Proc. nº 267/2012
(Recurso cível e laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Junho de 2012
Descritores:
-Nulidade de sentença
-Contrato a favor de terceiro
SUMÁRIO:
I- A oposição a que se refere o nº1, al. c), do art. 571º do CPC implica que os fundamentos invocados pelo julgador devessem ter conduzido logicamente a um resultado decisor oposto daquele que foi alcançado. Ou seja, a nulidade só se dá quando se detecta um vício de raciocínio que deveria ter conduzido a uma decisão diversa daquela para a qual o raciocínio conduziu efectivamente o seu autor.
II- A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de mão-de-obra não residente em Macau e outra empregadora dessa mão-de-obra, no qual esta assume desde logo um conteúdo substantivo mínimo das relações laborais a estabelecer com os trabalhadores que vier a contratar, tal como imposto por despacho governativo, representa para estes (beneficiários) um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da promitente empregadora gera um correspondente direito de indemnização a favor daqueles.
Processo nº 267/2012
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, de nacionalidade filipina, com os demais sinais dos autos, intentou no TJB contra Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Limitada, acção de processo comum laboral pedindo a condenação desta no pagamento da importância de Mop$ 141,724,00, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
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Na contestação a ré suscitou a intervenção principal provocada de “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Ldª”, excepcionou a preterição de tribunal arbitral e impugnou os fundamentos da acção.
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Negada a requerida intervenção principal, foi entretanto proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção de incompetência por preterição do tribunal arbitral.
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Conduzido o processo até à audiência de discussão, nesta foi pela ré requerida a ampliação da matéria da base instrutória, o que parcialmente foi deferido.
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Dessa decisão foi interposto pelo autor recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Da localização sistemática - Secção IV - Discussão e julgamento da causa - do art. 41.º do Código de Processo de Trabalho, e da sua ratio legis, resulta que tão-só os factos que tenham surgido no decurso da produção da prova permitem uma ampliação da base instrutória;
2. Porém, no caso sub judice os factos que a Ré requereu que fossem aditados à base instrutória não surgiram no decurso da produção da prova, mas antes em sede de articulados;
3. De onde, a ampliação da douta base instrutória carece de fundamento legal e, como tal, em caso algum poderia ser admitida;
4. Por outro lado, salvo melhor entendimento, o requerimento oralmente apresentado pela Ré, com vista à ampliação da base instrutória, configura antes um articulado superveniente destinado a modificar ou extinguir o direito do Autor, tal qual o mesmo foi apresentado na sua Petição Inicial;
5. Porém, o conjunto de factos aditados à douta base instrutória nada têm de supervenientes porquanto, não ocorreram depois dos articulados, nem a Ré fez mínima prova de que só teve conhecimento dos mesmos depois de findar o prazo dos articulados (art. 425.º, n.º 2 do CPC) e, como tal, devem os II novos” factos aditados serem retirados da douta base instrutória, por falta de fundamento legal para o seu aditamento;
6. Mesmo que assim se não entenda, tão-só e apenas factos controvertidos poderiam ter sido aditados à douta base instrutória (art. 433.º do CPC);
7. Porém, atento o teor dos articulados, não se vê como se poderia ter considerado como controvertidos os factos ora aditados;
8. Bem vistas as coisas, os factos aditados à douta base instrutória nem se revelam necessários, nem são pertinentes à boa resolução do caso, tendo em conta o já aceite e confessado pelas partes em sede de articulados;
9. E mesmo que pertinentes os factos aditados em nada se revelam necessários, porquanto não são controvertidos;
10. No entanto, mesmo que fossem controvertidos, nunca os factos poderiam ter sido aditados à base instrutória, porque a sua junção seria extemporânea tendo em conta as mais elementares regras do direito processual civil ou laboral;
11. Numa breve síntese, o Autor alegou ter sido trabalhador da Ré e que a sua contratação ocorreu posteriormente à celebração pela Ré de um contrato de prestação de serviços, tal qual determinava, ao tempo, o Despacho n.º 12/GM/88;
12. O Autor requereu na sua Petição Inicial que a Ré juntasse aos autos cópia dos «contratos de prestação de serviços» celebrados com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda. e, em especial, do «contrato de prestação de serviço» e respectivos Despachos de Autorização que permitiram a importação e contratação do Autor para prestar trabalho para a Ré;
13. Com a sua Contestação a Ré juntou o contrato de prestação de serviços n.º 29/94, sem fazer a mínima referência à existência de quaisquer outros contratos de prestação de serviço que tivesse permitido a contratação do Autor e a sua permanência na RAEM;
14. Apenas bem mais tarde, em vésperas de audiência de discussão e julgamento, a Ré fez juntar aos presentes autos um conjunto de contratos de prestação de serviços que a mesma celebrou há mais de uma dezena de anos com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada;
15. Os referidos contratos sempre estiveram na disponibilidade da Ré, porquanto a mesma é uma dos seus outorgantes;
16. A Ré requereu que os referidos contratos fossem admitidos aos presentes autos, mas nada requereu a respeito da necessidade ou conveniência de uma ampliação da base instrutória, nem muito menos do conjunto de factos que, em concreto, pretendia vir a aditar à mesma;
17. Tão-só depois de declarada aberta a audiência, a Ré requereu que fossem aditados 10 (dez) novos factos à douta base instrutória;
18. Ora, descontada a manifesta falta de colaboração processual por parte da Ré, sempre se deixa ver que o conjunto dos 10 (dez) factos que a Ré pretendeu ver aditada à douta base instrutória, diz respeito a matéria que já há muito o deveria ter sido suscitada, maxime em sede de defesa por excepção aquando da sua Contestação apresentada em Maio de 2009;
19. Por outro lado, tão-só a Ré está em condições de fazer prova dos quesitos que a mesma pretendeu aditar à base instrutória;
20. De onde, a Ré se serve dos seus “próprios erros” para em sede de audiência e julgamento conseguir o que não alegou, não contraditou ou não apresentou em sede de Contestação;
Mas mais.
