Processo n.º 284/2012
(Recurso Laboral)
Data: 26/Julho/2012
RECORRENTE :
Recurso Final
- S.T.D.M.
Recurso Interlocutório
- S.T.D.M.
Recurso : Despacho Saneador que não admitiu a Reconvenção
- S.T.D.M.
RECORRIDA :
- A
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, mais bem identificada nos autos, patrocinada por advogada, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.”, Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, com sede em Macau, Região Administrativa Especial de Macau, no Hotel Lisboa, 9º andar, acção de processo comum de trabalho, pedindo a condenação da Ré, a título de créditos laborais a pagar- lhe. a quantia de MOP$10.557,00 acrescida dos respectivos juros desde a citação.
Julgada a causa, foi decidido condenar a Ré a pagar ao A. o montante de MOP$654.611,66, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar do trânsito da sentença.
Proferido despacho saneador por força do qual foi julgada improcedente a excepção peremptória de pagamento e remissão e não foi admitida a reconvenção, veio a STDM recorrer, propugnando pela relevância da transacção realizada e pela admissibilidade da reconvenção e consequente procedência da excepção.
A estes recursos não respondeu a A., pugnando pela manutenção da decisão proferida.
Da decisão final vem recorrer a STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., R. alegando, em rotunda síntese:
Não há fundamento legal a condenação da ora Recorrente por falta de prova de um dos elementos essenciais à prova do direito de indemnização da A., ora Recorrida, i.e., a ilicitude do comportamento da R., ora Recorrente.
Deve considerar-se que o salário da trabalhadora era um salário diário.
A aceitação do trabalhador de que aos dias de descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios não corresponde qualquer remuneração teria, forçosamente, de ser considerada como válida.
Ao trabalhar voluntariamente em dias de descanso (sejam eles anual, semanal ou resultantes de feriados), a Recorrida optou por ganhar mais, tendo direito à correspondente retribuição em singelo.
O trabalho prestado pelo Recorrida em dias de descanso foi sempre remunerado em singelo.
As gorjetas dos trabalhadores de casinos não são parte integrante do conceito de salário, e bem assim as gorjetas auferidas pelos trabalhadores da STDM.
Pronunciando-se ainda sobre as fórmulas que considera deverem ser aplicáveis, não deixa de reafirmar a sua posição manifestada no recurso interlocutório, face à declaração assinada pelo trabalhador em que se considera compensado de quaisquer quantias em dívida.
Não foram oferecidas contra alegações.
Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
Da Matéria de Facto Assente:
- A R. tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, e a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação (alínea A) dos factos assentes).
- A R. foi a única concessionária de jogos de fortuna ou azar em Macau, até 31 de Março de 2002 (alínea B) dos factos assentes).
- A A. manteve uma a relação com a R., sob direcção efectiva, fiscalização e retribuição desta desde 1 de Junho de 1986 a qual cessou em 21 de Julho de 2002 (alínea C) dos factos assentes).
- O horário de trabalho da A. foi sempre fixado pela R., por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de 8 horas, alternadas de 4 em 4 horas, existindo apenas o período de descanso de 8 horas diárias durante dois dias e um período de 16 horas de descanso no terceiro dia (alínea D) dos factos assentes).
- A parte variável era constituída por gorjetas dadas pelos clientes da R. (alínea E) dos factos assentes).
- As gorjetas eram distribuídas pela R. (alínea F) dos factos assentes).
- Todos os dias de descanso gozados pelos ex-trabalhadores da R. não eram remunerados (alínea G) dos factos assentes).
- O A. recebeu da R. uma quantia de MOP$15.208,78 e outra de MOP$30,417,56, a título de compensação em relação aos descansos semanais, descansos anuais, aos feriados obrigatório e à licença de maternidade (alínea H) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Dessa relação, a A. recebia um rendimento composto por uma parte fixa e outra parte variável (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- A parte fixa era inicialmente de MOP$4,10 por dia, e de HKD$10,00 por dia, a partir de 1 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995 e, de HKD$15,00 por dia, a partir de 1 de Maio de 1995 até à cessação da relação (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- As gorjetas eram cobradas por ordens da R. e por si reunidas e contabilizadas pela R. (resposta ao quesito da 3º da base instrutória),
- As gorjetas eram distribuídas pela R. de acordo com regras e critérios desconhecidos pelos trabalhadores da R. e estabelecidas por esta (resposta ao quesito da 4° da base instrutória).
