Proc. nº 218/2012
(Recurso cível e laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Julho de 2012
Descritores:
-Declaração de remissão/quitação
SUMÁRIO
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.
Proc. nº 218/2012
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento de Mop$492.517,00, como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início ao termo da relação laboral entre ambos.
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Na sua contestação, a ré STDM suscitou a excepção de prescrição e de pagamento/remissão, além da matéria impugnativa, deduzindo ainda igualmente reconvenção, que, neste caso, manifestou através do pedido de devolução das gorjetas que entregou ao autor ao longo da relação laboral, no pressuposto de que elas não eram devidas nos termos do contrato entre ambos celebrado e no de que elas haviam sido oferecidas livre e espontaneamente pelos jogadores sem que fizessem, portanto, parte do salário. A ser assim, considera estar perante um enriquecimento indevido por parte do trabalhador, circunstância que a leva a pedir a sua devolução.
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No despacho saneador, o tribunal “a quo” não admitiu o pedido reconvencional e julgou improcedentes as excepções concernentes ao alegado pagamento (declaração de quitação) e à prescrição.
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Desse despacho saneador, na parte referente à decisão sobre a reconvenção, foi interposto recurso jurisdicional pela STDM, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1- Sem prejuízo de melhor entendimento e Juízo, deve proceder a Reconvenção deduzida pela Ré e aqui Recorrente,
2- Conhecendo-se dos dois pedidos ínsitos na mesma Reconvenção, nos artigos 247º e seguintes da Contestação e Reconvenção,
3- Pelo que, salvo melhor entendimento, improcede o douto Despacho Saneador que considerou impeditivo o conhecimento da Reconvenção porquanto esta não preenche os requisitos legais para ser admitida;
4- Com as custas a cargo da Ré, ora Recorrente.
5- Não existe falta de acessoriedade, complementaridade ou dependência entre o pedido principal ou inicial, ínsito na douta PI, e o pedido reconvencional apresentado nos artigos 247º e seguintes da Contestação e Reconvenção,
6- Pois ambos estão interligados, conexos ou relacionados, senão, vejamos:
7- O pedido deduzido pelo(a) A/Reconvindo(a) na PI ascende a MOP$ 492,517 (quatro contas e noventa e duas mil, quinhentas e dezassete patacas).
8- O salário diário do(a) A, Reconvindo(a) e aqui Recorrido(a) foi sempre estável, no valor pecuniário diário de HK$10.00 e mais tarde de HKD$15,00 - vide artigo 115º da Contestação - sempre em função do trabalho prestado, do labor efectivamente produzido nos casinos da Recorrente e, também, da sua comparência ao serviço nos mesmos casinos até 31 de Março de 2002.
9- Ora, o pedido ascende a quantias superiores ao que o(a) A, Recorrido (a), poderia calcular com base na sua retribuição diária.
10- O pedido e a causa de pedir são os pretensos, hipotéticos e possíveis períodos de descanso ou de repouso semanais, anuais e feriados obrigatórios não gozados.
11- Com base nesse pedido, o(a) A. deduz um quantum indemnizatório em que engloba quantias alheias à Ré e ora Recorrente,
12- Prestações de terceiros, os clientes dos casinos que, como doações remuneratórias ou liberalidades de terceiros, prestavam gratificações ou gorjetas nos casinos que a Ré e Reconvinte, ora Recorrente, explorou até ao termo da sua concessão em exclusivo por caducidade, em 31 de Março de 2002.
13- O requisito da acessoriedade, complementaridade e dependência do pedido reconvencional, previsto no terceiro parágrafo do número 1 do artigo 17º do CPT, encontra-se verificado.
14- Primeiro, a Ré e Reconvinte, procurou a validade do seu contrato e das suas cláusulas de trabalho contínuo, mesmo em dias de repouso, o que foi sempre aceite pelo(a) Recorrido(a);
15- Segundo, mesmo que, porventura, tal contrato não fosse nem seja legal - o que não se considera mas equaciona por mera hipótese académica e à cautela - então deve o(a) Recorrido(a) e Reconvindo(a) devolver o montante altíssimo de gratificações, luvas ou gorjetas recebidas pela Ré e provenientes dos clientes dos casinos,
16- Quantias pecuniárias estas que o(a) Reconvindo(a) e Recorrido(a) só auferiu em troco do trabalho nos casinos da Ré e Recorrente,
17- Nos termos, designadamente, dos artigos 9º do RJRT de 1984 e 12º do RJRT de 1989 (diplomas legais que, hoje, estão já revogados).
18- Apenas se aplicava o RJRT de 1984 e o RJRT de 1989 à relação jurídica e material controvertida, bem como os Usos e Costumes do Sector do Jogo e Aposta em Casino e outros jogos de azar, em vigor à data dos factos.