21. Para além do aditamento de novos quesitos, a Ré requereu ainda ao Tribunal a quo que solicitasse oficiosamente aos Serviços de Migração no sentido de clarificar que contratos de prestação de serviço a própria Ré celebrou com a Agência de emprego Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda;
22. Isto é, a Ré serve-se do próprio Tribunal a quo para “lhe fazer o trabalho de casa”, escudando-se no magno princípio da descoberta da verdade material;
Ao que se diz acresce que,
23. Para que possam ser formulados novos quesitos sobre factos não articulados pelas partes, é necessário que: a) tenham surgido no decurso da produção da prova; b) que o tribunal os declare com interesse para a decisão da causa; c) que sobre tal matéria tenha incidido discussão;
24. Nos presentes autos, nem o primeiro, nem o terceiro dos referidos requisitos se encontra verificado e, como tal, em caso algum o facto de o tribunal a quo ter considerado que os mesmos seriam relevantes para a boa decisão da causa seria, por si só, suficiente para ter procedido à ampliação da base instrutória nos moldes em que o fez;
25. Os três novos quesitos aditados à douta base instrut6ria fazem referência a matéria que jamais esteve em discussão nos presentes autos;
26. Com efeito, dos articulados, em lugar nenhum se faz referência à existência dos contratos de prestação de serviços nºs 1/1 ou 14/1, ao facto de as vagas dos contratos n.º 9/92, 6/93, 2/94, 1/96 se terem fundido naqueles, ou que os mesmos foram sucessivamente renovados até 15 de Março de 2006;
27. Se é certo que a Ré se serve do conteúdo do doc. 2, junto pelo Autor na sua Petição Inicial, para fundamentar o seu pedido, não deixa de ser estranho que a Ré somente procure extrair do mapa da DSAL o que lhe parece mais favorável;
28. E mais grave ainda é o facto de a Ré nem sequer juntar aos presentes autos a totalidade de contratos de prestação de serviços que a mesma celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e que constam do referido doc. 2;
29. Ora, a junção aos autos de determinados contratos e a omissão de outros, deixa revelar a má-fé da Recorrente nos presentes autos e a sua contínua e reiterada falta de colaboração processual.
Nestes termos, e nos demais de Direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., pelas razões supra expostas, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o despacho sub judice revogado e substituído por outro que indefira o aditamento de novos factos à douta base instrutória, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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“Guardforce” apresentou resposta ao recurso, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
«I. Veio o Recorrente interpor recurso do despacho proferido em sede de audiência de discussão e julgamento que, no seguimento de requerimento apresentado pela ora Recorrida, deferiu o aditamento de três novos factos à base instrutória.
II. Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, em síntese, parecem ser quatro as ordens de razões que levam a Recorrente a discordar do despacho (i) falta de fundamento legal por violar o preceituado no artigo 41º do Código de Processo Trabalho, (ii) o requerimento oralmente apresentado pela ora Recorrida, com vista à ampliação da base instrutória, configura antes um articulado superveniente destinado a modificar ou extinguir os direitos do Autor, (iii) os factos aditados à base instrutória não são necessários nem pertinentes para a boa solução do caso e (iv) os três novos quesitos aditados à douta base instrutória fazem referência a matéria que jamais esteve em discussão nos presentes autos.
III O douto Tribunal a quo, por despacho de fls. 289, decidiu que: “Decorre do artigo 41º, nº1 do CPT que se no decurso da produção de prova surgirem factos que, embora não articulados, o Tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, ampliara, em conformidade, a base instrutória. Ora, os factos trazidos à discussão pela Ré através do requerimento e documentos juntos a fls. 243-264, tornam, salvo melhor opinião, relevante para a boa decisão desta causa (...) ”.
IV. Se é certo que, ao autor cabe o ónus de alegar os factos constitutivos do direito que pretende valer na acção, ou seja, os factos que integram a causa de pedir, que ao réu cabe o ónus de alegar os factos em que baseia a sua defesa, e que o juiz, ao decidir, só pode em princípio atender a estes factos, também é certo que esse princípio não está rigidamente instituído no processo laboral, atento o vertido no número 1 do artigo 41º do Código de Processo Trabalho.
V. Em sede de processo laboral os poderes de investigação do Juiz são mais amplos do que os estipulados em sede de processo civil, sendo que as regras contidas nos artigos 41º, nºs 1 e 2 e 42º nº 3 do Código de Processo do Trabalho, permitem ao juiz da causa ampliar a base instrutória se no decurso da produção de prova surgirem factos que, não obstante não alegados pelas partes, sejam considerados relevantes para a boa decisão da causa, e ainda condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diferente do dele.
VI. O Juiz deve ter sempre presente que as normas processuais cumprem uma função instrumental, que não devem sobrepor-se mas sim subordinar-se ao direito substantivo, e que essa subordinação lhe impõe que faça uso deste poder-dever, até porque não existe qualquer obstáculo à ampliação da base instrutória, pois tenha ou não existido reclamação contra tal peça processual, não se forma caso julgado formal que impeça a sua alteração.
VII. Conforme bem notou o douto Tribunal a quo tendo o Tribunal à sua disponibilidade factos relevantes, independentemente da resposta que aos mesmos venha a ser dada “o tribunal poderá apurar, sem descurar do ónus da prova, o efectivo conteúdo da relação laboral que foi estabelecida para este trabalhador não residente...” e é disso que se ocupam os presentes autos.
VIII. No processo laboral, o Juiz só deve terminar o julgamento quando estiver esclarecido da verdade dos factos que se afigurem necessários à solução do litígio, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, ou quando se mostrarem esgotadas todas as diligências ao seu alcance na procura dessa verdade, designadamente, exames periciais, inspecções judiciais, depoimentos de peritos e de técnicos que se mostrem necessários.
