Processo n.º425/2012
(Recurso cível)
Data : 26/Julho/2012
ASSUNTOS:
- Embargos de terceiro
- Possuidor e proprietário
- Defesa da posse
-Contrato promessa
- Direito de retenção
SUMÁRIO:
O promitente comprador que pagou integralmente o preço, recebeu as chaves da fracção, age como dono, recebe até rendas do promitente vendedor que, com sua autorização ocupa a casa, é um possuidor que reúne os requisitos para poder defender a sua posse, embargando de terceiro numa execução onde foi penhorada a dita fracção.
O Relator,
João Gil de Oliveira
Processo n.º 425/2012
(Recurso Cível)
Data: 26/Julho/2012
Recorrente (embargante): A
Recorrido (embargada): B, Lda. (B有限公司)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A, mais bem identificada nos autos, veio deduzir Embargos de Terceiro à execução intentada pela
B, Lda, com os melhores sinais dos autos, contra
C, do sexo masculino, residente na Avenida XX, Edif. “XX”, Xº andar, Letra “X”,
pedindo que fosse julgada procedente por provados presentes embargos e, em consequência:
a. Seja reconhecida a posse da embargante, sobre o imóvel penhorado à ordem dos presente autos, como legítima, pacífica, pública, a título oneroso, de boa fé e titulada;
b. Seja restituída à embargante a posse do imóvel penhorado;
c. Seja ordenado o levantamento da penhora, bem como o cancelamento do respectivo registo.
2. A acção veio a ser julgada improcedente e, inconformada, a autora vem recorrer da sentença, alegando, em síntese conclusiva:
A) Por todo o supra exposto, ressalvado o devido respeito, está a douta sentença do Tribunal a quo ferida de nulidade, pois a sua fundamentação está em oposição, clara e inequívoca, com a decisão tomada (cfr. alínea c) do n.º 1 do art. 571.° do Código de Processo Civil de Macau).
B) Tal oposição entre fundamentação e decisão é clara e evidente no que concerne aos pedidos formulados pela então Embargante relativamente ao pedido de reconhecimento judicial da sua posse, que desde já se requer (cfr. art. 1210.° do Código Civil de Macau e artigos 5.° e 6° do Código do Registo Predial).
C) Para além de que, ressalvado o devido respeito, deveria também o Tribunal a quo ter julgado procedentes os pedidos de restituição da posse à Recorrente, que desde já se requer (cfr. art. 297. Código de Processo Civil de Macau);
D) bem como o respectivo levantamento da penhora sobre o imóvel, que esta possui, bem como o cacelamento do respectivo registo, que desde já se requer, sendo que assim não foi, crê-se, devido a um equívoco de interpretação de normas legais, bem como uma aparente deficiência na aplição do direito ao caso concreto.
Termos em que, entende, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e em consequência serem os RR. condenados nos pedidos.
3. B, LIMITADA, Embargada nos autos à margem identificados, vem apresentar as suas CONTRA – ALEGAÇÕES, alegando fundamentalmente e em síntese:
A - A sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, nomeadamente a prevista no art. 571.°, n.º 1, al. c) do C.P.C., desde logo porque declarou improcedentes os embargos de terceiro, não com base na questão da posse, mas mediante a declaração de procedência do pedido reconvencional - o reconhecimento do direito de propriedade.
B - Na própria sentença se dissipa qualquer eventual contradição que pudesse existir, quando, depois de fundamentar doutrinalmente a questão, se conclui que: “… apesar de estar provada a posse da embargada, os seus pedidos não podem deixar de improceder face à prevalência do direito de propriedade do embargado/executado."
C - Ora, uma coisa é considerar que existe posse e, assim, legitimidade para deduzir embargos de terceiro; outra - bem diferente - é daí necessariamente extrair a conclusão da sua procedência, como parece querer a Recorrente.
D - Assim, porque a sentença não apresenta qualquer vício lógico ou de raciocínio, nem tão pouco nenhuma contradição entre as razões que a suportam e a decisão final, deverá ser declarada improcedente a arguida nulidade da sentença (cfr. Acórdãos do TSI de 15.03.2012 e 10.11.2011, proferidos no âmbito dos processos n.º 674/2011 e n.º 955/2009, respectivamente).
