Processo n.º 479/2011 Data do acórdão: 2012-10-18 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– art.o 311.o do Código Penal
– resistência e coacção
– ofensa grave à integridade física
– concurso efectivo dos crimes
– ofensa simples à integridade física
– alteração da qualificação jurídico-penal dos factos
– ne bis in idem
– art.o 360.o, alínea b), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Só há concurso efectivo entre o crime de resistência e coacção do art.o 311.o do Código Penal e o crime de ofensa grave à integridade física, e não entre aquele crime e o de ofensa simples à integridade física.
2. A alteração oficiosa, por parte do tribunal ad quem, da qualificação jurídico-penal dos factos dados por provados pelo tribunal a quo não compromete o princípio de ne bis in idem, porque essa alteração ocorre dentro de um mesmo processo penal.
3. É nula, nos termos cominados pelo art.o 360.o, alínea b), do Código de Processo Penal, a decisão condenatória ora recorrida, por o arguido recorrente estar aí condenado por factos quiçá com relevo para a decisão da causa mas não descritos na acusação, sem ter sido notificado previamente disso para exercer o seu direito de defesa.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 479/2011
(Autos de recurso penal)
Arguido recorrente: B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 150 a 154 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-09-0063-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de ofensa qualificada à integridade física, p. e p. pelos art.os 140.o e 129.o, n.o 2, alínea h), do Código Penal (CP), na pena de cinco meses de prisão efectiva, não obstante ter sido acusado inicialmente como autor material de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art.o 311.o do CP, veio o arguido B (B), aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para expor (na sua motivação apresentada a fls. 162 a 167 dos presentes autos correspondentes) que:
– 1) essa decisão condenatória violou o tipo legal de ofensa qualificada à integridade física (devido, no seu entender, à inexistência de pressupostos fácticos para verificação desse crime), e que a proceder este fundamento do recurso, ele deveria ser absolvido simplesmente, e não poderia vir a ser condenado no crime do art.o 311.o do CP inicialmente acusado (embora concordasse ele com a verificação deste delito ante a factualidade descrita como provada no acórdão impugnado), sob pena da violação do princípio de ne bis in idem (posto que ele já tinha sido julgado uma vez pelo Tribunal recorrido quanto aos factos integradores deste crime acusado);
– 2) e mesmo que assim não se entendesse, sempre a decisão condenatória da Primeira Instância deveria ser invalidada, por causa da violação do princípio do contraditório (posto que ele nunca tinha sido notificado pelo Tribunal a quo da eventualidade de passar a ser condenado pelo crime de ofensa qualificada à integridade física, em vez do referido crime acusado);
– 3) e ainda subsidiariamente falando, a mesma decisão condenatória deveria ser declarada nula nos termos do art.o 360.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), por ele ter sido condenado em factos inicialmente não descritos no libelo acusatório;
– 4) e finalmente, fosse como fosse, ele deveria merecer a suspensão da execução da pena de prisão, para evitar todas as consequências negativas de execução da pena de curta duração.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 169 a 174v) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 184 a 187v), pugnando pela manutenção da decisão condenatória recorrida, para além de preconizar que o recorrente deveria ser condenado também, em concurso real efectivo, pela prática do crime inicialmente acusado, sem prejuízo do princípio da reforma para pior no respeitante à pena de prisão por que já vinha condenado.
Notificado nos termos do art.o 407.o, n.o 2, do CPP, ficou silente o recorrente.
Concluído o exame preliminar e corridos os vistos, procedeu-se à audiência neste TSI.
