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Processo nº 239/2012
(Autos de Conflitos de Competência e de Jurisdição)

Data: 05 de Julho de 2012

ASSUNTO:
- Conflito negativo de competência
- Reenvio
- Artigo 418º, nº 2 do CPPM

SUMÁRIO
- A razão de ser do nº 2 do artº 418º do CPPM é a de garantir a imparcialidade e a isenção da decisão.
- Assim, o juíz que proferiu a decisão anulada não pode integrar o tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento.
O Relator,

Ho Wai Neng





Proc. nº 239/2012
(Autos de Conflitos de Competência e de Jurisdição)

Data: 05 de Julho de 2012

I. Relatório e Factos:
Por sentença de 14/04/2011, proferida no Processo Comum Singular nº CR2-10-0182-PCS, o Mmº Juíz titular do processo, Dr. Mário Pedro Martins da Assunção Seixas Meireles, julgou improcedente a acusação, e, em consequência, absolveu a arguida A do crime pelo qual se encontrava acusada.
No âmbito do recurso interposto pelos assistentes B e C, este Tribunal, por acórdão de 20/10/2011, anulou o julgamento e determinou o reenvio dos autos para novo julgamento.
Por despacho de 14/11/2011, o Mmº Juíz titular do processo, Dr. Mário Pedro Martins da Assunção Seixas Meireles declarou-se impedido de intervir no tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento.
Os autos foram conclusos ao Mmº Juíz substituto legal, Dr. Lam Peng Fai, o qual proferiu o seguinte despacho:
“『刑事訴訟法典』第四百一十八條的規定如下:
一、 如因有第四百條第二款各項所指之瑕疵而不可能對案件作出裁判,則接收上訴之法院決定將卷宗移送,以便重新審判整個訴訟標的,或重新審判命令移送卷宗之裁判中具體指明之問題。
二、 如所移送之卷宗為獨任庭之卷宗,則重新審判之管轄權屬合議庭。
三、 如所移送之卷宗為合議庭之卷宗,則重新審判之管轄權屬另一合議庭,此合議庭由無參與作出上訴所針對之裁判之法官組成。
*
   經對上述第二款及第三款之有關規定作出比較:為獨任庭之卷宗,則重新審判之管轄權屬合議庭;為合議庭之卷宗,則重新審判之管轄權屬另一合議庭,此合議庭由無參與作出上訴所針對之裁判之法官組成。
   可明顯看出,法律沒有禁止本案之原獨任庭法官參與有關合議庭之審判工作。
   *
   基於此,命令將本卷宗交予本案之原主審法官處理。”
O Mmº Juíz Dr. Mário Pedro M. A. Seixas Meireles, perante o despacho supra transcrito, entendeu explicitar melhor o seu pensamento, a saber:
“Na sequência do nosso despacho de fls. 334, do qual resulta a nossa declaração de impedimento para estar presente na audiência de discussão e julgamento a realizar nos presentes autos (na sequência da decisão proferida pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância) o Meritíssimo Juiz Lam Peng Fai exarou o despacho constante de fls. 335 v e 336, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzidos.
   Mantemos o nosso despacho de fls. 334, não obstante, o absoluto respeito pela opinião diversa vertida pelo nosso ilustre colega, pelas razões que, antes implícitas, agora explanamos.
   É certo que a letra da lei, aparentemente e considerada na sua pura literalidade, parece dar guarida à solução preconizada pelo Meritíssimo Juiz, porém, salvo o devido respeito, o seu espírito impõe solução diversa:
   1) O n.º 3 do art. 418.° do CPPM prevê, caso a decisão alvo do reenvio tenha sido fruto de um julgamento com intervenção do Tribunal Colectivo, que o novo julgamento venha a ser realizado por "tribunal colectivo formado por juizes que não tenham intervindo na decisão recorrida.", não permitindo, portanto, que somente dois deles sejam diferentes (solução a que chega o nosso ilustre colega, já que, de acordo com seu entendimento, o tribunal colectivo, para o novo julgamento a realizar nos presentes autos, seria integrado pelo juiz que presidiu à audiência e elaborou a sentença alvo da censura por parte do Tribunal Superior);
   2) Pode colher-se um outro argumento, e este por maioria de razão, a partir do impedimento expressamente previsto no art. 29.º do CPPM; desta norma decorre o impedimento do juiz para o julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido-e, note-se, esse julgamento tanto pode ser da competência do tribunal singular, como do tribunal colectivo; o argumento, por maioria de razão, decorre da circunstância de o pré juízo (e é este juízo prévio a razão material do impedimento, isto é, o conhecimento anterior da situação sub iudice e a consequente valoração decorrente da decisão tomada) relativamente ao caso concreto feito por um juiz que presidiu à anterior audiência ser mais amplo e consistente do que aquele que tem o juiz que tiver presidido ao debate instrutório, já que naquele o contraditório é pleno, com a produção da prova global do processo, enquanto neste o juiz pondera, sobretudo, a prova que se produziu em sede de instrução (fase esta que impõe não se repitam os actos praticados na fase de inquérito).