- O rendimento fixo somado do rendimento variável nos 1989 a 2002, era de (resposta ao quesito da 5° da base instrutória);
MOP$88.699,00 em 1989;
MOP$104.505,00 em 1990;
MOP$120.305,00 em 1991;
MOP$129.749,00 em 1992;
MOP$134.050,00 em 1993;
MOP$161.017,00 em 1994;
MOP$178.421,00 em 1995;
MOP$182.103,00 em 1996;
MOP$206.091,00 em 1997;
MOP$199.155,00 em 1998;
MOP$164.329,00 em 1999;
MOP$151.019,00 em 2000;
MOP$155.578,00 em 2001;
MOP$147.894,00 em 2002.
- Desde o início dessa relação e até ao seu fim, nunca a Autora gozou um dia de descanso em cada período de 7 dias, sem perda do respectivo rendimento (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Nunca a Autora gozou 6 dias de descanso anual, sem perda do respectivo rendimento (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- Desde o início da relação até 3 de Abril de 1989, nunca a Autora gozou descanso nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, durante três dias no Ano Novo Chinês, e nos dias de Chang Chao, Chang Yeong, tendo a Autora trabalhando nesses dias (resposta ao quesito da 8º da base instrutória) .
- Desde 3 de Abril de 1989 até 4 de Maio de 2000, nunca a Autora gozou descanso nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo Chinês, no dia 10 de Junho, e nos dias de Chang Chao, Chang Yeong e Cheng Meng, tendo a Autora trabalhando nesses dias (resposta ao quesito da 9º da base instrutôria).
- Desde 4 de Maio de 2000 até à data da cessação da relação, nunca a Autora descansou nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo chinês, no dia 20 de Dezembro, no dia seguinte ao dia Chang Chao, nos dias Chang Yeong e Cheng Meng, tendo a Autora trabalhando nesses dias (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- Sem que a R. tivesse proporcionada qualquer acréscimo no rendimento da A. (resposta ao quesito da 11° da base instrutória).
- Nem compensado a A. com outro dia de descanso (resposta ao quesito da 12º da base instrutória),
- A Autora aceitou que o trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e nos feriados obrigatórios fosse pago sem qualquer compensação adicional (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- Aceitou que, caso pretendesse gozar de descanso, tais dias não seriam retribuídos (resposta ao quesito da 15º da base instrutória),
- A exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos obriga a funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).”
Resulta ainda dos autos, com pertinência, a factualidade seguinte:
“No dia 16 de Julho de 2003, a Autora subscreveu a declaração cujo teor consta de fls. 69, com o seguinte teor : “Eu, (.........) titular do BIR n.º5/051449/6 recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP30.417,56 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral”.
III - FUNDAMENTOS
A - Recurso relativo à decisão que não relevou a declaração do trabalhador relativa aos seus créditos laborais
1. O objecto do presente recurso, na parte respeitante à validade e consequências da declaração assinada pela trabalhadora, nos termos da qual declarou ter recebido já as compensações devidas, passa pela análise das seguintes questões:
- Da observância da forma legal
- Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 87/89/M de 3/Abril
- Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
- Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
Estamos cientes de que, a proceder este recurso, tal prejudicará necessariamente o recurso final, não havendo mais lugar a considerar que permaneçam quaisquer quantias devidas ao trabalhador pela compensação de descansos ou feriados não gozados.
2. A Mma juiz considerou que a dita declaração consubstanciada no documento de fls 375 era nula por falta de forma, face ao disposto no artigo 1174º do CC, porquanto do que se tratou foi de uma verdadeira transacção - e não já de uma remissão - que pôs termo ao litígio que opunha a trabalhadora à entidade patronal.
