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Processo n.º 332/2011 Data do acórdão: 2012-7-26 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– emissão de cheque sem provisão
– contradição insanável da fundamentação
– art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do Código de Processo Penal
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
1. É insanavelmente contraditório quando o tribunal a quo, por um lado, deu por provado que o ofendido se deslocou em 6 de Junho de 2010 à fracção então arrendada ao arguido (do crime de emissão de cheque sem provisão) para resolver a questão de falta de pagamento de renda e que, para o efeito, o arguido entregou ao ofendido o cheque dos autos, e, por outro lado, já deu, porém, por não provado que a partir de Janeiro de 2010, o arguido não efectuou o pagamento atempado da renda.
2. Como essa contradição na fundamentação fáctica da sentença absolutória penal ora recorrida pelo ofendido compromete a lógica do resultado do julgamento, então feito, da restante matéria fáctica descrita na acusação penal, e a lógica da decisão jurídica, também recorrida, de relegação da causa cível de indemnização então enxertada para o meio comum, é de reenviar o processo, em todo o seu objecto probando penal e cível, para novo julgamento, nos termos conjugados dos art.os 400.o, n.o 2, alínea b), e 418.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 332/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A (XXX)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 131 a 138 dos autos de Processo Comum Singular n.º CR2-10-0384-PCS do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por força da qual foi absolvido o arguido B da acusada prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.o 214.o, n.o 1, do Código Penal, em conjugação com o art.o 1240.o, n.os 1 e 3, do Código Comercial, e decidido remeter o pedido cível de indemnização enxertado para meio civil comum, veio o assistente e autor do pedido cível A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir, na sua motivação apresentada a fls. 141 a 146 dos presentes autos correspondentes, a condenação do arguido no crime acusado e no pagamento de MOP20.975,00 de indemnização cível a seu favor, com juros legais desde a data de instauração do processo, por entender ele que não tendo o Tribunal a quo considerado verificado o dolo do arguido na prática do crime, tal decisão judicial padece dos vícios de erro notório na apreciação da prova, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 159 a 162 dos autos no sentido de procedência do pedido do recorrente de condenação do arguido no crime acusado.
Subido o recurso para esta Segunda Instância, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fl. 174 a 174v dos autos, pugnando também pela condenação do arguido no crime imputado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência neste TSI, cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
A sentença ora recorrida tem o seguinte teor:
– <<[...]
I. RELATÓRIO
  Para julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, foi acusado o arguido:
B, do sexo masculino, [...].
***
  sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo nº1 do artº 214º do Código Penal conjugado com os nºs l e 3 do artº1240º do Código Comercial.
***
  O arguido não apresentou contestação escrita.
***
  Procedeu-se a julgamento, tendo a audiência decorrido com observância do legal formalismo.
***
  A instância mantém-se válida e regular, tal como decidido no despacho que recebeu a acusação, nada obstando ao conhecimento do mérito.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS

  Em Abril de 2009, o arguido tomou de arrendamento, através da Agência de Imobiliária “XX”, a fracção A do 30º andar do bloco 15, edf. “XXX”, do Complexo Habitacional “XX”, mediante o pagamento da renda mensal de HKD$10.000,00.

  O ofendido deslocou-se, em 06 de Junho de 2010, acompanhado por empregado da Agência de Imobiliária “XX”, à acima referida fracção, para resolver a questão de falta de pagamento de renda.

  Para o efeito, o arguido preencheu e assinou, bem como, entregou a A o cheque nºHE038820 da conta de cheque nº21-11-20-03XXXX (Guia de Televisão XXX, Limitada) no valor de HKD$10.000,00 a vencer no dia 11 de Setembro de 2010, sendo o sacador o Banco da China, para liquidação das rendas em dívida.

  Entretanto, após verificação do referido cheque, o ofendido verificou que o valor indicado neste apenas correspondia a um mês de renda, razão pela qual, pediu ao arguido a alteração do valor do cheque para HKD$20,000.00 e a data de vencimento para o dia 11 de Junho de 2010, tendo este procedido à alteração conforme o pedido e assinado em confirmação.