E - O título ao abrigo do qual a Recorrente se arroga como "possuidora" do imóvel penhorado nos autos resulta da celebração de um contrato promessa.
F - Contrariamente ao que alega a Recorrente, resulta claramente dos autos que, o contrato promessa em apreço não foi celebrado com eficácia real, porquanto, analisado o seu conteúdo, logo resulta que o mesmo não cumpre os requisitos previstos no art. 407.°, n.º 1 do Código Civil, desde logo porque ali não se faz qualquer referência a que as partes lhe tenham atribuído tal efeito.
G - Tal contrato promessa foi registado, em 25.06.2008, como provisório por natureza.
H - De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 298.° do Código de Processo Civil, quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse - como é o caso -, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida.
I - A Embargada e ora Recorrida pediu, em sede de reconvenção, o reconhecimento do direito de propriedade do executado sobre o imóvel penhorado.
J - Não há dúvida que o direito de propriedade do imóvel penhorado pertence ao Executado: o imóvel encontra-se registado em nome do Executado desde 18.10.2001, donde é inequívoco que o direito de propriedade pertence ao mesmo.
K - Quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse (do embargante ou do terceiro em nome do qual ele possui), a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo) que, como tal, pode ser ilidida, vindo o art. 357-2 proporcionar, quer ao exequente, quer ao executado, a alegação e a prova de que o direito de fundo (seja o direito de propriedade, seja outro direito real de gozo) pertence a este. Provada a alegação, os embargos serão julgados improcedentes." - cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 246.
L - Uma vez que a questão da propriedade, após a sua invocação pelo embargado, prevalece sobre a da posse, só o possuidor causal, ou o possuidor formal de coisa não pertencente ao executado, pode ter a segurança, uma vez provada a causa de pedir, de que os embargos não serão julgados improcedentes. " - cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 246.
M - O primeiro caso (de possuidor causal) abrange, quer o possuidor-proprietário, quer o possuidor cuja posse se baseie na titularidade dum direito real menor de gozo (usufrutuário, proprietário de raiz, etc.).
N - A sentença recorrida não violou qualquer norma jurídica e a interpretação que consagra, nomeadamente, a propósito do art. 7.° do Código do Registo Predial, bem como do art. 1193.° do Código Civil, não merece qualquer reparo ou juízo de censura.
O - A verdade é que, como bem resulta da sentença recorrida: "a embargante não tem qualquer expectativa legítima de se considerar proprietária do imóvel pela simples celebração do contrato promessa. Deste contrato só lhe advém o direito de exigir a celebração do contrato prometido e apenas com a celebração deste contrato é que a embargante adquire a propriedade do imóvel."
P - Pelo que, uma vez reconhecido que o direito de propriedade do imóvel penhorado pertence ao executado - o qual de maneira nenhuma pode ceder perante a celebração de um contrato promessa - , bem andou a sentença recorrida e sempre deverão improceder os embargos.
Termos em que deverá o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida.
4. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 4 de Fevereiro de 2009 foi penhorada à ordem dos autos de execução de que estes são apenso a fracção autónoma destinada a habitação, designada por “F5” do xº andar, Letra “F”, 1 prédio sito em Macau, nºs XX a XX, da Avenida XX e nºs XX a XX, da XX, inscrito na matriz predial sob o artigo 070017 e descrito Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XX a fls 139v do livro B-44, com o título constitutivo da propriedade horizontal, registado sob o nº 517 do livro F2 e inscrição do proprietário nº XX (alínea A) dos factos assentes).
- A penhora referida em A) foi inscrita na competente Conservatória do Registo Predial em 4 de Fevereiro de 2009 (alínea B) dos factos assentes).
- Em 25 de Junho de 2008 relativamente à fracção autónoma identificada em A) foi inscrita provisoriamente na Conservatória do Registo Predial a aquisição a favor da embargante com base em contrato de promessa de compra e venda de 21 de Maio de 2008 (alínea C) dos factos assentes).