Importa então ver da natureza dessa declaração, de forma a indagar se se observam ou não requisitos devidos quanto à forma da mesma.
Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação do artigo 854º do CC, tomada como remissão dos créditos a declaração acima referida, segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
E por considerar que a situação não integra qualquer lacuna, já que regulada pelos artigos 1º e 33º, entre outros, do RJRL (DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, permite a disponibilidade dos créditos do trabalhador.
3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que o trabalhador assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e, tal como se assinala na douta sentença recorrida, face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali retira é que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
4. Mas vem agora o trabalhador demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzido em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
8. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
Pode-se dizer, num certo sentido que, hoje, na remissão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
10. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado7., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento à Autor, do que ela solicita. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à Autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, não sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.
14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
Não se deixará ainda de referir que não só não se vê razão para considerar estarmos perante uma transacção como pretende a Mma Juíza, enquadrável no art. 1174º do CC, como ainda, a considerar esse entendimento, não se vê razão para que o mesmo houvesse de ser celebrado por escritura pública já que a produção de efeitos dali decorrente não obriga a que se exija escritura pública, contentando-se essa declaração negocial com a forma escrita, tal como ocorreu e sendo que nem sequer o contrato principal ( o contrato de trabalho) tem de revestir tal forma.
Assim, concluindo, relevando-se o documento de fls69, como se releva, procedente deve ser julgada a excepção peremptória invocada, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte do A.
Prejudicado fica o conhecimento do recurso final.
B- do recurso relativo à não admissão da reconvenção
A Ré deduziu pedido reconvencional, peticionando a devolução do montante pecuniário auferido a título de gratificações ou de luvas ou de gorjetas e fosse considerado válido o contrato celebrado segundo o qual a A. renunciou às quantias pecuniárias auferidas em dia de descanso anual e nos dias feriados.
A Mma Juiz indeferiu tal pedido, basicamente, por considerar que não se verificavam os requisitos do pedido reconvencional previstos no artigo 17º do CPT (Código de Processo de Trabalho).
O pedido da acção e da reconvenção não assentaria na mesma causa de pedir, não se verificaria uma situação de compensação, não existiria uma relação de acessoriedade, complementaridade ou dependência.
Esta questão que ora vem colocada foi já apreciada por este Tribunal de Segunda instância que se pronunciou por diversas vezes sobre a inadmissibilidade do pedido reconvencional tal como deduzido pela Ré.9
E não nos afastamos ainda aqui do que tem sido decidido sobre esta matéria, sufragando a teses vertida na decisão ora recorrida.
Na verdade, estabelece o artigo 17º do CPT:
“1- O pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
2- O réu se propõe obter a compensação;
3- Entre o pedido do réu e a relação material subjacente à acção exista subsidiariedade, complementaridade ou dependência.”
Em resumo elencamos aqui as razões essenciais para não admitir a reconvenção na situação sub judice.
Muito embora exista uma relação entre os dois pedidos - que tem que ver com a relação laboral existente - para além disso não se observa qualquer outra conexão entre os dois pedidos. Na acção o trabalhador pede as compensações devidas pelo não gozo de determinados descansos; nem sequer se pode dizer que peticiona salários não pagos. Na reconvenção a entidade patronal pede a devolução das gorjetas entregues.
E sobre isto não se deixa de observar uma contradição insanável no pedido que formula, porquanto se pede as gorjetas porque elas não eram salário, então por que razão as entregou ao trabalhador? Se eram gorjetas com que legitimidade pede a devolução baseada em eventual enriquecimento em causa se se se tratava de dinheiro entregue pelos clientes? Será que irá devolver esse dinheiro aos clientes?
Se não, o enriquecimento que se configura reverte contra si.
Por outro lado, configurando-se essa entrega a que procedeu, como integrante do salário, - como adiante e reiteradamente se te sustentado nesta Instância – então, ainda aí, não faz sentido que se radique aí qualquer pedido reconvencional, por falta manifesta de fundamento para tal e por não autonomização de qualquer crédito da entidade patronal em relação ao pedido do trabalhador.
