Processo n.º 650/2012 Data do acórdão: 2012-9-20
Assuntos:
– art.º 30.º, n.os 1 e 3, da Lei do Trânsito Rodoviário
– pagamento da multa sem reserva
– aceitação tácita da prática da infracção
– ofensa à integridade física cometida no exercício da condução
– recurso da decisão penal condenatória
– embate do veículo no ofendido
– erro notório na apreciação da prova
– não admissão do recurso
– falta do interesse em agir
– art.º 140.º, n.º 2, da Lei do Trânsito Rodoviário
S U M Á R I O
1. Como o arguido, a menos de uma hora depois do momento de ocorrência do acidente de viação então investigado pela Polícia de Trânsito, pagou voluntariamente a multa cominada nos termos dos n.os 1 e 3 do art.º 30.º da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), sem ter, ao mesmo tempo, formulado qualquer reserva sobre a vontade desse acto de pagamento, desse acto decorre já a aceitação tácita, por parte dele, de que a menos de uma hora antes, numa via pública em Macau, ele não acatou o seu dever de regular a velocidade do veículo que estava a conduzir, pois não conseguiu fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente para evitar qualquer obstáculo que lhe surgisse em condições normalmente previsíveis.
2. Tendo sido por causa dessa sua conduta de condução que ficou condenado posteriormente na sentença ora recorrida como autor material de um crime consumado de ofensa à integridade física por negligência cometido no exercício de condução, o arguido não pode fazer discutir na sua motivação de recurso, e como a única questão aí posta, se terá havido, por parte do tribunal recorrido, erro notório na apreciação da prova no referente ao embate do veículo em questão no joelho do ofendido queixoso, ofendido esse que foi tal “obstáculo” (de que se fala no art.º 30.º, n.º 1, da LTR) que surgiu à frente da viatura.
3. Dest’arte, não é de admitir o recurso, pretendido pelo arguido, da dita sentença condenatória, por falta de interesse em agir por parte do mesmo recorrente.
4. O art.º 140.º, n.º 2, da LTR só fala das “multas … aplicadas por decisão que se tenha tornado inimpugnável”, e não das multas aplicadas por decisão ainda impugnável.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 650/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 71 a 75v dos autos de Processo Comum Singular n.o CR4-12-0099-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que o condenou como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência cometido no exercício da condução, p. e p. pelo art.º 142.º, n.º 1, do Código Penal (CP), conjugado com o art.º 93.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de cem dias de multa, à taxa diária de cento e cinquenta patacas, no total, assim, de quinze mil patacas de multa (multa essa substituível, no caso de não ser paga, por sessenta e seis dias de prisão), com inibição de condução por quatro meses, e obrigação de pagar ao ofendido C (C) duas mil patacas de indemnização cível de danos patrimoniais e morais sofridos por este, arbitrada oficiosamente pelo Tribunal, com juros legais contados a partir da data da sentença até integral e efectivo pagamento, veio o arguido B (B) interpor recurso ordinário para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir, através da motivação constante de fls. 96 a 109 dos presentes autos correspondentes, a revogação da sentença, com almejada absolvição dele do dito crime, ou reenvio do processo para novo julgamento, por entender ele haver erro notório na apreciação da prova cometido pelo dito Tribunal.
Em sede de exame preliminar destes autos recursórios, opinou o relator, a fls. 122 a 122v, pela falta de interesse em agir por parte do arguido para interpor o recurso.
Notificado, veio responder o arguido a fls. 125 a 126 no sentido de devido conhecimento do recurso por este TSI.
É, pois, de decidir, em conferência, da questão suscitada em exame preliminar pelo relator, porquanto já foram dados os vistos pelos dois M.mos Juízes-Adjuntos para o efeito.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, flui o seguinte, pertinente à decisão:
1. Por força da sentença proferida a fls. 71 a 75v dos subjacentes autos penais emergentes de acidente de viação (com o n.o CR4-12-0099-PCS do 4.o Juízo Criminal do TJB), o arguido B ficou condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência cometido no exercício da condução, p. e p. pelo art.º 142.º, n.º 1, do CP, conjugado com o art.º 93.º, n.º 1, da LTR, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de cento e cinquenta patacas, no total, assim, de quinze mil patacas de multa (multa essa substituível, no caso de não ser paga, por sessenta e seis dias de prisão), com inibição de condução por quatro meses, e obrigação de pagar ao ofendido C duas mil patacas de indemnização cível de danos patrimoniais e morais sofridos por este, arbitrada oficiosamente pelo Tribunal, com juros legais contados a partir da data da sentença até integral e efectivo pagamento.
