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Processo nº 610/2012 Data: 26.07.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “falsificação de documentos”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.



SUMÁRIO

1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo

2. O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

O relator,

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José Maria Dias Azedo



Processo nº 610/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar B (B), com os sinais dos autos, como autora de 1 crime de “falsificação de documentos” p. e p. pelo art. 241°, n.° 1, al. c) e 243°, al. c) do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, na condição de, no prazo de 2 meses, pagar MOP$8.000,00 à R.A.E.M.; (cfr., fls. 93 a 95-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada com o assim decidido, a arguida recorreu.
Motivou para, em síntese, assacar ao Acórdão recorrido os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”, afirmando também que incorreu o Tribunal a quo em nulidade; (cfr., fls. 102 a 112).

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Em resposta pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da rejeição do recurso dada a sua manifesta improcedência; (cfr., fls. 114 a 116-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“As conclusões na Motivação (fls. 102 a 112 dos autos), demonstram que a recorrente invocou, como fundamento do recurso, o erro notório na apreciação da prova, a nulidade da aquisição da prova, a contradição da fundamentação e a insuficiência da matéria de facto para condenar a recorrente na autoria do crime p.p. pelos arts. 244° n.° 1- c) e 243° - c) do Código penal de Macau.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da Exma. Colega na sua Resposta (fls. 114 a 116 verso), e nada temos, de relevante, a acrescentar-lhes.
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Na 3ª conclusão, a recorrente argumentou que o auto de interrogatório do arguido de fls. 32 constitui o único suporte da matéria de facto provada, pelo que, na perspectiva da recorrente, o Acórdão recorrido fere do erro notório na apreciação da prova consagrado no art. 400° n.° 2 - c) do CPP, e infringe as disposições legais incluindo o princípio da aquisição directa de provas.
No entanto, do douto Acórdão in questio consta claramente que o Tribunal Colectivo a quo procedeu à global avaliação da declaração da arguida na audiência de julgamento, o depoimento da testemunha C (C), e os documentos, designadamente de fls. 14, 85 e 86 dos autos. (cfr. §2° de fls. 4 do Acórdão, e fls. 94 verso)
Esta explicação mostra indiscutível e firme que não corresponde minimamente à verdade material o argumento de que o auto de interrogatório do arguido de fls. 32 constituía, no caso sub judice, o único suporte da matéria de facto provada.
Em sintonia com as sensatas jurisprudências consolidas pelos TUI e TSI (vide., a título meramente exemplificativo, Acórdão do TUI no Processo n.° 16/2000 e do TSI nos Processos n.° 603/2011, n.° 470/2010 e n.° 603/2011), cremos tranquilamente que não se verifica o erro notório na apreciação da prova, nem a violação das disposições legais ou do princípio da aquisição directa de provas.
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Ora, a Acta de fls. 91 a 92 e o Acórdão em sindicância revelam, de forma indubitável, que durante a audiência de julgamento, o Tribunal a quo nunca fez a leitura do auto de interrogatório de fls. 32 dos autos. Daí advém a impossibilidade da violação, invocada nas 5ª a 8ª conclusões, do preceituado nos arts. 338° n.°1 e 337° n.°8 do CPP.
No Acórdão em causa, o Tribunal a quo deu como provado o facto de ao arrumar a casa, C (C), cônjuge da recorrente, encontrar o certificado de ensino secundário cuja fotocópia fica na fls. 14 dos autos, e apresentá-lo à PJ para esta averiguar se o qual for genuíno ou falsificado.
E, na Motivação do presente recurso, a recorrente não comprovou que o seu cônjuge C (C) tivesse utilizado qualquer dos meios contemplados no n.°3 do art. 113° do CPP para obter o dito certificado da recorrente.
Tudo isto revela que não se verifica in casu a assacada nulidade da aquisição da prova.
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A jurisprudência da RAEM vem pacificamente entendendo que a contradição insanável da fundamentação consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, tendo de se apresentar insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum. (vide. Acórdão do TUI no Processo n.°17/2000 e n.°52/2010).
Na 18ª conclusão da Motivação, a recorrente assacou que o Acórdão sob recurso padecia da contradição fundamentação, por não haver prova capaz de demonstrar que a recorrente utilizasse aquele certificado para ser contratada pelo Hospital KIANG WU.
Trata-se, pois, uma arguição manifestamente insubsistente.
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Finalmente, a recorrente invocou ainda a insuficiência da matéria de facto provada para condená-la na prática do crime p.p. pelos arts. 244° n.°1-c) e 243°-c) do CP, em consequência disso, a violação do princípio in dubio pro reu, com fundamento de o Hospital KIANG WU nunca ter intervindo no Inquérito nem no Julgamento.
Frisa-se que os próprios autos demonstram ser verdade nua que o Hospital KIANG WU nunca interveio no Inquérito ou no Julgamento. O que se exige saber se esta circunstâncias tiver originado a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Sustenta a boa doutrina (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas-Santos: Código de Processo Penal de Macau – Notas, 1997, p. 820): deve notar-se que a al. a) do n.°2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada indispensável à decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova art.° 400.°), que é insanável em reexame da matéria de direito.
Ponderando as declarações prestadas na PJ pela recorrente e pelo seu cônjuge C (C), acompanhamos, com hesitação, a perspectiva da Exma. colega na resposta, no sentido de se reunirem na recorrente todos os elementos constitutivos do crime condenado no douto Acórdão em crise – o p.p. pelos art. 244° n.° 1-c) e 243° -c) do CP.
Quer isto dizer, afigura-se-nos que não se verifica in casu a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, desta maneira, nem a violação do princípio in dubio pro reu.
Por todo o expendido supra, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 125 a 127).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Dão-se aqui como integralmente reproduzidos os factos elencados no Acórdão recorrido de fls. 95-v a 96.