E quanto se vem dizendo tanto basta para concluir que não há lugar a qualquer compensação, já que não existe reciprocidade de créditos ou uma oposição de direitos entre as partes, configurando-se sem o mínimo fundamento a sua pretensão, não se podendo tutelar o recurso a um procedimento adjectivo que à partida se mostra destituído de sentido ou fundamento.
Essa falta manifesta de fundamento para esse pedido resulta do facto de não vir explicado o porquê da entrega indevida desses montantes, já que mesmo na perspectiva da Ré, sendo gorjetas puras, elas pertenciam aos trabalhadores, por outro lado; não se tratava de dinheiro que fosse da Ré razão porque não se compreende que seja esta a pedir o indevidamente entregue.
O pedido da Ré é um verdadeiro non sense que quase toca as raias da má-fé.
Como já se assinalou no processo acima citado “Ora, o que a ré pede não é o reconhecimento e a consequente satisfação de nenhum crédito contra a autora-credora, mas sim a devolução de importâncias que a esta havia entregue. Mas os argumentos utilizados pela ré para a pretensão que formula, que se limitam a entrar em rota de colisão com a pretensão da autora, só acentuam a vertente exceptiva de que tais importâncias não devem fazer parte do salário; e nesse sentido é questão que pode ser, e é conhecida, enquanto parte integrante do núcleo do mérito substantivo da acção.
O que acaba de dizer-se conflui para a apreciação do último dos requisitos (nº3). Vistas as coisas pelo prisma acabado de referir, não se pode dizer que seja acessória, complementar ou dependente a relação material subjacente relativamente ao pedido da causa principal. Se tomarmos como referência a doutrina que emerge do Ac. do STJ de 22/11/2006, Proc. nº 06S1822, logo se torna patente que o caso não se assemelha à hipótese da norma. Na verdade, nenhuma daquelas características (acessoriedade, complementaridade e dependência) se verifica nas hipóteses em que a um pedido do autor é contraposto um pedido conflituante do réu assente numa questão autónoma. No caso, o que moveu a autora foi o não gozo de dias de descanso contemplados na lei com uma especial remuneração (portanto, violação da legislação laboral), em cujo cálculo a impetrante inclui as gorjetas; o que move a ré reconvinte é a devolução de somas de dinheiro de gorjetas que havia, admitamos por facilidade de raciocínio e exposição, “dado” (a título de liberalidade) ou “pago” (a título de remuneração). Mas a verdade é que, fosse a que título fosse, essa questão - se até poderia relevar em sede de abuso de direito, na medida em que a reconvinte age agora por causa de atitude que livremente tomou (o que pode configurar venire contra factum proprium: Ac. STJ de 17/04/2008, Proc. nº 07S4747) – é estudada na perspectiva do mérito da acção. E quando os fundamentos em que os pedidos da acção e da reconvenção são completamente diferentes, como é o caso, a jurisprudência é unânime em não admitir a segunda (a título de exemplo Ac. do STJ de 19/01/2011, 557/06.2TTPRT.P1.S1).”
Donde se julgar improcedente este recurso interlocutório.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos:
- Acordam em conceder provimento ao recurso interposto do saneador, revogando em conformidade o decidido, julgando procedente a excepção relativa à renúncia dos créditos reclamados nos autos por parte do A., e, em consequência absolvem a Ré, STDM, dos pedidos formulados na acção pelo trabalhador A.
Custas deste recurso pela recorrida (sem custas o recurso final por dele se não conhecer).
- Mais negam provimento ao recurso interposto do saneador na parte em que não foi admitida a reconvenção, mantendo o decidido.
Custas deste recurso pela recorrente STDM.
Prejudicado se mostra o conhecimento do recuso da sentença proferida a final.
Macau, 26 de Julho de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pág. 225, Separata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
9 Cfr., por todos, Ac. 537/2010, de 28/7/2011
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
284/2012 1/26