Proc. nº 681/2012
(Autos de recurso penal)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 2 de Agosto de 2012
Descritores:
-Prisão preventiva
SUMÁRIO:
I- Se a severidade de uma qualquer medida de coacção se há-de ajustar à força dos indícios reveladores de um ilícito criminal, mais ela se imporá se os factos foram já objecto de julgamento culminado numa condenação. Haverá que reconhecer-se que o arguido, quando condenado, fez o tribunal transpor a barreira da convicção radicada em meros indícios para a aquisição de uma verdade material (mesmo que ainda não totalmente tranquila enquanto não se verificar o trânsito) assente num certo grau de certeza.
II- Neste caso, interposto recurso da sentença condenatória, deve aplicar-se a medida de coacção mais severa até ao termo final dos autos, se o aconselharem os princípios da adequação e da proporcionalidade, em função do caso concreto e do fim a que se destina, que levem a pensar que ela seja idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e proporcionada à gravidade do crime e à sanção aplicada.
Proc. nº 681/2012
(Autos de recurso penal)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
No Tribunal Judicial de Base foi a arguida A condenada na pena única de 4 anos de prisão efectiva, pela prática de 13 crimes de burla na forma consumada, p. e. p. pelo art. 211º, nº1, do C.P. e outros tantos, p. e p. no art. 211º, nº3, do C.P. na pena única de 4 anos de prisão efectiva (em cúmulo com outra pena anterior cuja execução estava suspensa, a pena única foi de 4 anos e dois meses de prisão efectiva).
Na data da leitura do acórdão foi determinada a prisão preventiva (fls. 827) e é desse despacho que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1ª Por despacho do M.mo Juiz Presidente do Tribunal Colectivo “a quo” foi aplicada à recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.
2ª Quando a decisão condenatória não tenha transitado - e a ora recorrente a tenha igualmente impugnado pela via do recurso - é manifestamente injusto e ilegal a aplicação cega e automática de uma qualquer medida de coacção privativa de liberdade.
3ª Tendo em conta o disposto no artigo 49º nº 2 do CPP e o artigo 14º n” 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Cívicos e Políticos (este, em vigor ao abrigo do artigo 40º da Lei Básica), todo o arguido (ou pessoa) se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
4ª A referência no despacho recorrido à eventual “a má influência para a sociedade e o perigo de fuga” é, salvo o devido respeito, não só descabida, como ilegal.
5ª A prisão preventiva é uma medida de coacção que se reveste da sua aplicação a título excepcional, ou seja, só deverá ser aplicada quando se mostrem insuficientes todas as outras medidas cautelares, não bastando para tal, como decorrem da lei, a existência de indícios meramente suficientes, devendo-se reportar-se de ilegal a prisão destinada unicamente com o intuito de cumprimento atempado da decisão se esta ainda não transitou em julgado.
6a Não ocorreu “in casu” nenhuma das situações que se revelem indequadas ou insuficientes à aplicação de outras medidas de coação que não a prisão preventiva e, por outro, no caso concreto, não se verifica nenhum dos requisitos enunciados no art.º 188.º do C.P.P.
7ª Apesar de o artigo 193.º do CPP, à primeira vista dar a entender que a prisão preventiva é de aplicação automática nos casos dos crimes incaucionáveis, tal entendimento tem de ser posto de parte.
8a A recorrente é residente permanente na R.A.E.M., aqui vivendo e residindo na companhia do seu marido e dos seus dois seus filhos menores, estudantes, de quem, é o único amparo e que, consequentemente, dela dependem exclusivamente.
9a Os seus filhos sentem muito a falta da mãe e a recorrente também é a pessoa que toma conta e cuida da sua mãe e da mãe do seu marido, que são pessoas doentes com necessidade de apoio.
10a A recorrente sempre cumpriu com todas as medidas de coação que lhe foram aplicadas (caução, apresentação periódica e TIR) e nunca se furtou a justiça no presente caso, concretamente, esteve presente na audiência de julgamento e na leitura de sentença.