- Damos aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais o documento de folhas 37 a 39 (alínea D) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Em 25 de Fevereiro de 2009, a embargante obteve a certidão do registo predial da fracção autónoma em A) dos factos assentes (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Em 21 de Maio de 2008 o executado quis prometer vender à ora embargante e esta quis prometer comprar a fracção referida em A) (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Na data referida no item anterior a embargante recebeu as chaves da fracção autónoma referida em A) (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- A embargante pagou nessa data ao executado a quantia de HKD$1.200.000,00 e o pagamento diferido por um mês de HKD$250.000,00, que a embargante já efectuou (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- A embargante e a parte tencionavam transmitir todas as faculdades de gozo daquela fracção autónoma do executado para a embargante (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O executado por não estarem ainda concluídas as negociações atinentes à alteração da sua residência, tomou de arrendamento à ora embargante a fracção referida em A) (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Pelo referido no item anterior o executado paga à embargante a quantia mensal de MOP$1.500,00 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso, para além da questão relativa à procedência do pedido reconvencional passa essencialmente por saber se a embargante, aqui recorrente, dispõe de posse sobre o questionado prédio prometido vender, que possa ser defendida através de embargos de terceiro, face à posterior penhora de que o mesmo prédio foi objecto.
2. Do pedido reconvencional
Sinceramente que não se alcança o que pretende a recorrente se comprovada vem a qualidade de proprietário do executado sobre a referida fracção objecto da penhora, tal como resulta do registo predial.
Nem se percebe como é que pode pretender opor a sua posse de promitente comprador - arrendatário até – à situação real decorrente da qualidade do proprietário em termos de estabelecimento dos direitos em confronto.
Bom, sobre isto, nada mais haverá a dizer para além do que foi dito na douta sentença, razão por que se transcreve o que a este propósito exarado foi:
“Direito de propriedade do embargado/executado
Estipula o artigo 298º, nº 1, do CPC, que “Quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida.”
É precisamente com base nessa norma que a embargada/exequente vem deduzir pedido reconvencional a fim de o embargado/executado ser reconhecido como proprietário do imóvel penhorado.
Conforme a certidão de registo predial junta a fls 18 a 25, a fracção autónoma penhorada está inscrita a favor do embargado/executado. Ora, nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.” Uma vez que nada consta dos autos que possa afastar a presunção acima referida, é de reconhecer que o direito de propriedade sobre o bem penhorado pertence ao embargado/executado.
Nem se diga que do artigo 1193º, nº 1, do CC também consta uma presunção de titularidade do direito a favor da embargante. É que, não se pode omitir a ressalva constante da segunda parte da mesma norma. Segundo o referido preceito, “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.” (sublinhado nosso).
Ora, a inscrição do direito de propriedade a favor do embargado/executado foi feita em 18 de Outubro de 2001 enquanto que a posse da embargante não podia ter começado antes de 21 de Maio de 2008, data em que prometeu comprar o imóvel penhorado e obteve as respectivas chaves.
É, pois, de julgar procedente o pedido reconvencional.”
Importa, no entanto, fazer uma ressalva quanto à amplitude da procedência do pedido reconvencional, onde se pedia para além do reconhecimento do direito de propriedade do executado sobre a dita fracção, o que parece indesmentível, de forma a considerar que esse reconhecimento não pode obstar aos embargos, como adiante se explanará, já que em certas condições eles não deixam de operar contra o próprio dono, não sendo raros os casos em que se concebe a defesa da posse mesmo contra o proprietário.
Daí que só parcialmente o pedido reconvencional pode ser procedente, apenas quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade do executado, mas propriedade esta que não obsta à procedência dos embargos opostos pelo possuidor promitente comprador com direito de retenção sobre a coisa.
3. Da posse e embargos
Vejamos:
O art. 351, nº1, do C.P.C. dispõe:
“Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou de entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
No fundo, a questão está em apurar se o promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte e se há, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse .
4. O caso
Trata-se (a embargante) de promitente compradora que pagou já a totalidade do preço, recebeu as chaves da fracção, exerce a sua posse através de um arrendamento feito com o ainda proprietário que lhe a prometeu vender, dele recebendo uma renda de MOP1.500,00 por mês.
5. Quanto à tutela da posse do promitente comprador, com traditio, corpus e animus sibi habendi sobre a coisa temos vindo a assumir a possibilidade de embargar de terceiro para defesa dessa mesma posse.
Actualizamos aqui o que sobre a matéria temos vindo a entender.
Será que o contrato promessa, ainda que com tradição da coisa, não é, por si só, suficiente para transferir a posse efectiva, mas apenas confere uma posse precária, consentida, uma mera detenção?
