação do contrato prometido e isso na medida em que pede a resolução do contrato celebrado por incumprimento da ré com restituição das quantias entregues; se não reconhecesse essa impossibilidade não deixaria de pugnar pela execução do conrato celebrado vistas as manifestas vantagens que tiraria com a sua celebração.
8. Há ainda uma outra linha argumentativa da recorrente referente à acção intentada pela Ré em 2009 contra C, em que pede a resolução do contrato com este celebrado em 2004, o que inviabilizaria o cumprimento do contrato celebrado com a A., colocando-se a Ré em posição de incumprimento.
Sobre isto diremos tão somente que as questões são independentes. A acção de 2009 mais não é do que o desfecho da situação desencadeada com o contrato de 2004, nos termos do qual C lhe prometeu vender os estacionamentos. Prometeu vender-lhe coisa que não tinha, mas, com ou sem fundamento, esperaria poder a vir a vender. Não logrou alcançar essa posição, donde a R. não fazer mais do que aquilo que é natural ter feito: pedir a resolução do contrato. Nada que a A. não conhecesse em 2006 quando contrata com a R., assumindo esses riscos. Diferentes seriam as coisas, se em 2006, a Ré tivesse escondido algo relativamente a essa impossibilidade em relação à A.
Com certeza que a A. não esperaria que a Ré se mantivesse inactiva e nada fizesse em relação à promitente vendedora que não lhe vendeu os parques. Trata-se de uma situação, a relação entre a R. e C, em que não temos elementos sequer para sabermos se assume os mesmos contornos da relação entre a A. e a R.., sendo que os bens em causa, designadamente os lugares de estacionamento Al-80, Al-81 e Al-82, terão sido vendidos não a C pela "Sociedade Fomento Predial ......, Limitada", mas a F, em 19 de Maio de 2009, compreendendo-se assim que a R. tenha accionado a promitente vendedora.
9. Tanto basta, comprovado todo o circunstancialismo relativo à álea do contrato celebrado para se julgar improcedente a pretensão da A. em ver resolvido o contrato, o que, como é óbvio, obsta ao pedido de indemnização formulado na acção.
Para além de que não se vê como fosse possível cumular a resolução do contrato com a indemnização pedida, na medida em que, por um lado, se visa restabelecer a situação que existiria se não se tivesse celebrado o contrato com a Ré (interesse contratual negativo ou de confiança) e, por outro, contraditoriamente, o de ela se colocar em circunstâncias idênticas às que se verificariam se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido (interesse contratual positivo). Isto é, a A. quis resolver o contrato, mas, ao mesmo tempo, exigir o valor actual de revenda dos lugares de estacionamento que agora poderia eventualmente realizar se o contrato de que pede a resolução tivesse sido cumprido, situação em que não deixa de se verificar uma quebra na causalidade adequada entre o facto e o prejuízo. O que a indemnização deve visar, em caso de incumprimento e resolução do contrato é reparar a situação que existiria, repondo a situação da potencial adquirente se o contrato não tivesse sido celebrado e não a decorrente da celebração do contrato não mais possível.
Face ao exposto, o recurso não deixará de improceder.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 21 de Junho de 2012,
(Relator) João A. G. Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) José Cândido de Pinho
1 - Dto das Obrig., 1980, 1º, 430
2 - Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 403
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