  Em 15 de Junho de 2010, A deslocou-se ao Banco da China, levando consigo o acima referido cheque, para efectuar o levantamento, mas foi recusado pelo mesmo, por “falta de provisão”, tendo por parte do Banco aposto no verso do acima referido cheque um carimbo para confirmação.
2. FACTOS NÃO PROVADOS

  Contudo, a partir de Janeiro de 2010, o arguido não efectuou o pagamento atempado da referida renda, bem como, faltou ao pagamento de rendas de vários meses.

  O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ao pôr em prática com dolo a acima referida conduta.

  O arguido tinha perfeito conhecimento, ao emitir o acima referido cheque, de que a sua conta bancária no acima referido banco não tinha fundo suficiente para assegurar o levantamento deste cheque.

  O arguido tinha perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
***
B. FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL.
  A convicção do Tribunal para a decisão que tomou sobre a matéria de facto assentou na análise e ponderação conjuntas e críticas da prova produzida, ponderada segundo as regras da lógica e da experiência. Nomeadamente, contribuíram para formar a convicção do Tribunal as declarações do arguido, do assistente e da testemunha e ainda da análise do teor dos documentos juntos aos autos. Com efeito, o arguido, nas declarações lidas em audiências, negou a prática dos factos, explicando que, efectivamente, por problemas bancários, não conseguiu, a tempo, prover a sua conta com o dinheiro suficiente para que o cheque por si emitido fosse pago (sendo aqui relevante ponderar o facto de o arguido reconhecer, nas declarações, ter sido ele próprio a rasurar o cheque, o que torna as suas declarações mais consistentes e credíveis) e que, logo após se ter dado conta dessa circunstância, ter ido contactar com a agente imobiliária - a 2.ª testemunha - e pago, em dinheiro, a quantia em causa, tendo então pedido pela devolução do cheque; e, precisamente nesta parte, quer o assistente, quer a testemunha identificada pelo arguido, confirmam que o arguido, após a falta de provisão do cheque, fez a entrega de dinheiro (o assistente, nessa parte, em declarações imprecisas afirmou mesmo “parece que ele pagou uma vez em dinheiro”), mas, não obstante terem afirmado que a quantia entregue não ter coincidido com a que constava do cheque, não prestaram declarações minimamente rigorosas que permitissem saber qual foi então a quantia entregue, sendo certo que não avançaram com qualquer pormenor que permitisse infirmar as declarações do arguido (aliás, a 2.ª testemunha, XXX, a dado passo, chegou mesmo a afirmar, em contradição com o que havia dito antes, que não conseguia dizer se o arguido pagou algum montante, o que traduz quer uma contradição com o que havia num primeiro momento afirmado, quer com o que o próprio assistente afirmou, ao admitir que o arguido fez uma entrega em dinheiro, após a emissão do cheque).
  Aliás, esta imprecisão nas declarações do assistente e da testemunha quanto aos montantes efectivamente devidos pelo arguido e os por ele depois pagos, quer relacionados estritamente com o cheque em discussão nos presentes autos, quer relacionados com as rendas em atraso, justificam que, infra, venhamos a decidir remeter as partes para os meios comuns, no que diz respeito à apreciação ao pedido cível, por tal ser a única forma de permitir uma sua rigorosa apreciação, sem condicionar os direitos de cada uma das partes.
  Os factos não provados resultaram, pois, da prova produzida em audiência e que levaram à existência de uma dúvida insanável, razoável e objectivável (como tentámos esclarecer) sobre a ocorrência ou não da factualidade imputada ao arguido, nomeadamente, quanto à circunstância de ele ter tido efectiva intenção de emitir o cheque identificado nos autos, sabendo que não tinha dinheiro suficiente para o pagar, atendendo, quer à justificação por si apresentada - dificuldades bancárias que não permitiram, em tempo, o provisionamento da conta -, quer ao seu comportamento posterior, que o levou a fazer uma entrega em dinheiro à 2.a testemunha.
  “O problema da dúvida no processo penal, existe exactamente pelas mesmas razões que tornaram necessária a fase probatória da lide, ou seja, porque o julgador não presenciou as situações que ocorreram no passado e por que as mesmas são irrecriáveis” (assim, Cristina Libano Monteiro, citada por Cruz Bucho in Notas sobre o princípio “in dubio pro reo” CEJ, 6 de Maio de 1998, pág. 4).