   Pelo exposto, mantemos o nosso despacho de fls. 334, com este complemento argumentativo que, à data, julgámos desnecessário, pelas razões agora esclarecidas (e sem querer, noutro sentido, fundamentar a mesma solução também com base nos interesses das partes, nomeadamente, da parte que teve vencimento no recurso interposto e assim fica mais tranquila por saber que o juiz que decidiu em sentido desfavorável aos seus interesses não intervirá na audiência a realizar).
   Notifique (arguido, assistente e MP).
   Após trânsito, remetam-se os autos ao nosso substituto legal.”
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Foi dado cumprimento ao disposto dos nºs 1 e 3 do artº 27º do CPPM.
Apenas o Mmº Juíz Dr. Mário Pedro Martins da Assunção Seixas Meireles respondeu, mantendo todas as considerações aduzidas no despacho supra transcrito.
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O Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“Compulsando os autos, somos de opinião de que a razão está ao lado do Mmo. Juiz que entendeu pela não existência do motivo do impedimento, ou seja, o Mmo juíz singular (titular do processo) pode intervir no novo julgamento que venha a ser realizado pelo novo tribunal colectivo sem qualquer impedimento.
   Em primeiro lugar, existe realmente uma diferença significativa do tratamento legal no caso de reenvio do processo, conforme a situação do nº 2 ou do nº 3 do artº 418 do C.P.P.M., e os presentes autos do conflito negativo acabam por ser uma resolução da seguinte questão:
   A diferença do tratamento legal constante nos nº 2 e nº 3 do artº 418 do C.P.P.M. resultaria de um "lapso" do legislador ou foi um "propósito" do legislador?
   Na primeira hipótese, poderia levar a concluir que deve aplicar analogicamente a estatuição do nº 3 da norma, ou seja, o juíz originário não deve integrar-se no novo tribunal colectivo a constituir. (trata-se da posição do juíz titular do CR2-10-0182- PCS)
   Na segunda hipótese, se comparando as normas constantes no nº 2 e nº 3 do artº 418 do C.P.P.M., parece que nada impede ao mesmo juíz a fazer parte do novo tribunal. (trata-se da posição do juíz substituto.)
   No nosso modesto entendimento, a resposta tem de ser encontrada à , luz do princípio de garantia de defesa do arguido, ponderando se a mesma garantia poderia sair prejudicada com qualquer das posições acima mencionadas.
   Ora, um dos argumentos principal do juíz titular é a invocação do paralelismo da situação com a previsão legal constante no artº 29 do C.P.P.M., isto é, quando a lei impede o juíz que presidiu o debate instrutório uma nova intervenção no respectivo julgamento.
   Salvo o devido respeito pela opinião contrária, parece-nós que as duas normas tenham finalidades subjacentes diferentes.
   Com efeito, o artº 29 visa garantir o bom funcionamento do princípio de contraditório, impedindo a acumulação da função acusatória e da função do julgador numa mesma pessoa. Enquanto que a regulamentação do artº 418 do C.P.P.M. já não releva tanto a prossecução desta finalidade, pelo contrário, o que está em causa no artº 418 do C.P.P.M. é oferecer outro tipo de "garantia" à defesa, garantindo que o novo julgamento decorrerá com maior prudência e cautela e que todos os sujeitos processuais possam confiar nele, evitando assim, a repetição do mesmo ou outro vício no exame de matéria de facto.
   Pelo que não nós pareça que haja paralelismo de situação de onde justifique o mesmo procedimento entre o artº 29 e artº 418, ambos do C.P.P.M..
   Com efeito, pensamos que está na disposição do legislador duas alternativas para fazer funcionar a substituição do juíz singular no caso de reenvio do processo para novo julgamento.
   Primeira é designar um outro juíz singular para apreciar a causa.
   Segunda é constituir o tribunal colectivo para o mesmo efeito.
   Pois, em ambas as hipóteses a finalidade acima aludida está seguramente garantida.
   Evidentemente, a lei seguiu este segundo caminho, entendendo que o tribunal colectivo oferecerá uma maior prudência na análise da matéria de facto em vez do tribunal singular.
   E também não podemos ignorar que face às regras próprias do funcionamento do tribunal colectivo, a intervenção do juíz que tivera apreciado da causa não se influencia, de forma decisiva, a nova decisão que irá tomar. (artº 346, nº 5 do C.P.P.M)
   Assim, a preocupação de tal "pre-juízo" do juíz originário obstaria a uma nova decisão sá e justa não procede.