Do direito

3. Vem a arguida recorrer do Acórdão do T.J.B. que a condenou como autora de 1 crime de “falsificação de documentos” p. e p. pelo art. 241°, n.° 1, al. c) e 243°, al. c) do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, na condição de, no prazo de 2 meses, pagar MOP$8.000,00 à R.A.E.M..

Considera que o dito aresto padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação”, “erro notório na apreciação da prova”, afirmando também que se incorreu em nulidade.

Cremos porém que nenhuma razão lhe assiste, mostrando-se de subscrever, na íntegra, o entendimento assumido pelo Ministério Público na sua Resposta e posterior Parecer, apresentando-se aliás o recurso como manifestamente improcedente, e sendo assim de rejeitar, como se consignou em sede de exame preliminar.

Vejamos.

–– Quanto aos “vícios da matéria de facto”.

No que toca à decisão da matéria de facto, tem este T.S.I. repetidamente afirmado que:

O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 01.03.2012, Proc. 62/2012).

No caso, de uma mera leitura ao Acórdão recorrido se constata que o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, pois que elencou a que do julgamento resultou provada, identificando a que não se provou – que no caso, não houve – e fundamentando, adequadamente, esta sua decisão.

Por sua vez, e como sabido é, só ocorre o vício de “contradição insanável” quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. o Acórdão deste T.S.I. de 24.05.2012, Proc. n° 179/2012).

E, assim sendo, é também patente que não padece o Acórdão recorrido de tal vício, pois que é toda a decisão recorrida clara e lógica, não se vislumbrando qualquer incompatibilidade – muito menos, insanável – entre a matéria provada ou entre a fundamentação e a decisão; (já que no caso não houve “factos não provados”).

Por fim, quanto ao “erro notório”, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que o mesmo só “existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 31.05.2012, Proc. n.° 49/2012 do ora relator).



E, na situação sub judice, evidente é também que o Colectivo a quo não violou nenhuma regra sobre o valor das provas tarifadas – que não existiam – o mesmo sucedendo com as regras de experiência ou legis artis.

Com a alegação de tal vício pretende apenas o recorrente tentar impor a sua versão dos factos, afrontando o “princípio da livre apreciação da prova” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., o que, como é óbvio, não colhe.

Apreciadas que assim ficam as questões suscitadas quanto à decisão da matéria de facto, continuemos.

–– Da “nulidade”.

Tanto quanto resulta da motivação e conclusões do recurso, (cremos que) entende a recorrente que se incorreu em nulidade porque se procedeu à leitura em audiência de julgamento das suas declarações antes prestadas.

Há equívoco.

Como bem saliente o Ilustre Procurador Adjunto, não se procedeu à leitura das declarações da arguida ora recorrente.

Na audiência, e como se encontra documentado em acta, (cfr. fls. 91 a 92), a arguida prestou declarações, e foi inquirida uma testemunha que, dada a sua relação com a arguida, até foi advertida que podia-se recusar a depor, o que não sucedeu.

Seguidamente, e em conformidade com o art. 336° do C.P.P.M., procedeu o Tribunal ao “exame dos autos”.

E, assim, certo sendo que dos autos consta prova que o certificado de habilitações que a arguida apresentou ao Hospital KIANG Wu não é verdadeiro, tendo-se também provado que a arguida o adquiriu a um indivíduo, que agiu livre e voluntariamente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida, bem se vê que nenhuma nulidade existe, adequada sendo também a decisão da sua condenação pela prática de 1 crime de “falsificação de documentos”, nenhuma censura merecendo o decidido.

Dest’arte, e outras questões não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).

Pagará a recorrente 5 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Macau, aos 26 de Julho de 2012

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 610/2012 Pág. 16

Proc. 610/2012 Pág. 1