19- Portanto, a conexão/acessoriedade entre o pedido da PI e o pedido da Reconvenção existe: o valor das luvas, prémios irregulares, gorjetas ou gratificações, não sendo conveniente nem possível a Ré e Recorrente ser condenada a prestar ou a repetir uma prestação pela qual não pode ser responsabilizada, isto é, as tais gorjetas dos clientes.
20- Logo, o pedido indemnizatório da presente acção laboral constitui um locupletamento sem causa da Recorrida à custa da Recorrente.
21- E, tendo em conta o peticionado nos artigos acima referidos e, bem assim, o valor da Reconvenção, que ascende a MOP$1,305,823 (um milhão, trezentas e cinco mil, oitocentas e vinte e três patacas),
22- Existe também, dependência entre o pedido principal e o pedido reconvencional: a ser condenada a Ré pela falta de repouso ou de descanso, deverá tal indemnização desconsiderar ou subtrair as referidas gratificações ou gorjetas dos clientes e,
23- Sem conceder, deverá a Reconvenção, proceder, condenando-se, pois, o(a) A./Recorrido(a) a devolver a quantia ilegitimamente obtida à custa das liberalidades prestadas pelos clientes e redistribuídas pela Ré a todos os seus ex-colaboradores até 31 de Março de 2002.
24- Ou seja, o montante de MOP$ 1,305,823 (um milhão, trezentas e cinco mil, oitocentas e vinte e três patacas), conexo com o montante que injusta e sem causa o(a) A./Recorrido(a) vem agora, a Juízo, novamente reclamar e peticionar;
25- Bem como, fica provado esse nexo entre as duas acções, com o prejuízo objectivo e grave que sobre a Recorrente impende com a presente acção judicial laboral em que é exigido pelo(a) A. e aqui Recorrido(a) o pagamento da quantia de MOP$ 492,517 (quatro contas e noventa e duas mil, quinhentas e dezassete patacas), acrescida de juros de mora legais vencidos e vincendos.
26- Tendo sido deduzida a presente Reconvenção no presente litígio justamente, em ordem à celeridade, oportunidade e rapidez processuais do processo laboral,
27- Escusando-se a Ré e Recorrente de instaurar novo pleito judicial para reaver o montante das gratificações ou gorjetas recebidas pelo(a) Autor(a) e Recorrido(a) dos clientes dos casinos explorados pela Ré,
28- Levando em linha de conta o alegado na Contestação e Reconvenção, para requerer a V. Exas do Tribunal ad quem que revoguem o douto Despacho Saneador recorrido posto aqui em crise pelo presente Recurso Interlocutório,
29- Desde logo, na parte em que absolveu a Recorrida da instância por alegada falta de qualquer dos 3 (três) requisitos previstos nos três parágrafos do número I do artigo 17º do CPT, como ficou expresso no referido e mui Despacho Saneador, que aqui se recorre interlocutoriamente.
30- Sobre o pedido reconvencional, o locupletamento sem causa do(a) Reconvindo(a) à custa da Ré e Recorrente, em MOP$ 1,305,823 (um milhão, trezentas e cinco mil, oitocentas e vinte e três patacas), que traduz o valor das luvas, gratificações, prémios irregulares ou gorjetas que o(a) aqui Recorrido(a) recebeu e que,
31- De uma forma repetida e excessiva, procura agora no presente pleito, enriquecer novamente à custa da Ré e aqui Recorrente, ao peticionar uma quantia pecuniária por pretensa falta de descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios,
32- Descurando-se o facto essencial de ter auferido um elevadíssimo rendimento ao longo dos anos em que prestou serviço e foi funcionário ou empregado da Ré e Recorrente,
33- Desde logo, por mor das luvas, gratificações ou gorjetas prestadas pelos clientes e distribuídas pela Ré e aqui a Recorrente.
34- O Mmo. Juiz a quo considerou não estarem preenchidos os fundamentos do instituto enriquecimento sem causa.
35- Houve revelia operante do(a) A. e ora Recorrido(a), pois, uma vez notificado para responder, contestar, impugnar a Reconvenção em sede de resposta à Contestação, manteve o silêncio.
36- Tal silêncio tem a cominação dada pelo número 1 do artigo 32º do CPT, isto é, consideram-se reconhecidos os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.
37- Em consequência todos os factos alegados nos artigos 247 e seguintes da Contestação e Reconvenção deveriam ter sido considerados reconhecidos e, em consequência, provados.
38- O Tribunal a quo não se pronunciou sobre tal revelia operante em relação à Reconvenção da ora Recorrente, a qual é uma contra-acção, que deve seguir os mesmos termos de uma petição inicial.
39- O(a) Recorrido(a) deveria ter sido condenado de preceito no pedido reconvencional.
40- A causa para o enriquecimento do(a) ora Recorrido(a) e o consequente empobrecimento da Recorrente assentava na renúncia expressa daquele primeiro à remuneração em dias de descanso (semanal, anual e feriados obrigatórios).