2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso ordinário da dita sentença, para pedir, através da motivação constante de fls. 96 a 109 dos mesmos autos, a absolvição do referido crime, ou o reenvio do processo para novo julgamento, com fundamento, exclusivamente alegado, de existência do vício de erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido, por entender ele, em síntese, que apesar de ter o ofendido sido diagnosticado no sentido de haver contusão da pele no joelho esquerdo, essa contusão poderá ter sido causada por um “ataque alheio” e não necessariamente pela viatura então conduzida pelo próprio arguido.
3. De acordo com a fundamentação fáctica da sentença recorrida, foi aí dado como provado, na sua essência, que: Em 12 de Fevereiro de 2011, cerca das 09:25 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel n.º MM-XX-XX na Rua Nova à Guia, e ao chegar ao troço dessa rua à frente do número policial 5 da mesma, por não estar a conduzir com velocidade adequada, não conseguiu travar o veículo, o qual embateu assim no corpo do transeunte C que estava a atravessar a rua em frente do veículo, tendo causado a este ofendido lesão contusa no tecido mole do joelho esquerdo, segundo o diagnóstico feito pelo Hospital Kiang Wu.
4. Em 12 de Fevereiro de 2011, às 10:12 horas, o arguido pagou voluntariamente a multa pela infracção ao n.º 1 do art.º 30.º da LTR, tida pela Polícia de Trânsito como praticada pelo arguido na Rua Nova à Guia de Macau, às 09:25 horas desse mesmo dia (cfr. o teor de fl. 12 dos autos), e não chegou a formular nenhuma reserva sobre a vontade desse acto de pagamento da multa.
5. Subido o recurso para este TSI, foi proferido o seguinte despacho pelo relator (a fls. 122 a 122v) em sede de exame preliminar:
– <
Assim sendo, afigura-se ter perdido o arguido, a partir do momento em que pagou voluntariamente tal multa, cominada pela prática de uma infracção ao n.º 1 do art.º 30.º da dita Lei, o seu interesse processual em fazer discutir agora, na sua motivação de recurso da sentença condenatória da 1.ª Instância, a questão de erro notório na apreciação da prova no referente ao embate do seu veículo automóvel ligeiro n.º MMXX-XX no joelho do ofendido queixoso C, ocorrido em 12/2/2011, cerca das 09:25 horas, na Rua Nova à Guia de Macau, o que faria com que este TSI não pudesse vir a conhecer de todo o objecto do seu recurso, composto pela referida questão de erro notório na apreciação da prova, exclusivamente.
Assim sendo, notifique o arguido (na pessoa do seu Ex.mo Defensor) para se pronunciar sobre a eventualidade de o seu recurso não poder ser conhecido neste TSI, por falta de interesse em agir, nos termos acima observados vestibularmente.
[…]>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
O art.º 30.º, n.º 1, da LTR determina que “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis”.
O arguido, a menos de uma hora depois do momento de ocorrência do acidente de viação então investigado pela Polícia de Trânsito, pagou voluntariamente a multa cominada no n.º 3 do art.º 30.º da LTR, sem ter, ao mesmo tempo, formulado qualquer reserva sobre a vontade desse acto de pagamento da multa.
Assim sendo, do mesmo acto de pagamento voluntário da multa, decorre a aceitação tácita, por parte do arguido, de que no dia 12 de Fevereiro de 2011, pelas 09:25 horas, na Rua Nova à Guia, ele não acatou o seu dever de regular a velocidade do veículo que estava a conduzir, pois não conseguiu fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente para evitar qualquer obstáculo que lhe surgisse em condições normalmente previsíveis.
Aliás, foi materialmente por causa dessa conduta de condução que ele ficou condenado na sentença ora recorrida como autor material de um crime consumado de ofensa à integridade física por negligência cometido no exercício de condução.