  E a dúvida em processo penal só é relevante por vigorar no sistema processual penal de Macau o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 114.º do Código de Processo Penal (e já não o princípio da prova legal, que tem no legislador a omnipotência de fornecer ao juiz todos o critérios de valoração da prova, macanizando-o), razão pela qual a absolvição por falta de provas, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do julgador, será resultado da incidência do princípio in dubio pro reo.
  “A justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente”. Pelo que “a solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco da absolvição do culpado e nunca o de condenação de um inocente,” - Cavaleiro Ferreira, citado por Cruz Bucho, in ob. cit. pág. 9).
  “A dúvida objectivável, razoável e argumentada, sobre factos que possam ser desfavoráveis ao arguido, deverá levar a considerá-los corno não provados. Com efeito, o juiz só pode aceitar um facto de que está convencido, pelo que a persistência da dúvida razoável após a produção de prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e por conseguinte, conduzir à consequência imposta ao caso de se ter logrado obter a prova completa da circunstância favorável ao arguido.” (ob. cit. pág. 19).
  Para finalizar, como diz Ernst Beling “toda a dúvida séria exclui a condenação“ e como diz Castanheira Neves “o princípio in dubio pro reo é expressão da intenção de justiça e de verdade material do processo penal.” (citados por Miguel Nuno Pedrosa Machado, “Princípio in dubio pro reo e o novo código de processo penal“, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 49, p. 583).
***
  4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
  Atentos os factos dados como não provados é inequívoco que ao arguido não pode ser assacada qualquer responsabilidade criminal, pelo que se impõe, sem necessidade de mais desenvolvimentos, a sua absolvição, o que se decidirá.
***
III. DECISÃO
  Nestes termos, julga-se a acusação improcedente e, em consequência, o Tribunal decide ABSOLVER o arguido B, do crime que vinha acusado.
  Mais se decide, quanto ao pedido de indemnização civil, remeter as partes para os meios comuns.
  Sem custas.
  Fixam-se os honorários da ilustre defensora oficiosa em $800 patacas, quantia a suportar pelo GPTUI.
  Remeta o boletim do registo criminal à DSI.
  Notifique e deposite.
[...]>> (cfr. o conteúdo literal de fls. 131 a 138 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000, no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O recorrente apontou inclusivamente o vício de contradição insanável da fundamentação à decisão judicial recorrida.
Para este Tribunal ad quem, da leitura da fundamentação fáctica da sentença impugnada, resulta patente a seguinte contradição irredutível:
– por um lado, o Tribunal a quo deu por provado que o ofendido (ora recorrente) se deslocou em 6 de Junho de 2010 à fracção então arrendada ao arguido para resolver a questão de falta de pagamento de renda e que, para o efeito, o arguido entregou ao ofendido o cheque dos autos (cfr. os três primeiros factos provados), mas, por outro, o mesmo Tribunal já deu por não provado que a partir de Janeiro de 2010, o arguido não efectuou o pagamento atempado da renda (cfr. o primeiro facto não provado).
Como essa contradição compromete a lógica do resultado do julgamento, então feito, da restante matéria fáctica descrita na acusação penal, e a lógica da decisão jurídica, também recorrida, de relegação da causa cível de indemnização então enxertada para o meio comum, é de reenviar o processo, em todo o seu objecto probando penal e cível, para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, nos termos conjugados dos art.os 400.o, n.o 2, alínea b), e 418.o, n.os 1 e 2, do CPP.
Com isso, já não é mister abordar da remanescente parte do objecto do recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando todo o objecto (penal e cível) do processo para novo julgamento.
Sem custas pelo presente processado recursório.
Fixam em mil e trezentas patacas os honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso do arguido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 26 de Julho de 2012.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 332/2011 Pág. 12/12