41- Apenas por ter aceitado não ser remunerado durante a relação laboral, a R., ora Recorrente, permitiu ao(à) A., ora Recorrido(a), participar no esquema das gorjetas entregues pelos Clientes da Recorrente.
42- Isto é, a causa deixou de existir no momento em que a acção foi intentada, passando, no entendimento da Recorrente, o(a) A./Reconvindo(a)/Recorrido(a) a estar obrigado a restituir o indevidamente recebido a título de gorjetas.
43- Ao receber parte das gorjetas, cuja causa para o seu recebimento era o facto de não ser remunerado nos seus dias de descanso, parece forçoso concluir que o(a) Recorrido(a) enriqueceu à custa do empobrecimento da Ré, ora Recorrente, quando intentou a presente acção.
44- Não é só quando não há causa para as deslocações pecuniárias que o instituto do enriquecimento sem causa pode ser invocado - como parece inferir-se daquilo que doutamente refere o despacho recorrido - mas também quando a causa para essa deslocação deixa de existir.
45- Assim sendo, requer-se a V. Exas o conhecimento da Reconvenção e dos dois pedidos nela ínsitos, seguindo-se os demais termos do processo.
Termos em que se requer a procedência da Reconvenção deduzida na Contestação e o seu conhecimento pelo douto Tribunal a quo, revogando-se o douto Despacho Saneador que indeferiu a mesma Reconvenção, prosseguindo-se, deste modo, os autos com o conhecimento do mérito da mesma, deste modo, fazendo V. Exas, a habitual JUSTIÇA.
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Recorreu ainda a mesma ré, STDM, em recurso autónomo, na parte referente à excepção peremptória do pagamento e remissão. Nas alegações respectivas formulou as seguintes conclusões:
I. O presente recurso versa sobre o despacho do(a) Mmo(a). Juiz a quo, de 12 de Abril de 2011, na parte que julgou improcedente a excepção peremptória de pagamento e remissão, invocada pela Ré, ora Recorrente, na Contestação, e que extingue todos os créditos laborais peticionados nos presentes autos.
II. Na sua Contestação, a R. sustentou que pagou todas as quantias em dívida ao(à) A. e que este(a) renunciou expressamente a quaisquer outras quantias, através da assinatura da declaração junta à Contestação como Doc. nº 1.
III. No despacho de que se recorre, o(a) Mmo(a). Juiz a quo veio, como se referiu supra, a entender que o que existiu entre as partes foi uma transacção a qual levou à emissão da referida declaração.
IV. Ora, em primeiro lugar, não pode concordar-se com a tese segundo a qual o que existiu entre as partes foi uma transacção. Em segundo lugar, mesmo que se entenda que as partes celebraram uma transacção, não se vê em que medida é que pode entender-se que esta não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida.
V. Salvo melhor entendimento, o douto Tribunal a quo, deveria ter qualificado a declaração do(a) A.como um acordo de remissão de créditos (conforme defendido na Contestação) ou, em alternativa, como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida. Não o tendo feito, violou o artigo 776.º do CC.
VI. Cabe aqui recordar que relativamente a casos em tudo idênticos ao presente existe jurisprudência firmada do Tribunal de Última Instância (TUI), coincidente com a posição maioritária no Tribunal de Segunda Instância (TSI), com a qual a decisão recorrida colide frontalmente.
VII. A título de exempl03, recordemos o que foi dito a propósito desta matéria pelos Venerandos Juízes do TUI no Acórdão de 30 de Julho de 2008, no Processo n.º 27/2008: a declaração que a autora assinou “parece, portanto, tratar-se de uma quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil”.
VIII. Mais se refere no mencionado acórdão que o reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
IX. Refere-se também que a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
X. No caso deste recurso do TUI (como de resto acontece nos presentes autos, e diversamente do que sucede no douto despacho recorrido), os Venerandos Juízes julgaram, e bem, que “nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.”.
XI. E, quanto a esta matéria, remata o identificado aresto da seguinte forma:
“Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.”. (negro e sublinhado nosso)
XII. Assim, o(a) Mmo(a). Juiz a quo, ao não ter qualificado a declaração do(a) A.como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida violou o artigo 776.º do CC.
XIII. O douto despacho recorrido interpretou e aplicou erradamente os artigos 1.174º e 212º do CC e é nulo por falta de fundamentação, devendo ser revogado por V. Exas. em conformidade.
XIV. É questionável que possa concluir-se dos factos dados como provados nos autos que à data da assinatura da declaração junta à contestação como Doc. n.º 1 fosse previsível o nascimento de um litígio entre A. e R..
XV. Como se viu supra, o(a) Mmo(a). Juiz a quo considerou que o que existiu foi uma transacção entre as partes. Ora, salvo o devido respeito, ao decidir neste sentido, o(a) Mmo(a). Juiz aplicou erradamente o artigo 1.174º do CC, pois no caso dos autos não existiu qualquer transacção.
XVI. Mas, ainda que se admitisse a hipótese da transacção, tal negócio não levaria à improcedência da excepção alegada pela R, mas sim a absolvição da R do pedido.