Portanto, como o arguido já pagou voluntariamente a multa acima referida sem qualquer reserva sobre a vontade desse pagamento, ele já não pode fazer discutir na sua motivação de recurso se terá havido, por parte do Tribunal recorrido, erro notório na apreciação da prova no referente ao embate do veículo automóvel n.º MM-XX-XX no joelho do ofendido queixoso, ocorrido em 12 de Fevereiro de 2011, cerca das 09:25 horas, na Rua Nova à Guia, ofendido esse que foi, in casu, tal “obstáculo” (de que se fala no art.º 30.º, n.º 1, da LTR) que surgiu à frente da viatura então conduzida pelo próprio arguido.
É certo que o arguido, na resposta de fls. 125 a 126 (à observação preliminar do relator), explicou por quê é que tinha pago então a multa. Entretanto, essas razões do pagamento da multa, com alegado fundamento materialmente no art.º 140.º, n.º 2, alínea 1), da LTR, deverão ter sido objecto da reserva a ter que ser formulada no acto de pagamento da multa, pelo que sem reserva formulada até ao momento de pagamento, as mesmas razões são agora processualmente irrelevantes. De resto, em todo o caso, o n.º 2 do art.º 140.º da LTR só fala das “multas … aplicadas por decisão que se tenha tornado inimpugnável”, e não das multas aplicadas por decisão ainda impugnável.
Ante o exposto, não é de admitir o recurso, pretendido pelo arguido, da sentença condenatória da Primeira Instância, por falta de interesse em agir por parte do mesmo recorrente, nos termos já observados pelo relator em sede do exame preliminar dos autos.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em não admitir o recurso.
Pagará o recorrente as custas pelo presente incidente, com uma UC e meia de taxa de justiça, e mil e seiscentas patacas de honorários ao seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique a decisão ao ofendido.
Após o trânsito em julgado do presente acórdão, extraia uma certidão do presente acórdão e da sentença recorrida e a envie à Direcção dos Serviços de Economia como entidade patronal do recorrente.
Macau, 20 de Setembro de 2012.
________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
________________________ (Segue declaração de voto).
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo nº 650/2012
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Vencido nos termos seguintes:
Não se nos afigura de sufragar o entendimento assumido no douto Acórdão que antecede, segundo o qual, o pagamento da multa – por “excesso de velocidade” – sem que o transgressor manifeste reserva, implica, sempre, automática e total “perda do interesse em agir”, como no caso sucede com o presente recurso, (sobre a questão, e em sentido contrário, cfr., v.g., a título de mera referência, o Ac. do Tribunal Constitucional português n.° 135/2009, de 18.03.2009, no site do mesmo), transformando-se assim os art°s 131° e 137° da Lei n.° 3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”), que regulam o “pagamento voluntário da multa” – com desconto ou pelo mínimo – como uma verdadeira “armadilha para os mais incautos”.
Com efeito, importa não olvidar que o preceituado no art. 133° do mesmo diploma legal prevê, expressamente, a “remessa do processo a Tribunal”, (…), “se havendo pagamento voluntário, a contravenção for também punível com inibição de condução”.
No caso dos presentes autos, para além da contravenção – por “excesso de velocidade” – pela qual pagou o recorrente a multa, outra questão existe: a sua condenação pelo crime de “ofensa à integridade física por negligência” assim como no pagamento de uma “indemnização civil” ao ofendido.
E, nesta conformidade, sendo que a questão colocada no presente recurso se identifica com a do “erro notório” no julgamento da matéria de facto quanto às “lesões sofridas pelo ofendido e suas causas”, matérias estas directamente relacionadas com a verificação do dito crime e sua sanção e também com a própria razão de ser da indemnização e seu quantum, parece-nos, no mínimo, inadequado, extrapolar-se da forma que se entendeu e concluir que, em virtude do pagamento da multa (pelo “excesso de velocidade”), ao recorrente não assiste interesse em agir quanto a tais questões.
Na verdade, e como nos parece evidente, do (mero) “excesso de velocidade” pode não resultar, necessariamente, uma “ofensa à integridade física” de quem quer que seja, e, seja como for, há que ter em conta que o mesmo “excesso de velocidade” não implica também a imediata prova de toda e qualquer lesão (alegadamente) sofrida pelo ofendido.
Daí, sermos de considerar que motivos não existem para a decisão ora prolatada e que adequado seria a admissão e conhecimento do recurso interposto.
Macau, aos 20 de Setembro de 2012
José Maria Dias Azedo
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