IX. A verdade material foi proclamada como um dos valores fundamentais a prosseguir pelo processo laboral, concedendo-se por isso ao julgador amplos poderes de indagação oficiosa da verdade, quer recorrendo a meios de prova mesmo que não tenham sido requeridos, quer através da possibilidade de alargamento da base instrutória, mesmo a factos não alegados, desde que se mostrem relevantes para a decisão da causa e sobre eles tenha sido exercido o direito de contraditório, conforme resulta do artigo 41.º nº 1 do CPT.
X. Foi em cumprimento deste princípio e sempre sob a égide da descoberta da verdade material que o douto Tribunal a quo veio ampliar a base instrutória aditando três novos quesitos, não merecendo assim qualquer censura a douta decisão recorrida, e não se compreende, porque o Recorrente se opõe tão veementemente à ampliação da base instrutória e à consequente descoberta da verdade.
XI. Os factos cujo aditamento se requereu, e que mereceu provimento parcial do douto Tribunal a quo, decorrem dos elementos probatórios juntos aos autos pelas partes, nomeadamente o documento número 2 junto pelo Autor com a sua petição inicial, bem assim dos documentos juntos pela Ré através do requerimento datado de 07/09/2011 (após a designação da data para o julgamento), os quais, aliás o próprio Recorrente havia requerido que fossem juntos aos autos pela Recorrida, documentos esses que não foram impugnados pelas partes e sobre os quais as mesmas tiveram possibilidade de se pronunciar.
XII. O Recorrente formulou um pedido com expressão numérica e monetária e que se encontra impugnado, sendo que a prova desse pedido (e desses valores) terá que ter em consideração elementos de prova dos quais se atinja o mesmo, pelo que, se se vier, o que não se concede, a considerar que a Recorrida está obrigada a pagar ao Autor valores resultantes do contrato de prestação de serviços celebrado entra a Ré e a Agência de Emprego e ao abrigo do qual foi inicialmente contratado, a única prova existente apenas poderá titular valores no período da sua vigência, ou seja, um ano.
XIII. Como se apurou que o Autor foi contratado ao abrigo do contrato de prestação de serviços 45/94, contrato esse que “vigorará pelo período de 1 ano renovável por igual período mediante acordo das partes interessadas e precedendo acordo do Governo do Território, a obter até 30 dias antes do seu termo;” (cfr. Cláusula 11.1 do documento n.º 2 junto pela Ré na contestação.),
XIV. Não se encontrando provado e nem alegado que o contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual o Autor foi inicialmente contratado se renovou, não pode o Tribunal, em violação da Lei e da experiência, extrapolar o prazo de duração desse contrato e condenar a Ré com base na simples alegação, necessitando ao invés de título do qual resulte essa pretensa obrigação.
XV. Sendo os factos (e a sua correlação com os documentos) insuficientes para suportar o pedido, impunha-se, não havendo oposição da Recorrida, que requereu, ampliar a base instrutória de forma a permitir a descoberta dessa verdade obscura de saber que contratos de prestação de serviços afinal vigoraram durante o período que o Recorrente esteve ao serviço da Recorrida e que valores os mesmos reflectem.
XVI. O Autor, ora Recorrente, pretende impor aos Tribunais que façam de conta que o primeiro contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrida e a Agência de Emprego e ao abrigo do qual foi inicialmente contratado vigorou ad eternum, em manifesta contradição com o seu texto.
XVII. Andou bem, por isso, o Tribunal a quo ao aditar os novos quesitos à base instrutória, tentando, se possível, descobrir, com base nos elementos disponíveis e os demais que forem necessários, se existem, para além do primeiro contrato que teve a duração de um ano, algum outro que titule uma qualquer diferença remuneratória e que mereça (ou não, como pugna a Recorrida) tutela jurisdicional em benefício do Autor.
XVIII. Nos termos do artigo 41.º, n.º 1 do CPT, a ampliação da base instrutória não necessita de ser decorrente do surgimento de factos supervenientes, mas sim de factos relevantes e até ao momento permanece por explicar: se os diversos contratos de prestação de serviço não são relevantes, porque razão o Recorrente pediu a junção dos mesmos em sede de articulados.
XIX. O resultado da pretensão do Autor é abstrusamente contra o interesse do mesmo, tanto que a proceder a tese do Autor, deverá ser proferida decisão que determine o uso do contrato que o Autor invoca mas apenas no seu período de vigência, ou seja, 1 ano, devendo a Recorrida ser absolvida no período excedente.
XX. Aliás, quanto à relevância dos novos factos aditados, o Recorrente, certamente por falta de argumentos, preferiu invocar aqui questões de necessidade e pertinência que se colocam quanto à junção “tardia” de documentos e não quanto à relevância de factos a aditar à base instrutória!
XXI. O requerimento de ampliação da base instrutória apresentada pela Recorrida não se trata de um articulado superveniente destinado a modificar ou extinguir o direito do Autor e nem os factos aditados à base instrutória se reputam desnecessários ou impertinentes, antes se revelam manifestamente relevantes à boa resolução do caso, tendo em conta a posição assumida pelas partes em sede de articulados, e o teor do facto dado como assente na alínea D) dos factos assentes, e, resultando os factos ora aditados de documentos juntos aos autos, tiveram as partes possibilidade de sobre os mesmos se pronunciarem.
XXII. A determinação de novas diligência de prova na sequência da ampliação da base instrutória encontra suporte legal no n.º 2 do artigo n.º 41.º do CPT, pelo que quanto a este ponto também não merece reparo a decisão do douto Tribunal a quo».
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Foi na oportunidade proferida sentença, que condenou a ré a pagar ao autor a quantia total de 137.178,31 e juros legais.