O artigo 875º do Código Civil de 1966, previa quanto à forma dos contratos de transmissão de propriedade de imóveis : “O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública”.
O artigo 866º do Código Civil de Macau, conjugado com o artigo 94º, n.º1 do Código de Notariado, determina, por seu lado, que a forma para transmissão de propriedade sobre imóveis é a escritura pública. Pelo que não existe outro modo idóneo, com eficácia translativa para um direito real de gozo sobre um imóvel, que não a celebração de escritura pública.
Assim a embargante numa primeira abordagem teria a posição de mera detentora da fracção autónoma objecto do contrato de compra e venda.
E, se a lei prevê um direito de retenção a favor do promitente-comprador, quando haja tradição da coisa, tal direito é para ser usado contra o promitente vendedor, traduzindo-se num direito real de garantia, não impedindo, por si, o arresto, ou a penhora, apenas permitindo ao promitente-comprador reclamar, a par com outros credores com garantia real, o seu crédito.1
A posição do mero promitente comprador sem traditio integra tão somente um direito de crédito a concretizar pelo promitente vendedor, que fica por essa via obrigado a vender-lhe a coisa prometida - cfr.. art. 407º, nº1 e 820º, nº2 do CC -, na esteira do entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela2o contrato-promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse ao promitente-comprador, já que este, mesmo obtendo a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, só adquire o corpus possessório mas não o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor.
Também Mota Pinto3 entende que se infere do artigo 670º, alínea a) do Código Civil pré vigente, a contrario, não ser admissível a posse nos direitos reais de garantia, entre eles o direito de retenção sobre a coisa que é objecto do contrato-promessa de que os embargantes gozavam ao tempo da celebração do contrato-promessa (artigo 442º, nº 3 do Código Civil) e posteriormente ao início de vigência do Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro (alínea f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil), mau grado a remessa do artigo 759º, nº 3 do Código Civil para as regras do penhor, isto é, para o citado artigo 670º, alínea a), segundo o qual o credor pignoratício adquiria o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que contra o próprio dono.
Assim também pensa M. Henrique Mesquita.4
E parte da Jurisprudência Comparada também vem defendendo que o promitente-comprador, sem mais, titular do direito de retenção sobre a coisa que lhe foi antecipadamente entregue, não pode deduzir embargos de terceiro5
Porém, opinião diferente tem Vaz Serra6, para quem o promitente-comprador que toma conta do prédio e pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por uma tolerância do promitente-vendedor, mas com a intenção de agir em seu próprio nome, passando a agir como se a coisa já fora sua, embora ainda a não tenha comprado, pratica actos possessórios sobre a coisa e com o animus de exercer em seu nome o direito de propriedade; daí o gozar dos meios possessórios que a lei reconhece ao possuidor para defesa da posse, com os embargos de terceiro, e, assim, a penhora da coisa em execução contra o promitente-vendedor autoriza o promitente-comprador a deduzir tais embargos de terceiro; no caso de antecipação da entrega da coisa, as partes, além do contrato-promessa, terão celebrado outro contrato inominado susceptível de protecção possessória, através do qual os promitentes-vendedores concederam aos promitentes-compradores o direito ao uso e fruição da coisa até à conclusão do contrato prometido ou resolução do contrato-promessa.
Por seu turno, Orlando de Carvalho7 sustenta que pode haver posse em certos direitos reais de garantia, como o direito de penhor e o direito de retenção, que conferem poderes de facto sobre a coisa, dado que a lei estabelece que o credor pignoratício tem o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono (artigo 670º, alínea a), o que também valia, por força dos artigos 758 e 759 n. 3 do Código Civil, para o titular do direito de retenção.