   Aliás, o modo de substituição proposto pelo juíz titular, no sentido de constituir um novo tribunal colectivo, excluíndo nele o juíz originário também é uma solução possível, até que é uma solução que oferece mais garantia à defesa. Contudo, solução essa que já ultrapassa a exigência legal e não se encontra nela qualquer apoio.
   Face ao tudo acima ficou exposto, somos de parecer que a solução do conflito é atribuir ao juíz titular originário a sua competência de intervenção no novo tribunal colectivo a constituir.”
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II. Fundamentação:
Trata-se duma situação atípica de conflito de competência, já que nenhum dos Mmºs Juízes se declarou incompetente, mas simplesmente um entendeu estar impedido de intervir no tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento e outro recusou substituí-lo, por entender que aquele não tinha fundamento legal para se ter declarado impedido.
Contudo, como bem afirmou o TUI no Ac. de 10/04/2002, proferido no Proc. nº 4/2002 que “o sistema judiciário não pode, pela natureza das coisas, ter um bloqueamento, um impasse” sem vias de resolução, pelo que deve usar-se o processo de resolução de conflito de competência para este tipo de situações.
Dispõe o artº 418º do CPPM o seguinte:
Artigo 418.º
(Reenvio do processo para novo julgamento)
1. Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 400.º, não for possível decidir da causa, o tribunal a que o recurso se dirige determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
2. Se o reenvio for de processo do tribunal singular, o novo julgamento compete ao tribunal colectivo.
3. Se o reenvio for de processo do tribunal colectivo, o novo julgamento compete a tribunal colectivo formado por juízes que não tenham intervindo na decisão recorrida.
Num primeiro momento, parece que o Mmº Juíz Dr. Lam Peng Fai tem razão, já que da letra da lei não resulta que o juíz que proferiu a decisão anulada não pode integrar o tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento.
Contudo, como é sabido, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cfr. nº 1 do artº 7º do CCM).
Salvo o devido respeito, entendemos que a razão de ser do nº 2 do artº 418º do CPPM é a de garantir a imparcialidade e a isenção da decisão1.
É certo que há dois elementos novos na formação do tribunal colectivo que vai realizar o novo julgamento e as deliberações são tomadas por maioria simples de votos (cfr. nº 5 do artº 346º do CPPM).
No entanto, isto não significa que o juíz que proferiu a decisão anulada não possa influenciar, de forma decisiva, a deliberação do colectivo.
Repare-se, antes da votação, precede-se sempre a uma discussão do caso, na qual cada juíz enuncia as razões da sua opinião, indicando, na medida possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, e vota sempre sobre cada uma das questões (cfr. nº 3 do artº 346º do CPPM).
É justamente, a nosso ver, no âmbito da discussão do caso, que o juíz que proferiu a decisão anulada poderia influenciar o sentido da votação dos outros dois colegas.
Se assim for, a finalidade que o nº 2 do artº 418º do CPPM visa alcançar ficaria prejudicada.
Por outro lado, nos termos do nº 1 do artº 31º do CPPM, o despacho em que o juíz se considera impedido é irrecorrível.
Ora, se a declaração de impedimento do juíz não é sindicável por via de recurso, então por maioria da razão, o colega da mesma instância também não a pode por em causa, recusando dessa forma a sua substituição2.
Pelo exposto, se conclui que o juíz que proferiu a decisão anulada não pode integrar o tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento.
Esta, aliás, é a jurisprudência que tem sido seguida neste Tribunal de recurso3.
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Tudo visto, resta decidir.
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III. Decisão:
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em determinar que o Mmº Juíz Dr. Lam Peng Fai intervenha no tribunal colectivo que vai efectuar o novo julgamento em causa.
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Sem custas.
Notifique e D.N.
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RAEM, aos 05 de Julho de 2012.

(Relator)
Ho Wai Neng

(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho

(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

1 No mesmo sentido e a título do direito comparado, vide o Ac. do STJ de Portugal, de 17/02/1999, proferido no Recurso nº 1357/98, CJ, Acs. do STJ, VII, tomo I, 214.
2 No mesmo sentido, vide o Ac. do TUI citado.
3 Ac. do TSI, de 28/06/2012, Proc. nº 123/2012
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