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Inconformada, a ré da acção interpôs recurso jurisdicional, concluindo as suas alegações da seguinte maneira:
«l. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, em 30 de Novembro de 2011, e pela qual foi a ora Recorrente condenada a pagar ao Autor, ora Recorrido, os seguintes montantes:
• MOP$53,320.00 a título de diferenças salariais;
• MOP$2,993.31 a título de diferença retributiva por trabalho extraordinário;
• MOP$45,225.00 a título de subsídio de alimentação;
• MOP$35,640.00 a título de subsídio de efectividade;
• juros moratórias sobre cada uma das aludidas quantias, à taxa legal a contar do trânsito em julgado desta sentença.
II. O Autor, ora Recorrido, foi contratado pela Ré, ora Recorrente, em 29 Fevereiro de 2000 ao abrigo do Contrato de Prestação de Serviços 29/94 celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., contrato de prestação de serviços que tinha um prazo de vigência de 1 ano, renovável por igual período mediante o acordo das partes e precedente acordo do Governo.
III. Dos elementos de prova constantes dos presentes autos, e também dos factos alegados pelas partes, apenas se pode apurar que o contrato de prestação de serviços 29/94 foi sujeito a renovação em 23 de Junho de 1999, pelo prazo de um ano - cfr. doc. 2 da contestação - sendo que, decorrido o período pelo qual foi assim renovado, nenhuma outra matéria foi apurada quanto a outras renovações, nomeadamente, até Maio de 2008.
IV. Sem prova de tal facto, o douto tribunal a quo apenas poderia ter tido em conta a duração prevista em renovação, não a extrapolando e dando também como provado que esse contrato, com as condições salariais nele previstas, justificou a subsistência do vinco laboral que ligou a Recorrente ao Recorrido por mais de 8 anos.
V. A decisão é em si mesma contraditória porquanto parte de um contrato de prestação de serviços com uma duração limitada de um ano, para fundamentar a preterição do pagamento de quantias que com base nesse mesmo o Autor teria direito durante os 8 anos que durou a relação laboral.
VI. O facto constante do ponto 4) da fundamentação fáctica da decisão reporta-se a matéria que intrinsecamente é incompatível com o período de trabalho a que a sentença se reporta, pelo que a sentença padece de nulidade, nos termos do 571 nº 1 al. c) do C.P.C., por se verificar contradição entre a fundamentação fáctica e a decisão.
VII. O Despacho n.º 12/GM/88, de 01 de Fevereiro não constitui a fonte das normas especiais que regem as relações laborais que se estabeleçam entre empregadores de Macau e trabalhadores não residentes, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
VIII. As normas específicas constantes do Despacho n.212/GM/88 regulam apenas o procedimento administrativo para admissão em Macau de trabalhadores não residentes e não determinam um regime jurídico regulador das relações laborais que se estabeleçam entre o empregador e um trabalhador não residente, porquanto, tratando-se de um Despacho, nos termos do então vigente Estatuto Orgânico de Macau, o mesmo foi proferido pelo Governador no âmbito das suas funções executivas, (cfr. artigo 16.º, n.º 2 do Estatuto Orgânico de Macau).
IX. O Despacho do Secretário para a Economia e Finanças mais não é do que um acto administrativo proferido no âmbito do procedimento previsto no Despacho 12/GM/88, de 01 de Fevereiro.
X. O Despacho 12/GM/88 estabelece um processo e um conjunto de condições administrativas para efeitos de obtenção de autorização de contratação de mão-de-obra estrangeira que culmina na prolação de um Despacho de Autorização, mas deste processo e condições administrativas não resulta a obrigatoriedade para a Requerente de contratar em determinadas condições, uma vez que o diploma em apreço carece da imperatividade subjacente ao direito do trabalho.
XI. E, ainda que resultasse de tais condições administrativas aquela obrigatoriedade, por estarmos perante um puro processo administrativo, também as consequências da sua violação se poderiam apenas reflectir no campo administrativo, não tendo qualquer reflexo na relação contratual de trabalho celebrada entre a Recorrente e o Recorrido.
XII. Face à natureza jurídica do Despacho 12/GM/88 não poderá o mesmo, ou qualquer acto administrativo ao abrigo do mesmo praticado, coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
XIII. Nem as normas do Despacho n.º 12/88/GM, que o douto Tribunal a quo considerou tratarem-se das normas especiais a que alude a alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 24/89/M, de 03 de Abril, e nem as condições constantes do contrato de prestação de serviços celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda. e sobre o qual recai o Despacho de Aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, são passíveis de regular o conteúdo das relações laborais que se venham a estabelecer na sequência da contratação autorizada.
XIV. A relação laboral que se estabeleceu entre a ora Recorrente e o Recorrido rege-se somente pelo princípio da liberdade contratual, princípio esse que foi devidamente observado aquando da celebração do contrato de trabalho entre a Recorrente e o Recorrido, o qual foi integralmente cumprido pela ora Recorrente.
XV. A Sentença ora em recurso padece do vício de erro na aplicação do direito, tendo incorrectamente interpretado e aplicado as disposições constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 01 de Fevereiro, sendo que deveria ter considerado que tal diploma legal, ou qualquer acto ao abrigo do mesmo praticado, não constitui o regime especial regulador da relação laboral que se estabeleceu entre a Recorrente e o Recorrido (entidade empregadora de Macau e trabalhador não residente).