Finalmente, J. Calvão da Silva 8refere que o beneficiário da promessa, titular do direito de retenção, pode usar das acções referidas no artigo 670º, alínea a), ex vi dos artigos 758º e 759º, nº 3, pelo que pode recorrer aos embargos de terceiro. E este autor, noutro lugar (B.M.J. 349, página 86, Nota 55) defende que, para se saber se houve posse ou mera detenção no poder de facto do promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido, que lhe foi entregue antecipadamente, tudo depende do animus que acompanhe o corpus, isto é, se o promitente-comprador tiver animus possidendi, o que não é de excluir a priori, será possuidor, situação que pode ocorrer nos termos da alínea b) do artigo 1263º do Código Civil (v.g. o promitente-vendedor diz ao promitente-comprador que pode entrar para a casa e proceder como proprietário desde logo, como se ela fosse desde já sua, passando ele a actuar com animus rem sibi habendi, ou originariamente, nos termos da alínea a) do mesmo artigo 1263º), mas, se tiver animus detinendi, será detentor ou possuidor precário; e acrescenta que, em todos os casos de tradição da coisa para o promitente-comprador, a ocupação, uso e fruição da coisa por este é lícita e legítima, até à resolução do contrato-promessa ou celebração do contrato prometido, porque se constitui uma relação jurídica obrigacional que confere ao promitente comprador o direito relativo de ocupar, usar e fruir a coisa até uma daquelas duas referidas situações, seja qual for a classificação dada a essa relação jurídica; e certo é que o facto de o promitente-comprador gozar do direito de retenção da coisa é irrelevante para a questão de saber se houve posse ou mera detenção.
6. Pelo que toca à Jurisprudência Comparada, parece ser muito expressiva a corrente segundo a qual o promitente-comprador, tendo havido tradição da coisa, animus sibi habendi, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, ou pelo menos que, como titular do direito de retenção, goza de tutela possessória por isso até pode embargar de terceiro9.
7. Da nossa parte, seguimos na esteira destes últimos, realçando o clarividente esclarecimento de Calvão da Silva, segundo o qual tudo se resume a saber se o corpus da posse exercido pelo promitente-comprador é ou não acompanhado do animus possidendi, isto é, se ele actua com animus rem sibi habendi. De resto, tanto Pires de Lima e Antunes Varela admitem situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse, pois que ele pratica os actos não em nome do promitente-vendedor mas em seu próprio nome, actuando uti dominus, e apontam, como exemplo, o caso de já ter sido paga a totalidade do preço e a coisa ter sido entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já, passando este, nesse estado de espírito, a praticar sobre a coisa diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Para mais, quando o novo regime do contrato-promessa consagrado pelo Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto e com a entrada em vigor deste novo diploma legal, para além da consagração do direito de retenção, o seu artigo 820º, n.º2, in fine, vem reforçar o privilégio creditório ao promitente-comprador com entrega da coisa, dando maior relevo à posse do promitente-comprador, ou seja, “(...) ainda que tenha havido convenção em contrário, o promitente-adquirente, relativamente a promessa de transmissão ou constituição onerosas de direito real sobre prédio ou fracção autónoma dele, goza do direito à execução específica, contanto que tenha havido a seu favor tradição da coisa objecto do contrato”.
8. E por último, mas não menos importante, na ordem da RAEM, assim têm entendido os nossos Tribunais, a começar pelo TUI10 e generalizadamente a Jurisprudência deste TSI.11
9. Posto isto, importa verificar se se observam os mencionados requisitos na situação possessória de que a embargante se arroga.
E a projecção dos indispensáveis requisitos acima vistos no caso concreto, sendo que cada caso é um caso, não são despiciendos, dependendo do circunstancialismo individualizadamente apurado, tal como ainda recentemente se fez notar em acórdão deste Tribunal12 que entendeu ser necessário apurar as circunstâncias concretas para aquilatar das características da posse e da possibilidade de o possuidor poder embargar.
Face ao enquadramento teórico acima desenvolvido, verifica-se que a embargante parece reunir todos os requisitos: promitente compradora, pagamento do preço, traditio com entrega das chaves, intenção de transmissão de todas as faculdades de gozo, ocupação da fracção através do ainda proprietário, promitente vendedor, sendo que este até lhe tomou de arrendamento o imóvel, por ele pagando uma renda mensal, rendas estas recebidas pela promitente compradora.
Na verdade, alegando-se uma dificuldade burocrática de alteração de residência, o que teria protelado a realização da escritura - o executado, promitente vendedor, reconhecido até como proprietário da casa, passou a ter a qualidade de arrendatário, passou a pagar rendas à promitente compradora.