11ª A recorrente não vai “fugir” porque os seus filhos e a sua família são a coisa mais preciosa que tem na vida e, após o seu recurso, se tiver que cumprir pena de prisão aceitará essa responsabilidade.
12a A não aplicação da prisão preventiva permite à recorrente poder desfrutar dos seus filhos e estes dela e lhes dar todo o apoio e carinho até, caso isso aconteça, ter de cumprir pena - caso o tribunal negue o seu recurso.
13a A medida de coacção imposta, não sendo, como se verá, necessária à finalidade a que se destina, tem assim como consequência directa imediata o facto de colocar a arguida recorrente na impossibilidade de cuidar, apoiar e acompanhar os filhos menores.
14a A recorrente também irá entregar o dinheiro às pessoas porque sempre desde o inicio que se comprometeu a isso e apesar das dificuldades económicas vai fazer todos os esforços para que isso aconteça.
15a Não é, proporcional a aplicação da prisão preventiva em face à gravidade dos crimes (burlas de pequeno valor) quando em confronto com a possibilidade de lhe ser retirado o passaporte e obriga-la a apresentações semanais junto de autoridade judicial.
16a A decisão recorrida violou, assim, aqueles referidos princípios da adequação e da proporcionalidade e, bem assim, o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva (artigo 186º do CPP)
17a O único motivo invocado pelo despacho recorrido nesse sentido é o “receio de fuga” que, salvo o devido respeito, pelo concreto caso do recorrente, inexiste.
18a O despacho recorrido não refere os motivos de facto que sustentam tal alegação, pelo que, por falta de fundamentação, além de nulo (art.º 360º, alínea a), 355º nº 2 e 87º nº 4 do C.P.P.), impede o recorrente de exercer o contraditório, princípio basilar do processo penal.
19a É descabido falar em “receio de fuga”, agora, quando, até ao julgamento e à leitura da sentença a recorrente sempre este presente e manifestou a intenção logo em acta de recorrer - sempre acreditando que terá uma decisão justa.
20a A recorrente é residente permanente de Macau, aqui residindo e vivendo de forma estável com os seus 2 filhos e a sua família, pelo que não existe qualquer perigo de fuga, podendo assim comparecer a quaisquer diligências sempre que se mostrar necessário e for notificada para o efeito.
21ª É de concluir que inexiste tal “receio de fuga” tanto mais que a recorrente, como residente permanente da R.A.E.M., está, esteve e estará à disposição dos autos, sendo certo que, além disso, o Tribunal “a quo” poderia aplicar à recorrente outras medidas que se adequariam à situação em concreto, como sendo as previstas no artº 183º (“obrigação de apresentação periódica”) e/ou artº 184º (“proibição de ausência”).
22a A arguida tem demonstrado claramente que não pretende eximir-se das suas responsabilidades, como já se referiu, e tem tido uma conduta irrepreensível no processo.
23a Em muitas situações de crimes mais graves é decidido que o arguido pode esperar o julgamento em liberdade à espera da decisão do Tribunal de Segunda Instância sendo geralmente aplicada a proibição de ausência de Macau e apresentações semanais.
24a A manutenção da medida aplicada de prisão preventiva a aguardar decisão sobre o seu recurso viola o exercício dos direitos fundamentais da recorrente e também viola os requisitos da sua aplicação.
25a A aplicação de uma medida de coacção tem de se revestir dos requisitos de proporcionalidade, necessidade, subsidiariedade e adequação (cfr. artigo 188º e 178º do C. P. Penal).
26a O n.º 2 do artigo 178º do CPPM que “A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício dos direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer”.
27ª E tal situação aplica-se, também, como supra se referiu, à grave e injustificada inconveniência familiar que a medida em apreço causa à arguida recorrente.
28ª A decisão violou ainda as normas dos artigos 176º, 177º, 178º nº 1 e 2, 188º, 196º, todos do Código de Processo Penal.