XVI. Não obstante o devido respeito pelo entendimento que vem sendo sufragado por este douto Tribunal ad quem, e que é também invocado na sentença em recurso, a ora Recorrente não pode deixar de discordar com a classificação como contrato a favor de terceiro do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
XVII. Na verdade, conforme consta do também douto Acórdão 1026/2009 de 15 de Dezembro de 2009 proferido por este douto Tribunal de Segunda Instância: “ [...] Voltando ao caso dos autos a Ré/Recorrente é parte do referido contrato de prestação de serviços, mas o Autor (...) desta acção não é parte do mesmo, como talo contrato não o vincula, por força do disposto no artigo 400º/2 do CCM (correspondente ao artigo 406º/2 do CC de 1996), que prescreve: “2. Em relação a terceiros o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.” (...) tal contrato não é convenção colectiva de trabalho, muito menos acordo tipo que vincula os trabalhadores (...) Aliás, o contrato de trabalho individual assinado pelo Autor, em lado nenhum remete para o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e o terceiro [...] ”
XVIII. À celebração do referido contrato de prestação de serviços não está, nem nunca esteve, subjacente a criação de direitos/deveres na esfera jurídica de outrem que não os seus originais outorgantes, sendo que a aprovação administrativa a que foi sujeito não lhe conferiu tal virtualidade.
XIX. Por força do contrato a favor de terceiro, e segundo a definição legal e doutrinal, o benefício do terceiro nasce directamente do contrato e não de qualquer acto posterior, ao que acresce que a obrigação do promitente é a de efectuar uma prestação e não a de celebrar um outro contrato.
XX. Através do contrato de prestação de serviços celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, a ora Recorrente não se obrigou a prestar ou atribuir a um terceiro uma vantagem patrimonial imediata, mas antes a celebrar um outro contrato, concretamente, de trabalho, ao abrigo do qual nasceriam na esfera jurídica do terceiro não só direitos, mas também obrigações, como seja a prestação de trabalho e todas as demais inerentes à relação laboral.
XXI. Não resultam dos autos quaisquer elementos que permitissem concluir que os contraentes - ou seja a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau - agiram com a intenção de atribuir directamente ao Autor uma vantagem patrimonial, intenção essa que constitui um elemento essencial do contrato a favor de terceiro e que permite ao este mesmo terceiro exigir o cumprimento da promessa.
XXII. De contrário, sempre se estará perante uma figura próxima, mas distinta do contrato a favor de terceiro, como será o caso dos contratos a que a doutrina alemã denomina de autorizativos de prestação a terceiro, em que, apesar de a prestação se destinar ao terceiro beneficiário, este não adquire a titularidade dela, isto é, não assume a posição de credor e por conseguinte não pode exigir do obrigado a satisfação da prestação.
XXIII. Assim, o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau vincula apenas as partes contratantes, não podendo beneficiar directa ou indirectamente o Autor, e não tem interferência na validade e eficácia do contrato celebrado entre este e a Recorrente, nem no seu concreto conteúdo.
XXIV. Em todo o caso, e ainda que V. Exas. entendam que o contrato de prestação de serviços 45/94 ao abrigo do qual o Autor, ora Recorrido, foi inicialmente contratado pela Recorrente é fonte do direito reclamado pelo Autor, (quer por força do Despacho n.º 12/GM/88, de 01 de Fevereiro, ou por se tratar de um contrato a favor de terceiro), sempre se diga que da factualidade apurada em sede dos presentes autos e transcrita na decisão sob Recurso não é permitido concluir-se que o contrato de prestação de serviços 29/94, com um prazo de validade de 1 ano, ao abrigo do qual o Autor, Recorrido, foi contratado em 29 de Fevereiro de 2000, foi renovado sucessivamente por iguais períodos até ao ano de 2008.
XXV. A simples previsão da possibilidade de renovação, sujeita ao acordo das partes e à aprovação do Governo, não permite, salvo devido respeito por melhor opinião, ao douto Tribunal a quo presumir, sem base legal que lho permitisse, que o contrato de prestação de serviços 29/94, ou qualquer outro mencionado na decisão recorrida, foi sendo objecto de renovações sucessivas até Maio de 2008.
XXVI. A ora Recorrente não confessou que foi um e só um contrato de prestação de serviços, o mesmo que esteve na base da contratação inicial do Autor, que fundamentou a manutenção da relação laboral entre as partes desde Fevereiro de 2000 e 31 de Maio de 2008, e nem que tenha sido um dos contratos mencionados no ponto 3) da fundamentação de facto da sentença recorrida a fundamentar a manutenção de tal vinculo laboral.
XXVII. O Autor não alegou ter estado todos os anos que durou a relação laboral ao abrigo de um único contrato de prestação de serviços, limitando-se a alegar que foi contratado ao abrigo de um deles e procurando estender as cláusulas desse contrato a todo o período da relação laboral, não tendo produzido qualquer prova de que assim tenha sido, prova essa que lhe cabia, por invocar tal contrato como fonte do seu direito, e que não fez.
XXVIII. O teor da factualidade apurada e transcrita na decisão sob recurso é o espelho dessa falta de prova, sendo visível o esforço argumentativo avançado pelo douto Tribunal a quo para justificar a condenação da Ré, ora Recorrente, a pagar ao Autor diferenças salariais durante todo o período que durou a relação laboral uma vez que não se retira de nenhum ponto da matéria de facto apurada que o contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual o Autor foi inicialmente contratado tenha sido objecto renovações até 31 de Maio de 2008.
XXIX. Ao beneficiário de um contrato a favor de terceiro ou aceita ou não aceita o beneficio que lhe é concedido, não lhe sendo lícito extrapolar o período pelo qual lhe foram atribuídas as vantagens previstas nesse contrato e nem modificar os termos em que a mesma foi feita, caso não prove que a promessa foi renovada, em que termos foi renovada e por que período adicional o foi.
XXX. Assim, na falta de prova da renovação da promessa de atribuir ao Autor, por um período de 1 ano, as condições mencionadas no referido contrato de prestação de serviços, o direito do Autor, ora Recorrido, a ver-lhe atribuídos tais condições/benefícios apenas se contém dentro do período pelo qual foi realizada a promessa, ou seja, dentro do período da última renovação do contrato de prestação de serviços apurada nos autos, ou seja, de 23 de Junho de 1999 a 23 de Junho de 2000.