XVII. Vejamos: também da hipótese do negócio celebrado entre A. e R configurar uma transacção cuidou o supra referido acórdão proferido pelo Venerando TUI em 30 de Julho de 2008, no processo n.º 27/2008. Com efeito, e conforme se escreveu anteriormente, pode ler-se no referido acórdão: “Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré”. (negro e sublinhado nosso)
XVIII. Sucede que o douto Tribunal recorrido também aplicou erradamente o artigo 212º do CC, ao defender que a transacção acima referida não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida, ao abrigo do disposto no artigo 211º do CC, concluindo dessa afirmação que a mesma é nula e, como tal, não produtora de qualquer efeito.
XIX. Ora, salvo o devido respeito, que é como se sabe muito, não se compreende como é o despacho recorrido pôde considerar que a hipotética transacção não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida; tampouco, salvo melhor opinião, o referido despacho especificou adequadamente os fundamentos de facto e de direito que justificam tal decisão, sendo, por isso e desde logo, nulo ao abrigo do disposto na alínea b) do número 1 do artigo 571º do CPC.
XX. Como se sabe, nos termos do artigo 1.174º do CC, “A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida, e deve constar de documento escrito nos casos restantes”.
XXI. Ora, salvo mais douta opinião, da alegada transacção celebrada pelo A. e pela R. não derivou, nem era suposto derivar, qualquer efeito para o qual escritura pública seja exigida.
XXII. Por outro lado, não se vê como é que pode entender-se que o referido negócio não consta de documento escrito, pois o Doe, n.º 1 junto à Contestação, que corporiza o acordo celebrado entre A. e R. (quer se entenda que este se trata de uma transacção, de uma remissão, ou de um instrumento ou documento de quitação ou de reconhecimento negativo de dívida), é indiscutivelmente um documento escrito.
XXIII. Neste contexto, o douto despacho recorrido interpretou e aplicou erradamente os artigos 1.174º e 212º do CC, e é nulo por falta de fundamentação na parte que respeita à falta de forma da transacção, devendo ser revogado por V. Exas. em conformidade.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V.Exas douta mente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão Recorrida cm conformidade, fazendo-se, mais uma vez, a habitual JUSTIÇA.
A autora, respondeu aos recursos (sem formulação de alegações), nos termos que aqui damos por reproduzidos.
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O processo prosseguiu os seus termos, vindo a ser proferida sentença de procedência parcial da acção e, em consequência, de condenação da ré STDM no pagamento à autora de Mop$ 382.517,54 e juros respectivos.
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É dessa sentença que a ré se insurge em novo recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
A) Constatam-se a fls. 434, a fls. 436 e (consequentemente) a fls. 436v e 437, erros materiais - puramente matemáticos ou, crê-se, de escrita - os quais devem ser rectificados.
B) Assim, requer-se a V. Exas. seja rectificado o erro material de escrita que consta da tabela reproduzida a fls. 434, substituindo-se o valor que consta na terceira linha da 4.ª coluna por “28.423,20” (em vez do actual 28.423,00), mantendo-se o total a final como “580.063,80”.
C) Caso assim não se entenda, requer-se a V. Exas., em alternativa, seja rectificado o erro material de cálculo que consta da tabela reproduzida a fls. 434, substituindo-se o valor que consta na última linha da 4.ª coluna por “580.063,60” (em vez do actual 580.063,80).
D) Por outro lado, requer-se a V. Exas. seja rectificado o erro material que consta da tabela reproduzida a fls. 436, substituindo-se o valor que consta na quinta linha da 4.ª coluna por “4.982,40” (em vez de 4.982,00), mantendo-se o total a final como “43.719,20”.
E) Caso assim não se entenda, requer-se a V. Exas., em alternativa, seja rectificado o erro material de cálculo que consta da tabela reproduzida a fls. 436, substituindo-se o valor que consta na última linha da 4.ª coluna por “43.718,80” (em vez do actual 43.719,20).
F) Na eventualidade de se optar por rectificar o valor do total da indemnização devida pelo não gozo de feriados obrigatórios remunerados para “43.718,80”, deverão ser rectificados os lapsos materiais que ficarão, em consequência, a constar de fls. 436v e 437.
G) Na Contestação, a ora Recorrente deduziu excepção peremptória relativa ao pagamento (ou cumprimento) e remissão de todos os créditos invocados pela ora Recorrida, a qual foi apreciada pelo Tribunal a quo no Despacho Saneador de fls. 302 e ss. e nele integralmente julgada improcedente, decisão da qual se interpôs recurso interlocutório.
H) De fls. 436v resulta que o Tribunal a quo tomou decisão contrária sobre a invocada excepção de pagamento e determinou que devia ser deduzido ao total apurado para a indemnização devida à ora Recorrida a quantia de MOP$39.710,16.