Termos em que deverá o recurso interposto ser procedente e em face do acima exposto e atento aos princípios de proporcionalidade, necessidade e de adequação, deverão V. Exªs revogar a medida de coacção de prisão preventiva, uma vez que não existe perigo de fuga e existe a necessidade da mesma estar com os seus 2 filhos e família e estes com ela, podendo-lhe ser aplicada em substituição a proibição de ausência de Macau e apresentação periódica junto de entidade policial em dias e horas estabelecidos por V. Exa”.
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Não houve contra-alegações.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido de que o recurso não merece provimento, nos seguintes termos:
“Atenta a posição assumida relativa ao douto aresto controvertido e pugnando-se pela manutenção da pena de prisão efectiva aplicada, não faria sentido, por prejudicado, no presente momento, o escrutínio da medida de prisão preventiva também sob recurso (a nosso ver, estranhamente não processado e “subido” em separado).
De todo o modo, sempre se dirá que, atentos os elementos presentes na decisão, a medida se justificava, colocando-se, além do mais, efectivamente o real perigo de fuga, atenta até a condenação registada, razões por que, aliás, certamente se manteve tal medida já em reapreciação neste Tribunal.
Tudo razões por que se entende não merecer provimento qualquer dos recursos”.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
Na acta de audiência de Julgamento de fls. 826 dos presentes autos, na sequência da leitura do acórdão de condenação da arguida em 4 anos de prisão efectiva, pela prática de 13 crimes de burla na forma consumada, p. e. p. pelo art. 211º, nº1, do C.P. e outros tantos, p. e p. no art. 211º, nº3, do C.P. na pena única de 4 anos de prisão efectiva (em cúmulo com outra pena anterior cuja execução estava suspensa, a pena única foi de 4 anos e dois meses de prisão efectiva), foi proferido o seguinte despacho:
“Após ouvido o parecer do Ministério Público e do defensor, tendo em consideração a prática de 13 crimes de burla e de 1 crime de burla de valor elevado pela arguida A (XXX), que foi condenada na pena de 4 anos de prisão efectiva, e em cúmulo jurídico da pena aplicada nos autos CR2-11-0251-PCS, foi condenada na pena de 4 anos e 2 meses de prisão efectiva, dado que o crime de burla de valor elevado, p. e p. pelo art.º 211º, n.3 do Código Penal por si praticado cuja moldura penal é superior a 3 anos de prisão, bem como, tendo em consideração a duração do tempo na prática do crime, o número dos ofendidos e as repercussões negativas causadas à sociedade, a fim de evitar o perigo de fuga da 1 a arguida, nos termos dos princípios de adequação e proporcionalidade, o Tribunal determinou aplicar à 1 a arguida a medida coactiva de prisão preventiva durante o recurso, ao abrigo dos art.º 176º, 177º, 178º, 186º, n.º1, al. a) e 188º, al. a) do Código de Processo Penal”.
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III- O Direito
Vem o recurso interposto do despacho que, imediatamente após a leitura do acórdão punitivo da arguida A, e uma vez por esta expressada a interposição de recurso jurisdicional, determinou que aguardasse os ulteriores termos dos autos em prisão preventiva.
A recorrente não se conforma, começando por chamar à colação o disposto no art. 49º, nº2 do CPP e 14º, nº2 do Pacto Internacional sobre Direitos Cívicos e Políticos, para dizer que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
Ora, este argumento não pode servir de obstáculo à medida de coacção, pois o instituto em apreço não supõe a aquisição de uma certeza quanto à prática dos factos, e se basta com uma forte aparência (“fortes indícios”) da prática do crime (art. 186º, nº1, al. a), do CPP). Ou seja, mesmo que a presunção de inocência acompanhe o arguido até à condenação transitada, a verdade é que a medida pode justificar-se, precisamente, para que a matéria de facto possa ser totalmente obtida no processo com a sua presença, justamente com o fim de que ele se possa defender adequadamente. E se a medida por isso se justifica, da mesma maneira se legitima para a realização plena da justiça, sempre que a aquisição fáctica revelar que ele, arguido, é autor do crime. Nesse caso, a aplicação dessa medida de coacção justificar-se-á sempre que as outras menos severas não sejam adequadas ou suficientes ao caso (art. 186º, nº1, do CPP).