XXXI. Pelo que, ao ter extrapolado as condições da promessa de que o Autor era beneficiário, nomeadamente, extravasando largamente o período temporal pelo qual os benefícios prometidos o foram, o douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 437.º e 438.º, ambos do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deverá ser revogada a Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo e substituída por douto Acórdão que absolva a ora Recorrente do pedido, ou,
Caso V. Exas. assim não entendam, o que por mera cautela de patrocínio se concede, deve a Sentença em recurso ser revogada e substituída por douto Acórdão que condene a ora Recorrente a pagar ao Recorrido apenas o valor das diferenças salariais que se reportam ao período de vigência do contrato de prestação de serviços 29/94.
Termos em que farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!».
*
Respondeu ao recurso o autor, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. É estranho que a Recorrente venha, de novo, e em sede de recurso, procurar questionar acerca da validade ou do limite temporal dos contratos de prestação de serviços por si outorgados com vista à importação de mão-de-obra não residente e, in casu, com vista à contratação do Recorrido, visto que, em momento próprio, a Recorrente nada conseguiu demonstrar a este respeito e nada mais se apurou para além da realidade já dada como assente pelo Tribunal a quo aquando da selecção da matéria de facto;
2. Ademais, em momento nenhum a Recorrente questionou o facto de o contrato de prestação de serviços n.º 29/94 não ter sido reiterada e sucessivamente objecto de fiscalização e de aprovação por parte da entidade competente, a pedido da própria Recorrente, ou a seu mando, enquanto única entidade interessada na sua renovação;
3. Ou melhor, o que resulta da matéria provada é que o contrato de prestação de serviços n.º 29/94 foi sucessivamente apresentado pela Recorrente junto da entidade competente, maxime junto da DSTE, para efeitos de contratação e renovação de mão-de-obra não residente;
4. Por outro lado, sabido que a renovação do contrato de prestação de serviços teria de ser requerida mediante acordo das partes, in casu entre a própria Recorrente e a Sociedade de Apoio Lda., salta à vista que o ónus de prova quanto à existência ou não existência de renovações ao contrato de prestação de serviço supra referido caberia à Recorrente e nunca ao Recorrido;
5. Certo é que, em momento nenhum a Recorrente conseguiu demonstrar que as condições pelas quais o Autor/Recorrido havia sido contratado se haviam modificado ou mesmo extinto, ou que os contratos de prestação de serviços por si outorgados tinham sido substituídos por outros de igualou diferente conteúdo;
6. De onde, não tendo a Recorrente praticado o acto processual em momento próprio, precludido está o direito de o praticar neste momento, porquanto a omissão de impugnação dos factos alegados pelo Autor e a sua aceitação expressa pela Recorrente, conforme ocorreu nos presentes autos, obstam a que estas questões sirvam agora de fundamento em sede de recurso jurisdicional;
7. A não se entender assim, serão beliscados todos os mais elementares princípios que dão corpo ao nosso Processo Civil (Princípio do dispositivo, Princípio do contraditório, Princípio da cooperação e Princípio da preclusão).
Ao que acresce que,
8. Ao contrário do que avança a Recorrente, o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro é, efectivamente, um diploma com natureza e intencionalidade assumidamente normativa imperativa, definindo imperativamente um conjunto de requisitos tidos como mínimos e indispensáveis à mesma contratação (cfr., neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TSI, de 6 de Janeiro de 2010, (Proc. n.º 739/2009);
9. De onde, em matéria de conteúdos mínimos (quais sejam, entre outros - “designadamente” - os indicados na al. d) do n.º 9 do Despacho n.º 12), o empregador - in casu a Ré - estará sempre obrigado pela norma imperativa implícita que se infere da alínea 1. e) do n.º 9 conjugada com os nºs 1 e 3 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro;
10. Assim, a Recorrente tão-só poderia ter celebrado um contrato de trabalho com o Autor, desde que o fizesse ao abrigo do Despacho n.” 12/GM/88, e nas condições constantes do Despacho de autorização governativa que o procede, os quais, por seu turno, se deverão incorporar no clausulado mínimo do contrato de prestação de serviços celebrado com a Agência de Emprego (cfr., neste sentido, entre outros, o Ac. do TSI, de 2 de Junho de 2011, Proc. n.º 780/2010);
11. A “a via do simples despacho” como forma de aprovação do Despacho n.” 12/GM/88, de 1 de Fevereiro é justificada pelo próprio Governador no Preâmbulo do Diploma, afirmando que a mesma se justifica face à “extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento” e que “ (...) se introduz por via de simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha”;
Por outro lado,
12. Do conteúdo literal do contrato de Prestação de Serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda. resulta tratar-se de um contrato a favor de terceiros, maxime de um contrato celebrado a favor dos trabalhadores não residentes que seriam recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., e que posteriormente seriam cedidos à Ré, de entre os quais se inclui o Autor (cfr. a este respeito, entre outros, o Ac. do TSI, de 16/06/2011, Proc. n.º 779/2010 ou o Proc. n.º 69/2010);
13. Isto mesmo tem sido, aliás, concluído de forma unânime pelo douto Tribunal de Segunda Instância, para dezenas de casos similares ao presente, ao dispor-se que: “Tendo sido celebrado um contrato de prestação de serviços entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., em que se estipula, entre outros, o mínimo das condições remuneratórias a favor dos trabalhadores que venham a ser recrutados por essa sociedade e afectados ao serviço da Ré, estamos em face de um contrato a favor de terceiro, pois se trata de um contrato em que a Ré (empregadora do Autor e promitente da prestação) garante perante a sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. (promissória) o mínimo das condições remuneratórios a favor dos trabalhadores estranhos ao contrato (beneficiários). (Cfr. entre outros, o Ac. do TSI, de 23/06/2011, Processo n.º 69/2010);
14. De onde, tratando-se de um «contrato a favor de terceiro» e repercutindo-se o mesmo na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, mais do que líquido que o beneficiário da promessa (in casu, o Recorrido) adquire o(s) direito(s) - ou parte dele(s) - constantes do mesmo contrato independentemente de aceitação (art. 438.º, n.º 1 do CCivil de Macau) e, em consequência, poderá exigir o seu cumprimento directamente do obrigado (in casu, da Recorrente), tal qual concluiu o Tribunal a quo;
15. De onde se conclui que, ao contrário do alegado pela Recorrente, a douta Sentença posta em crise procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis e, bem assim, a uma correcta aplicação da Lei e do Direito, cuja fundamentação merece, aliás, ser louvada, pelo rigor, clareza e objectividade com que o douto Juiz do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Base da RAEM mostrou.