I) Aquando da prolação do despacho de fls. 302 e ss., esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal a quo na questão em causa, por já ter sido apreciada e decidida, não podendo, pois, vir a ser alterada pelo mesmo Tribunal a quo através da Sentença.
J) Estando esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo nos termos do disposto no n.º 1 do art. 569.º do cód. proc. civ., a Sentença recorrida é nula nesta parte, devendo a mesma ser assim declarada (cfr. al d) do n.º 1 do art. 571.º do cód. proc. civ.).
K) Em qualquer caso, o Tribunal a quo deveria ter qualificado a declaração da ora Recorrida como um acordo de remissão de créditos ou, em alternativa, como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, o que importaria a absolvição integral da ora Recorrente do pedido, o que se reitera a V. Exas..
L) A retribuição caracteriza-se por quatro elementos essenciais e cumulativos, a saber:
(i) é uma prestação regular e periódica;
(ii) realizada em dinheiro ou em espécie;
(iii) a que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal; e
(iv) como contrapartida do seu trabalho.
M) As gratificações suportadas por terceiros (e não pela entidade empregadora) não constituem o salário ou a retribuição de um trabalhador porquanto não correspondem a um dever jurídico da entidade patronal perante o trabalhador, mas sim a uma prestação efectuada por um terceiro.
N) As gorjetas eram (e são) gratificações dadas pelos clientes aos trabalhadores da ora Recorrente “para partilhar na alegria dos ganhos conseguidos” (cfr. refere a Sentença a fls. 429), sendo óbvio que a ora Recorrente não pode ser obrigada a substituir-se ao Cliente quando este não dá uma gorjeta ou dá uma gorjeta menor.
O) Aliás, um trabalhador não pode exigir judicialmente à sua entidade empregadora o pagamento de gorjetas quando esse pagamento não ocorra voluntariamente.
P) “Dar gorjetas” não cabe (nem pode caber) à ora Recorrente, não se enquadrando tal prestação na relação sinalagmática típica de um contrato de trabalho.
Q) O pagamento de gorjetas não tem, consequentemente, carácter de obrigatoriedade, mas sim uma natureza eventual.
R) Estando em causa nos autos gorjetas comprovadamente oferecidas por terceiros, dependendo o seu recebimento do animus donandi desses terceiros, aos quais a ora Recorrente é alheia e que são estranhos à relação jurídico-laboral estabelecida entre A. e R., só se pode entender que tais quantias não constituem salário.
S) Resultou provado nos autos que a intervenção que a ora Recorrente tinha relativamente às gorjetas percebidas se resumia a reunir, contabilizar e distribuir o respectivo valor pelos trabalhadores, sendo que “não havia liberdade por parte da Ré em decidir pela não distribuição das mesmas pelos seus trabalhadores” (cfr. Sentença a fls. 428).
T) A ora Recorrente nada mais era do que uma mera intermediária, que se limitava a gerir o dinheiro das gorjetas e a criar as linhas orientadoras para a sua distribuição pelos trabalhadores e o simples facto de haver um processo de distribuição das gorjetas definido pela ora Recorrente - quando não existe um procedimento definido por lei - não pode implicar a descaracterização das gorjetas enquanto tal.
U) Vinga, pois, a posição defendida pelo Tribunal de Última Instância da RAEM que determina que “ (...) de acordo com o bom direito, as gorjetas recebidas pelos empregados de casino, em Macau, não fazem parte do salário (...) ”.
V) Conforme escreve Monteiro Fernandes, há “ (...) que distinguir entre as unidades de cálculo da retribuição e os seus períodos de pagamento (o salário pode ser determinado com base no dia ou na semana, mas pago somente ao final de cada mês). (...) Significa isto que a retribuição pode ser estipulada com base na hora ou no dia de trabalho e, no entanto, vencer-se - ou seja, tomar-se exigível - somente de semana a semana ou de mês a mes (...) ”.
W) A ora Recorrente e a ora Recorrida, ao celebrarem o contrato de trabalho em causa nos autos, quiseram que a remuneração correspondesse a uma quantia diária, devida apenas por cada dia de trabalho efectivo, ainda que fosse paga com uma periodicidade diferente.
X) Tendo-se provado nos autos que a ora Recorrida era remunerada ao dia, não pode concluir-se, como faz o Tribunal a quo, que a ora Recorrida era remunerada ao mês.
Y) A decisão recorrida, neste aspecto, foi proferida contra os factos que o Tribunal a quo deu como provados e, em consequência, em violação do disposto no n.º 3 do art. 562.º do cód. proc. civ..
Z) Nem a Lei Básica nem o cód. civ. consagram a irrenunciabilidade de qualquer direito, excepto o direito à vida.
AA) O RJRTCT não refere a irrenunciabilidade do gozo de dias de descanso, permitindo até ao trabalhador que, voluntariamente, abdique do gozo desses dias para neles trabalhar e o art. 69.º do cód. civ. dispõe que é válida e eficaz a limitação voluntária de direitos de personalidade se não disser respeito a interesses indisponíveis.