Ora, não é fácil compaginar a existência desse arrendamento com a situação de alguém que ainda é o proprietário da fracção. Tal situação só se compreende se alcançarmos que o proprietário, aquele que juridicamente ainda é o proprietário, abriu já mão da coisa e até admite pagar uma renda mensal de uma coisa que já não tem como sua. Ao invés, reforça-se a ideia de que o animus sibi habendi passa a existir do lado do promitente comprador que pagou a totalidade do preço, recebeu as chaves, tem-se como dono, que possui a coisa como sua, que sabe ou estima ser sua, porque a pagou e até já recebe rendas mensais pagas por quem lha transmitiu. A posse do promitente adquirente passa a ser exercida através dos poderes de facto exercidos pelo promitente vendedor.
Não deixa de poder ser algo suspeitoso - ainda que não se equacione neste momento uma hipótese de simulação, afastada que foi a sua comprovação na sentença - que alguém que tenha vendido (prometido vender) a coisa, recebido o preço, ali continue na situação de arrendatário, ainda que tal situação possa configurar uma situação de constituto possessório no caso de efectiva transmissão da propriedade. Mas é esta a realidade que vem comprovada e é sobre ela que este Tribunal tem de enquadrar juridicamente.
Assim, sedimentado fica o animus sibi habendi, condição que reforça a posição possessória que garantirá a sua tutela contra actos que a pusessem em causa, tal como é o caso da penhora.
10. Estamos assim em condições de assinalar que o promitente comprador, com pagamento integral do preço, entrega das chaves e posse sobre a coisa exercida através de outrem, que até lhe paga renda, comprovativa de um animus sibi habendi, fica em condições de embargar de terceiro na referida penhora, tudo à luz do desenvolvimento acima explanado.
11. Aliás, reforçando as citações de autoridade já acima produzidas, ainda neste mesmo sentido, Amâncio Ferreira afirma que “o promitente comprador que goze do direito de retenção nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 755º do CC (leia-se 745º, n.º 1, f) do CC de Macau) pode embargar de terceiro, máxime se o direito de execução específica não puder ser afastado pelos contraentes”.13
Também Lebre de Freitas afirma ser “incompatível com a penhora a posse do promitente adquirente para quem em cumprimento de obrigação contratual, tenha sido transferida a posse da coisa prometida.”
No mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, diz que o “promitente comprador que beneficia da tradição da coisa pode comportar-se como verdadeiro possuidor em nome próprio, isto é como titular do correspondente direito real (nomeadamente, a propriedade) … pelo que pode embargar de terceiro”14.
No mesmo sentido, Menezes Cordeiro.15
Na verdade, se assim não fosse, como poderia o promitente comprador garantir o direito à execução específica, a exercer contra o vendedor promitente, proprietário da coisa prometida vender?
Sendo certo que se tal direito conferisse apenas àquele o direito a reclamar na execução um direito de crédito, tal seria a negação do direito de retenção, com possibilidade expressa de defesa da posse com recurso aos embargos, tal como decorre do artigo 749º, n.º 3 e 666º, al. a), mesmo contra o próprio dono, como neste último artigo se menciona expressamente.
12. Face à argumentação expendida na douta sentença, provando-se que o executado era o proprietário, tal como decorreu da procedência do pedido reconvencional, decisão confirmada por este TSI, daí resultaria a impossibilidade de contrapor a posse do embargante à propriedade do executado.
Importa dar resposta a esta argumentação e interpretar devidamente esse n.º 2 do artigo 298º que prevê:
“Quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida”.
Foi nesta norma que a Mma Juíza se louvou para julgar improcedentes os embargos.
Mas, em bom rigor, só de uma leitura mais apressada do art. 298º, n.º 2 do CPC, se poderão extrair as conclusões vertidas na douta sentença recorrida.
Essa norma não poderá deixar de ser articulada com o disposto no art. 292º, n.º 1 do CPC que prevê:
“Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.
A posse que se pretende prevalecer é a que seja incompatível com a realização da diligência.
13. Mas vamos explicar as coisas pelas palavras de Miguel Teixeira de Sousa.
Explica o Professor16 que a referida exceptio dominii do art. 298º, n.º 2 do CPC “só pode ser considerada procedente quando a posse do terceiro não seja oponível à execução, ou seja, quando ela se deva extinguir com a venda executiva (cfr. art. 824º, n.º 2 do CC)
- em Macau, 814º, n.º 2 do CC:
Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que , constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceirosindependentemente do registo -
se essa posse se mantiver depois daquela venda, isso significa que ela é oponível à execução e, por isso, não pode ser afectada pela exceptio dominii.