Nestes termos, e nos de mais de Direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., pelas razões supra expostas, devem as presentes Alegações de Resposta serem aceites e o Recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA!».
*
Cumpre decidir.
*
II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores. (A)
2) Desde o ano de 1993, a Ré tem sido sucessivamente autorizada o contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior». (B)
3) Desde 1992, a Ré celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os «contratos de prestação de serviços»: n.º 9/92, de 29/06/1992; nº 6/93, de 01/03/1993; nº 2/94, de 03/01/1994; nº 29/94, de 11/05/1994; nº 45/94, de 27/12/1994. (C)
4) O contrato de prestação de serviços com base no qual a Ré outorgou o contrato individual de trabalho com o Autor, foi o “Contrato de Prestação de Serviços n.º 29/94, ao abrigo do Despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 11 Dezembro de 1994, de admissão de novos trabalhadores vindos do exterior. (D)
5) Do contrato aludido em 4 resultava que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (E)
6) A Ré sempre apresentou junto da entidade competente, maxime junto da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), cópia dos «contratos de prestação de serviços» supra referidos, para efeitos de contratação de trabalhadores não residentes. (F)
7) Entre 29 de Fevereiro de 2000 e 31 de Maio de 2008, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”. (G)
8) Trabalhando sob as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré. (H)
9) Era a Ré quem fixava o local e horário de trabalho do Autor, de acordo com as suas exclusivas necessidades. (I)
10) Durante todo o período de tempo anteriormente referido, foi a Ré quem pagou o salário ao Autor. (J)
11) A Ré e o Autor acordaram nos termos constantes dos documentos juntos aos autos a fls. 43 a 60, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos. (K)
12) Entre 01 de Março de 2000 e Fevereiro de 2005, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (L)
13) Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,100.00 mensais. (M)
14) Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,288.00 mensais. (N)
15) Entre 1 de Março de 2000 e 30 de Junho de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$9.30 por hora. (O)
16) Entre 1 de Julho de 2002 e 31 de Dezembro de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$10.00 por hora. (P)
17) Entre 1 de Janeiro de 2003 e 28 de Fevereiro de 2005 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.00 por hora. (Q)
18) Entre 1 de Março de 2005 e 28 de Fevereiro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.30 por hora. (R)
19) Entre 1 de Março de 2006 e 31 de Dezembro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.50 por hora. (W)
20) O Autor só teve conhecimento do efectivo e concreto conteúdo de um «contrato de prestação de serviços» assinado entre a Ré e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, já depois de cessada a relação de trabalho com a Ré, mediante informação por escrito prestada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), a pedido do Autor em Julho de 2008. (1.º)
21) Entre 1 de Março de 2000 e 30 de Junho de 2002 o Autor prestou 1111,5 horas de trabalho extraordinário. (2.º)
22) Entre 1 de Julho de 2002 e 31 de Dezembro de 2002 o Autor prestou 326.5 horas de trabalho extraordinário. (3.º)
23) Entre 1 de Janeiro de 2003 e 28 de Fevereiro de 2005 o Autor prestou 1671 horas de trabalho extraordinário. (4.º)
24) Entre 1 de Março de 2005 e 28 de Fevereiro de 2006 o Autor prestou 273,5 horas de trabalho extraordinário. (5.º)
25) Entre 1 de Março de 2006 e 31 de Dezembro de 2006 o Autor prestou 609 horas de trabalho extraordinário. (6.º)
26) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (7.º)
27) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca o Autor - sem conhecimento e autorização prévia Ré - deu qualquer falta ao trabalho. (8.º)
28) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (9.º)
***
III- O Direito
1 - Do recurso interlocutório
Da decisão proferida em audiência, que mandou aditar à base instrutória três dos novos factos sob requerimento da ré, recorreu o autor.
Pretendia a ré, e assim foi decidido, que se quesitasse:
- Ao abrigo de que contratos de prestação de serviços se manteve o Autor ao serviço da Ré entre 12 de Dezembro de 1995 e 31 de Maio de 2008;
- Se as vagas dos contratos nºs 9/92, 6/93, 2/94, 29/94, 45/94, 40/94 e 1/96 fundiram-se nos contratos nºs 1/1 e 14/1, passando todos os TNR ao serviço para Ré a estar abrangidos nestes contratos;
- Se os contratos nºs 1/1, 14/1, 12/4, 36/5, 9/5 e 35/5 foram sucessivamente renovados até 15 de Março de 2006 nas mesmas condições inicialmente estabelecidas.
Ora, a verdade é que a decisão de que foi interposto este recurso, uma vez que só subiu a final, acabou por não ter impacto negativo para a esfera do recorrente, ao contrário do que ele temeria, razão que, ao que supomos, terá estado na base da impugnação jurisdicional deduzida. Com efeito, a matéria de facto daqueles artigos aditados à base instrutória mereceu resposta negativa, ficando desse modo definitivamente afastado o espectro de uma decisão final desfavorável aos interesses do autor.