BB) Permitindo a lei a prestação voluntária de trabalho durante os dias de descanso e não tendo o legislador voluntaria e propositadamente consagrado a irrenunciabilidade dos direitos em questão, é manifesto que o direito ao gozo de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios é um direito de que o trabalhador pode livremente renunciar e dispor, devendo ser considerada eficaz qualquer limitação voluntária do mesmo.
CC) Sendo o próprio legislador a permitir que um trabalhador não goze de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, não se pode entender que o exercício de tal “direito de não gozo” ou “renúncia ao gozo” é contrário à ordem pública.
DD) Assim sendo, é válida a renúncia da ora Recorrida ao gozo e compensação de dias de descanso, tendo andado mal o Tribunal a quo ao entender o contrário, aplicando incorrectamente a lei.
EE) Acresce que, não constituindo a “compensação especial” pelo não gozo de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios um crédito salarial - por não constituir salário nos termos da lei - o direito ao seu eventual recebimento é passível de renúncia.
FF) Logo, a ora Recorrida validamente renunciou à remuneração devida pelos dias de descanso gozados e, bem assim, à compensação adicional devida pelo seu não gozo, tendo andado mal o Tribunal a quo ao entender o contrário e aplicado erradamente a lei.
GG) Por cautela de patrocínio e na hipótese, que apenas como tal se concebe, sem de forma alguma se conceder, de a ora Recorrente vir a ser condenada, a final, no pagamento de uma indemnização à ora Recorrida, devem ser as seguintes as fórmulas aplicadas para aferir das eventuais compensações adicionais devidas:
a) Trabalho prestado em dias de descanso semanal:
i. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0;
ii. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1;
iii. Decr7to-Lei n.º 32/90/M: salário diário x0;
b) Trabalho prestado em dias de descanso anual:
i. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0;
ii. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x0; e
iii. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x0;
c) Trabalho prestado em dia feriado obrigatório:
i. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0;
ii. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1;
iii. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x1.
HH) Caso se entenda que as fórmulas supra expostas não devem ser as adoptadas para o cálculo de uma eventual indemnização devida à ora Recorrida, remete-se para as utilizadas nos Acórdãos do Tribunal de Última Instância proferidos no âmbito dos Processos n.º 28/2007, 29/2007, 58/2007, 46/2011 e 47/2011, datados de 21.9.2007, 22.11.2007, 27.2.2008 e, os dois últimos, de 23.9.2011.
II) Em qualquer caso, deve a Sentença recorrida ser revogada quanto à condenação nos juros, por conter decisão contrária à jurisprudência obrigatória estabelecida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 69/2010 proferido pelo TUI em 02.03.2011 e publicado a pp. 1046-1050 no Boletim Oficial n.º 12/2011, de 21.03.2011, substituindo-se por decisão que contemple a condenação da ora Recorrida no pagamento dos juros legais calculados pela forma decidida pelo TUI no seu acórdão de 2/03/2011, no Processo nº 69/2010.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a decisão recorrida em conformidade, fazendo-se, mais uma vez, a habitual JUSTIÇA!
*
Não houve contra-alegações.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- Entre a A. e a R. foi estabelecida uma relação em 11 de Março de 1991 (alínea A) dos factos assentes).
- Ao gozo de dias de descanso pela A. não corresponderia qualquer remuneração (alínea B) dos factos assentes).
- A distribuição das gorjetas cabia à Ré (alínea C) dos factos assentes).
- A A. prestou serviços em turnos, conforme os horários fixados pela R. de seguinte (alínea D) dos factos assentes).
1. 1º e 6º turnos: das 07H00 até 11H00, e das 03H00 até 07H00;
2. 3º e 5º turnos: das 15H00 até 19H00, e das 23H00 até 03H00 do dia seguinte;
3. 2º e 4º turnos: das 11H00 até 15H00, e das 19H00 até 23H00.
- A A. recebeu da R. uma quantia de MOP$26.473,44 e de MOP$13.236,72, para compensação de eventuais direitos relativos a descansos semanais e anuais, feriados obrigatório, licença de maternidade e rescisão entre o A. e a R. (alínea E) dos factos assentes).
Da Base Instrutória:
- A relação referida em A) dos factos assentes cessou em 12 de Julho de 2002 (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Dessa relação, a A. recebia um quantia fixa (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- E recebia ainda uma outra parte variável proveniente das gorjetas (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- As gorjetas eram provenientes do dinheiro dado pelos clientes dos casinos da R. (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- As gorjetas eram distribuídas pelos trabalhadores pela R., independentemente do local de trabalho em que se encontravam (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O rendimentos efectivamente recebidos pela A. da R. entre os anos de 1991 a 2001 eram de (resposta ao quesito da 6º da base instrutória);
• MOP$46.864,00 em 1991;
• MOP$56.748,00 em 1992;
• MOP$66.502,00 em 1993;
• MOP$133.592,00 em 1994;
• MOP$151.556,00 em 1995;
• MOP$162.916,00 em 1996;
• MOP$174.590,00 em 1997;
• MOP$102.121,00 em 1998;
• MOP$129.253,00 em 1999;
• MOP$157.830,00 em 2000;
• MOP$175.471,00 em 2001.