Assim, as condições de procedência da exceptio dominii determinam-se pelo seguinte critério: a propriedade do executado sobre os bens penhorados prevalece sobre a posse do terceiro quando esta se baseia num direito que, por ter sido registado ou constituído depois do arresto, penhora ou garantia, é inoponível à execução e, por isso, se extingue com a venda executiva (cfr. art. 824º, n.º 2 do CC).”
Ora, é exactamente o que se passa no caso sub judice. Nos termos do art.744º, 745º, n.º 1, f) e 749º, n.º 1 do CC o titular do direito de retenção, independentemente até do direito à execução específica tem o direito de não a entregar até à satisfação do seu crédito e de ser pago até com preferência aos demais credores do devedor, donde resulta uma incompatibilidade entre o direito de retenção e a penhora, não bastando esgrimir com a propriedade do executado para obstar ao efeito útil dos embargos.
O executado é o proprietário, sim, mas tal não impede que na situação em apreço não lhe possa ser oposta a posse do embargante, aliás, como a própria lei expressamente prevê, tal como acima visto, ainda que seja contra o próprio dono.
14. Em face de todo o exposto, a acção não deixará de ser julgada procedente.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, julga-se apenas parcialmente a reconvenção, na medida em que se reconhece o executado como proprietário da fracção, mas improcedente na parte em que se pede a improcedência dos embargos, antes julgando-se estes procedentes, restituindo-se a fracção à embargante, levantando-se a respectiva penhora e cancelando-se o respectivo registo.
Custas pela embargada exequente.
Macau, 26 de Julho de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de4 Pinho
1 - Esta a posição generalizada no STJ, cfr., entre outros, acs., proc. 08A272, de 04/29/2008, 08A745,
de 29/4/08, 07A4070, de 12/4/07, 07A2627, de 18/9/07, 05B1488, de 124/04
08A745;
2 Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2. edição, 6 precário (R.L.J. 124, páginas 347 e 348).
3 - Dtos Reais, 1971, 196
4 - in Direitos Reais, edição de 1967, 80
5 - Entre outros, para além dos já acima citados, sempre em termos de Jurisprudência Comparada, os acórdãos do S.T.J. de 28 de Novembro de 1975, 29 de Janeiro de 1980, 31 de Março de 1993, 23 de Janeiro de 1996, in, respectivamente, R.L.J. 109, página 334, R.L.J. 114, página 17, C.J. do Supremo, 1993, Tomo II, 44, C.J. do Supremo 1996, Tomo, página 70.
6 - R.L.J. 109, páginas 347 e seguintes e 114, páginas 20 e seguintes
7 - (R.L.J. 122, página 106
8 - in Sinal e Contrato-Promessa, 112
9 - Entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 18 de Novembro de 1982, 4 de Dezembro de 1984, 25 de Fevereiro de 1986, 16 de Maio de 1989, 22 de Junho de 1989, 21 de Fevereiro de 1991, 7 de Março de 1991, in, respectivamente, B.M.J. 321, página 387, 342, página 347, 354, página 549, 387, página 579, 388, página 437, 404, página 465, 405, página 456; Ac. S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118; Ac. S.T.J. de 19-1196, Col. Ac. S.T.J. III, 3º, 109; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137; Ac. S.T.J. de 23-5-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, 97; Ac. S.T.J. de 3-11-09, Col. Ac. S.T.J., XVII, 3º, 132; proc. 322-D/1999.E1.S2, de 29/11/2011; 860/03.3TLBGS-BE..S1, de 1/7/2010; 98B1062, de 20/1/99, 087325, de 29/6/95, estes últimos, in http:/www.dgsi .
10 - Ac. de 30/9/2008, proc. 26/2008
11 - Entre outros, acs. 246/02, de 27/2/03; 247/02, de 13/3/03; 195/04; 409/07, de 6/12/07; 198/02, de 24/10/02
12 - Ac. deste TSI 658/2010, de 12/1/2012
13 - Curso de Proc. De Execução, 7ª ed. 264 e 265
14 - Acção executiva Singular, LEX,, 1998, 310
15 - A posse: Perpectivas dogmáticas actuais, Coimbra, 1977, 77
16 - Ob. Cit.
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425/2012 1/26