Cremos, pois, que, considerando o desfecho da prova, o recurso interlocutório ficou prejudicado, o que é motivo, portanto, para não o apreciarmos.
*
2 – Recurso final
2.1 – Da nulidade da sentença
Recorre da sentença a ré da acção, “Guardforce”, em primeiro lugar por considerar que a sentença não podia partir do princípio de que o autor da acção se manteve ao seu serviço ao abrigo do contrato de prestação de serviços nº 29/94 desde o princípio até Maio de 2008, por não haver suporte factual que o permitisse, nomeadamente por faltar ao acervo de factos provados algum que revelasse a sucessiva renovação daquele instrumento negocial.
E assim sendo, considera que a decisão recorrida acaba por ser contraditória por partir de um contrato de prestação de serviços com uma duração limitada de um ano para fundamentar a preterição de pagamento de quantias a que o autor teria direito durante os 8 anos que durou a relação laboral. Estaria, deste modo, configurada a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. c), do CPC.
Mas, em nossa opinião, não tem razão. Antes de mais nada, importa salientar que, como é consabido, a oposição invocada (nº1, al. c), do art. 571º do CPC) implica que os fundamentos invocados pelo julgador devessem ter conduzido logicamente a um resultado decisor oposto daquele que foi alcançado (Acs. STJ 1/06/1993, Proc. nº 003146; STJ 31/03/1998, Proc. nº 98A265). Ou seja, ele só se dá por verificado quando se detecta um vício de raciocínio que deveria ter conduzido a uma decisão diversa daquela para a qual o raciocínio conduziu efectivamente o seu autor (TSI, de 16/02/2006, Proc. nº 156/2005).
Ora, ao contrário do que pensa a recorrente, bastava ao autor a prova de que o contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual foi contratado foi o nº 29/94. E se tal contrato previa a sua renovação, ao abrigo da qual os contratos de trabalho entre A. e R. se desenvolveriam, parece evidente que o ónus de prova do autor se cumpriu. Quer dizer, bastará a demonstração daquela factualidade base para se aceitar que a longa duração desta relação laboral se deveu a esse contrato e suas sucessivas renovações.
Aliás, a ré da acção, aqui recorrente, ainda ensaiou a prova de factos contrários, na mira de demonstrar que as vagas dos contratos referentes no quesito 11º da B.I. se fundiram nos contratos nºs 1/1 e 14/1, pretendendo extrair destes a cobertura para a diminuição de direitos reclamados pelo autor. Todavia, não teve a sorte pelo seu lado, na medida em que o quesito em causa não foi provado. Mas, nós aqui somos até forçados a esclarecer que, ainda que tivesse merecido resposta positiva, nem por isso a solução deveria ser diferente. Na verdade, o que de substantivo se mostrava quesitado era se a fusão ali representada tinha por objecto as vagas dos contratos ali identificados. Ora, uma coisa é fundir as vagas não preenchidas pelas quotas previstas naqueles contratos de prestação de serviços, outra é a manutenção e sucessiva renovação de cada um deles em relação às contratações celebradas sob a sua égide. Ora, o autor foi contratado à sombra do contrato 29/94, pelo que, quanto a si, não faz qualquer sentido falar de vaga e, portanto, nunca ele poderia estar abrangido pelos contratos posteriores nºs 1/1 e14/1.
E assim é que, ainda que não se aplauda o modelo de formulação do quesito 10º, uma vez que ele não cumpre escrupulosamente o ónus de prova, nem onera a quem dele está encarregado, a verdade é que a resposta negativa que lhe foi dada, bem como aos quesitos 11º e 12º, não permitem outra leitura senão aquela que acima deixamos exarada.
E posto que assim é, não podemos acompanhar a solução de nulidade invocada pela recorrente.
*
2.2 – Do mérito da sentença
Também se insurge a recorrente contra a natureza daquele contrato de prestação de serviços.
Analisemos esta questão, socorrendo-nos da solução que este mesmo TSI já tomou em várias ocasiões em termos uniformes, de que a título de exemplo transcreveremos o trecho seguinte:
«“1ª Questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre Guardforce e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (Guardforce) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, lda).
Aquele despacho disse ainda que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a)-manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b)- garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante Guardforce) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (Guardforce e Sociedade de Apoio) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e eventuais abusos. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E por isso mesmo é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre Guardforce e Sociedade de Apoio?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre Guardforce e Sociedade de Apoio, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre Guardforce e Sociedade de Apoio é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
(…)
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre Guardforce e Sociedade de Apoio, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que Guardforce se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que vale por dizer que, contra a tese da sentença sob censura, o contrato a favor de terceiro será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes”» (Ac. TSI, de 2/06/2011, Proc. nº 780/2010)9.
Eis porque, continuando nós a pensar não haver razões para divergir daquela solução, consequentemente aqui concluimos pelo naufrágio daquela que a recorrente defendeu no presente recurso.
*
Assim sendo, e porque não veio sindicada nenhuma outra matéria tratada na sentença, nomeadamente ligada aos montantes indemnizatórios nela atribuídos ao autor, o recurso fica votado ao insucesso, o que significa que não nos resta senão manter o julgado.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela “Guarforce” e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida, julgando ainda prejudicado o conhecimento do recurso interlocutório apresentado pelo autor da acção.
Custas pela recorrente.
TSI, 07 / 06 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 410;
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pag. 13.
4 Ob. cit, pag. 417
5 Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 493. Também, E. Santos Junior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pag. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit, pag. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pag. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pag. 336 e 338.
9 Neste sentido, ainda, Ac. TSI de 2/02/2012, Proc. nº 779/2011.
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