É por o tribunal achar que as medidas restantes são inadequadas, que a mais gravosa se aplica somente como ultima ratio, no quadro de uma situação de excepção (ainda art. 178º, nº3, do CPP).
É, aliás, neste sentido que se faz apelo a critérios de proporcionalidade de que trata o art. 178º do CPP. Todavia, “O princípio da adequação exige que qualquer medida de coacção a aplicar ao arguido, em cada caso concreto, seja idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da cautela, da finalidade a que se destina” e o “Princípio da proporcionalidade impõe que a medida deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do crime ou crimes indiciados no processo” (Ac. TSI, de 15/03/2001, Proc. nº 39/2001).
Portanto, a adequação a proporcionalidade hão-de ser os faróis que iluminem o julgador em cada caso concreto, sendo certo que a medida de prisão preventiva deve ser utilizada somente cum grano salis, logo, com prudência e sensatez.
Neste aspecto, não cremos que a 1ª instância se tenha desviado deste trilho. A arguida foi condenada por 13 crimes de burla na forma consumada, p. e. p. pelo art. 211º, nº1, do C.P. e outros tantos, p. e p. no art. 211º, nº3, do C.P. na pena única de 4 anos de prisão efectiva (em cúmulo com outra pena anterior cuja execução estava suspensa, a pena única foi de 4 anos e dois meses de prisão efectiva).
Bem sabemos que a decisão não transitou. Mas se a severidade de uma qualquer medida de coacção se há-de ajustar à força dos indícios reveladores de um ilícito criminal, mais ela se imporá se os factos foram já objecto de julgamento culminado numa condenação. Haverá que reconhecer-se que o arguido, quando condenado, fez o tribunal transpor a barreira da convicção assente em meros indícios para a aquisição de uma verdade material (mesmo que ainda não totalmente tranquila enquanto não se verificar o trânsito) assente num certo grau de certeza.
Neste sentido, a condenação e a pena aplicada decorrem da obtenção desses dados, a que acresceram a personalidade da arguida, as circunstâncias dos ilícitos, a culpa elevada, a quantidade de crimes cometidos, a repercussão económica nos ofendidos. Até mesmo se deve levar em conta que ela não confessou a prática destes crimes e que não era delinquente primária, pois já havia sido condenada por “contratação ilegal” em 2011.
Tudo isto nos expõe perante o receio que o M.mo juiz manifestou no seu despacho, ora recorrido, quando aludiu ao perigo de fuga.
A circunstância de ser mãe de dois filhos menores e de ter comparecido à audiência, ao contrário do que alega a recorrente, em nada serve para afastar esse perigo. Na verdade, este segundo facto pode ter sido fundado na convicção de que, ou não seria condenada, ou que poderia ver aplicada uma pena de prisão com execução suspensa. E quanto ao primeiro, os filhos não devem ser motivo para se pensar que a arguida não pode querer escapar à prisão, pois que se desconhece se os levaria consigo na fuga ou se não teriam eles possibilidade de permanecer em Macau ao cuidado de outros familiares. De resto, a espera nessa situação de privação de liberdade não se prolongará durante muito mais tempo, já que o julgamento dos outros dois recursos está já marcado para o próximo dia 6/09/2012. Significa que não é grande o período de tempo entre o momento da aplicação da medida e o da solução final do processo, circunstância que, caso venha a ser suspensa a execução da pena, não importará reflexo de grande relevo no amparo que os filhos esperariam de si (mas a arguida deveria ter pensado neles antes de ter iniciado a longa lista de ilícitos).
Tudo isto, por conseguinte, para concluir que, tal como bem o representou o tribunal recorrido, também nós pensamos que existe o perigo de fuga a justificar que a arguida aguarde até 6/09/2012 em prisão preventiva, não havendo pois motivos para revogação da medida aplicada.
Improcede, pois, o recurso.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, o despacho impugnado.
Taxa de justiça pela arguida recorrente em 6 UC.
TSI, 2 de Agosto de 2012
José Cândido de Pinho
Jerónimo Alberto Gonçalves Santos
Io Weng San