- A contabilização do quantitativo das gorjetas entregues pelos clientes aos trabalhadores da Ré era feita diariamente por esta e por uma comissão composta por um funcionário do Departamento da Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar; um membro do Departamento da Tesouraria da Ré; um gerente de andar e mais uma trabalhador das mesas de jogo (resposta aos quesitos das 7º e 16º da base instrutória).
- Desde o início até a cessação da relação, a Autora não gozou um período de descanso consecutivo de 24 horas em cada período de 7 dias, sem perda do respectivo rendimento (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- A Autora não gozou 6 dias de descanso anual sem perda do respectivo rendimento (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- Desde o início da relação até à data da cessação, a Autora não gozou descansar nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 1 de Outubro, durante três dias no Ano Novo Chinês, tendo a Autora trabalhando nesses dias (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- Sem que a R. tivesse proporcionada qualquer compensação salarial à A. (resposta ao quesito da 11 º da base instrutória).
- Nem compensado com outro dia de descanso (resposta ao quesito da 12º da base instrutória).
- A A. tinha o direito de pedir licença, mas na duração da licença era sem remuneração (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- A quantia fixa era de MOP$10,00, e posteriormente de MOP$15,00 (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- A A. trabalhou e apresentou-se ao serviço da R. porque quis auferir o rendimento corresponderia a tais dias (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- A Autora aceitou que a retribuição seria paga à razão diária, pelos dias em que fosse efectivamente prestado trabalho (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
- E aceitou que caso pretendesse gozar de descanso, tais dias não seriam retribuídos (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
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III - O Direito
1- Recursos do despacho saneador
1.1- Da reconvenção
A STDM insurge-se contra o saneador na parte em que nele foi decidido não admitir a reconvenção nos termos do art. 17º do CPT.
Ora, este artigo estabelece os requisitos substantivos e adjectivos de admissibilidade da reconvenção no âmbito dos processos laborais. Vejamos os substantivos.
Será admissível quando:
1- O pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
2- O réu se propõe obter a compensação;
3- Entre o pedido do réu e a relação material subjacente à acção exista subsidiariedade, complementaridade ou dependência.
Todavia, e tal como o despacho sob censura asseverou, não estamos perante nenhum dos requisitos ali previstos. Em primeiro lugar, o pedido da ré reconvinte não emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à acção. Efectivamente, a acção decorre alegadamente da omissão de obrigações legais aplicáveis a uma relação contratual, enquanto o pedido reconvencional assenta num alegado enriquecimento ilícito por parte da autora. Planos jurídicos distintos e diferentes bases fundamentativas, portanto.
Claramente também não podemos dizer que a ré pretende obter a compensação, uma vez que esta figura tem por pressuposto um cruzamento/reciprocidade de créditos ou uma oposição de direitos creditícios com um saldo favorável a uma das partes. Ora, o que a ré pede não é o reconhecimento e a consequente satisfação de nenhum crédito contra a autora-credora, mas sim a devolução de importâncias que a esta havia entregue. Mas os argumentos utilizados pela ré para a pretensão que formula, que se limitam a entrar em rota de colisão com a pretensão da autora, só acentuam a vertente exceptiva de que tais importâncias não devem fazer parte do salário; e nesse sentido é questão que pode ser, e é conhecida, enquanto parte integrante do núcleo do mérito substantivo da acção.
O que acaba de dizer-se conflui para a apreciação do último dos requisitos (nº3). Vistas as coisas pelo prisma acabado de referir, não se pode dizer que seja acessória, complementar ou dependente a relação material subjacente relativamente ao pedido da causa principal. Se tomarmos como referência a doutrina que emerge do Ac. do STJ de 22/11/2006, Proc. nº 06S1822, logo se torna patente que o caso não se assemelha à hipótese da norma. Na verdade, nenhuma daquelas características (acessoriedade, complementaridade e dependência) se verifica nas hipóteses em que a um pedido do autor é contraposto um pedido conflituante do réu assente numa questão autónoma. No caso, o que moveu a autora foi o não gozo de dias de descanso contemplados na lei com uma especial remuneração (portanto, violação da legislação laboral), em cujo cálculo a impetrante inclui as gorjetas; o que move a ré reconvinte é a devolução de somas de dinheiro de gorjetas que havia, admitamos por facilidade de raciocínio e exposição, “dado” (a título de liberalidade) ou “pago” (a título de remuneração). Mas a verdade é que, fosse a que título fosse, essa questão - se até poderia relevar em sede de abuso de direito, na medida em que a reconvinte age agora por causa de atitude que livremente tomou (o que pode configurar venire contra factum proprium: Ac. STJ de 17/04/2008, Proc. nº 07S4747) – é estudada na perspectiva do mérito da acção. E quando os fundamentos em que os pedidos da acção e da reconvenção são completamente diferentes, como é o caso, a jurisprudência é unânime em não admitir a segunda (a título de exemplo Ac. do STJ de 19/01/2011, 557/06.2TTPRT.P1.S1).