Cumpre, pois, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal recorrido deu materialmente como provado o seguinte, na sua essência (cfr. o teor, originalmente escrito em chinês, da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, a fls. 150v a 152 dos autos), sendo de notar que a parte escrita em itálico abaixo não foi descrita na acusação pública segundo a qual o arguido ora recorrente teria cometido em autoria material, e na forma consumada, um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art.o 311.o do CP:
– em 23 de Janeiro de 2008, cerca das 21:20 horas, três guardas do Corpo de Polícia de Segurança Pública, com os n.os 22XXXX, 28XXXX e 24XXXX, ao procederam, perto do Edifício ...... da Rua ...... de Iao Hon, ao combate contra a prostituição na rua, descobriram uma senhora a exibir indícios de prática de prostituição, pelo que o guarda n.o 22XXXX (chamado C (C), e ofendido dos autos) pretendeu interceptar tal senhora, a qual se pôs logo em fuga e a gritar por alto “veio a Polícia!”;
– e foi nesse momento que o arguido saiu de repente da entrada do Edifício ......, e utilizou o seu corpo e as duas mãos para impedir que tal guarda policial fosse interceptar tal senhora;
– na altura, os três guardas policiais estavam a trabalhar à paisana;
– o guarda C, ao ver o seu caminho impedido pelo arguido, disse ao arguido “Polícia, a trabalhar!”, e ao pretender afastar o arguido, o arguido esmurrou com a mão direita, e por duas vezes, na cara esquerda deste guarda, o que fez com que este tenha ficado ferido e caído no chão;
– quando o arguido preparou-se a continuar a atacar o guarda C, os outros dois guardas foram impedi-lo e controlaram-no com uso de violência adequada;
– a conduta acima descrita do arguido causou directa e necessariamente contusão na zona labial do ofendido C;
– a ferida do ofendido consta, em detalhes, a fls. 7 e 60 dos autos, as quais se dão por integralmente reproduzidas;
– como verificado médico-legalmente, a ferida do ofendido C demandou um dia para convalescença;
– o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, sabendo que o ofendido era polícia a exercer as funções;
– o arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e sujeita à punição;
– segundo o certificado do registo criminal, o arguido não é delinquente primário, tendo chegado a ser condenado:
– em 17 de Outubro de 1988 em pena de prisão efectiva já dada por executada, devido à prática de um crime de furto de veículo, um crime de roubo e um crime de detenção de arma proibida;
– em 16 de Outubro de 1996 em pena de prisão efectiva já cumprida, por prática de um crime de roubo;
– em 27 de Fevereiro de 1997 em pena de prisão efectiva já cumprida, por prática de um crime de roubo;
– em 19 de Dezembro de 1996 por prática do crime de detenção de droga;
– em 9 de Dezembro de 1996, em pena de prisão efectiva já cumprida, por prática de um crime de roubo;
– em 24 de Maio de 2002, em pena de prisão efectiva já cumprida, por prática de um crime de roubo;
– em 2 de Junho de 2005, em pena de prisão efectiva já cumprida, por prática de um crime de ameaça;
– em 15 de Dezembro de 2010, em pena de prisão efectiva, por prática de um crime de ofensa qualificada à integridade física, em processo ainda pendente na fase de recurso;
– o arguido declarou ser operário de montagem de armações, com cinco a seis mil patacas de rendimento mensal, ter a mãe a seu cargo e ter como habilitações literárias a 2.a classe do ensino primário;
– o ofendido renunciou à pretensão de indemnização cível.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Conhecendo o recurso sub judice nesses parâmetros, e ainda que se afigure ao presente Tribunal ad quem que em termos jurídicos falando, só há concurso efectivo entre o crime de resistência e coacção do art.o 311.o do CP e o crime de ofensa grave à integridade física, e não entre aquele crime com o de ofensa simples à integridade física (neste sentido, cfr. o COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, dirigido por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Tomo I, página 368, os dois primeiros parágrafos, escritos por AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, por remissão do primeiro parágrafo da página 348 do Tomo III da mesma Obra), por um lado, e, por outro, que a eventual alteração oficiosa, por parte do tribunal ad quem, da qualificação jurídico-penal dos factos dados por provados pelo tribunal a quo não compromete o princípio de ne bis in idem (precisamente porque essa alteração ocorre dentro de um mesmo processo penal), é de declarar, a contento do recorrente, nula, nos termos cominados pelo art.o 360.o, alínea b), do CPP, a decisão condenatória ora recorrida, por ele estar condenado pelo Tribunal a quo por factos quiçá com relevo para a decisão da causa mas não descritos na acusação (quais sejam, os respeitantes a: “na altura, os três guardas policiais estavam a trabalhar à paisana” e “o guarda C, ao ver o seu caminho impedido pelo arguido, disse ao arguido “Polícia, a trabalhar!”, e ao pretender afastar o arguido”), sem ter sido notificado previamente disso para exercer o seu direito legal de defesa.
Portanto, caberá ao mesmo Tribunal Colectivo a quo (i.e., com os mesmos três M.mos Juízes) repetir a audiência de julgamento do processo penal subjacente, e decidir novamente da causa.
Do acima decidido, resulta a desnecessidade de abordagem, por estar logicamente prejudicada, do demais alegado pelo arguido na motivação como objecto do recurso.
IV – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso, declarando nulo o acórdão condenatório recorrido, com o que caberá ao Tribunal Colectivo autor desse aresto repetir a audiência de julgamento para decidir novamente da causa.
Pagará o recorrente 1/8 das custas do recurso, por essa porção corresponder à parte do seu recurso ora julgada concretamente e na qual decaiu ele finalmente, com duas UC de taxa de justiça respectiva.
Fixam em mil e trezentas patacas os honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa, a entrar na regra das custas, e ora a adiantar integralmente pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
E comunique o presente acórdão ao polícia ofendido C.
Macau, 18 de Outubro de 2012.
__________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
__________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
__________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 479/2011 Pág. 1/11