Razão para não se fazer qualquer censura ao saneador, e concluir pela improcedência do recurso (neste mesmo sentido, v.g., Ac. deste TSI de 28/07/2011, Proc. nº 537/2010;2/02/2012, Proc. nº 629/2012).
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1.2- Da remissão
A ré, na sua contestação, tinha invocado a existência de uma declaração em que a autora, dizendo ter recebido a quantia de Mop$ 26.473,44, se achava compensada dos direitos aos descansos semanais, anuais e feriados. Além disso, ainda invocou uma outra declaração de quitação assinada pela autora na DSAL no valor de Mop$ 13.236,72. Razão para entender a ora recorrente que nada mais devia à autora da acção.
Esta defesa exceptiva não foi considerada no despacho saneador, uma vez que tomou as declarações como transacção ferida de nulidade, à luz do art. 212º do CC.
Vejamos.
Este tema tem sido objecto de inúmeras decisões deste mesmo TSI, e não vemos motivo para alterar o rumo do sentido da jurisprudência produzida. Veja-se, por exemplo, o que se asseverou no acórdão datado de 29/09/2011, no Proc. nº 11/2011, o qual por nós foi subscrito como adjunto do relator e que aqui de novo reiteramos:
“ …Pretende o recorrente que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
E para tanto invoca a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
Não tem razão o recorrente.
Não obstante ser verdade o que diz quanto à enunciação daqueles princípios, a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL, no seu art. 1°, pugnando pela “observância dos condicionalismos mínimos” nele estabelecidos, prevê que
“O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T.
“O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como acontece no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
(…) Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e ignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.”, poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável “...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas”
Noutra perspectiva, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
(…) Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL “São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostra cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.
(…) É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação. Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida ao Autor e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que o A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
(…) Somos assim, face à caracterização jurídica do acordo celebrado, em considerar que a alegação sobre a vaguidade da declaração de reconhecimento de cumprimento e extinção de toda e qualquer prestação que fosse porventura devida não colhe, face à sua admissibilidade.
Para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, dando-se quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
(…) Sobre a eventual situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não tomou uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, face à continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Ou, noutra perspectiva numa situação de coacção moral ou de negócio usurário contemplados nos artigos 240º e 275º do CC.
Trata-se de matéria não comprovada.
(…) Como por tudo quanto se vem dizendo não há elementos que possam fundamentar um enquadramento em termos de tal declaração ter sido assinada com base em erro sobre a base do negócio ou em qualquer outro erro ou afectação de uma vontade negocial livre e esclarecida”.
O conjunto de argumentos ali expendidos serve perfeitamente para o caso que nos ocupa e, por isso, dele aqui nos apropriamos para rechaçar a tese da decisão recorrida.
De resto o mesmo assunto foi já abordado expressamente no TUI, no acórdão lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ:
“Relacionada com a irredutibilidade encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a for de composição do salário (questão que haveria de discutir-se no recurso da sentença final), sem que isso represente qualquer cedência do crédito do seu salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator também fora relator ou adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011; 317/2010, de 6/10/2011. Ainda os arestos de 12/2011, Proc. nº 1014/2010; 9/02/2012, Proc. nº 124/2011 e de 19/04/2012, Proc. nº 192/2011; 7/06/2012, Proc. nº 44/2012.
Quer isto dizer, portanto, que a posição do saneador não merece acolhimento. O que, por outras palavras, significa que o recurso interposto pela STDM nesta parte deve ser procedente.
*
Mas, sendo isto assim, fica prejudicado, por inútil, o recurso da sentença interposto pela STDM.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1 - Negar provimento ao 1º recurso do despacho saneador na parte referente à reconvenção.
Custas pela recorrente com taxa de justiça 3 UC.
2 – Conceder provimento ao 2º recurso do despacho saneador na parte referente à remissão da dívida, em consequência do que:
2.a) - Revogamos o saneador nessa parte; e
2.b) – Julgamos procedente a excepção peremptória invocada e, por tal razão, revogamos a sentença final e absolvemos totalmente a ré do pedido;
Custas pela autora em ambas as instâncias.
TSI, 19 / 07 / 2012
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong
(Vencido nos termos da declaração de voto)
Processo nº 218/2012
Declaração de voto de vencido
Vencido por razões expostas na declaração de voto de vencido que juntei aos Acórdãos tirados nos processos nºs 68/2010, 476/2010, 1009/2010 e 330/2011.
RAEM, aos 19JUL2012
O juiz adjunto
Lai Kin Hong