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Processo nº 530/2010


Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I

B, S.A., devidamente identificada nos autos, instaurou no Tribunal Judicial de Base acção de despejo, contra a sociedade denominada Restaurante de C, devidamente identificado nos autos.

Citada a Ré, contestou impugnando a acção contra ela intentada e deduziu pedido reconvencional.

Notificada da contestação e do pedido reconvencional, veio a Autora arguir a nulidade por ineptidão da reconvenção.

Proferido o despacho saneador, pelo qual, inter alia, foi admitido o pedido reconvencional.

Inconformada com essa decisão que admitiu o pedido reconvencional, veio a Autora interpor o recurso interlocutório, concluindo e pedindo que:

  C. CONCLUSÕES
  I) Vem o presente recurso interposto do despacho de fls 412, na parte em que não se pronuncia sobre a ineptidão do pedido reconvencional, gerador de nulidade, tal como alegado na réplica pela Autora/Reconvinda, ora Recorrente, e bem assim, relativamente à própria admissão desse mesmo pedido reconvencional, tudo nos termos em que melhor consta da decisão recorrida;
  II) A Recorrente invocou expressamente na Réplica, com base na falta de alegação de causa de pedir, a ineptidão da petição reconvencional, nos termos do artigo 139° do Código de Processo Civil (diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem);
  III) Ao abrigo do disposto no artigo 139° “ é nulo todo o processo quando foi inepta a petição inicial”. e da nulidade “pode o tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas [. . .]” (cfr artigo 148°), devendo aquele vício ser arguido “até à contestação ou nesse articulado” (cfr. artigo 150°);
  IV) Uma vez que a Recorrente invocou expressamente a nulidade do processo decorrente da ineptidão da petição reconvencional, por falta de indicação da causa de pedir o Tribunal recorrido teria obrigatoriamente de apreciar o vício no despacho saneador, se antes o Juiz a não tiver apreciado, tudo ao abrigo do disposto no n° 2 do artigo 152°;
  V) É no despacho saneador que o Mm Juiz deve conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que tenham sido suscitadas pelas partes (artigo 429°);
  VI) O Mmº Juiz a quo não só não apreciou a suscitada questão como admitiu a reconvenção, sem se pronunciar sobre a ineptidão da petição reconvencional e consequente nulidade;
  VII) A nulidade de todo o processo ser excepção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr artigo 412° e 413°);
  VIII) O Tribunal recorrido não podia ter deixado de se pronunciar sobre a questão da ineptidão da petição reconvencional, que expressamente foi colocada à sua apreciação, tanto mais porque tal questão respeita necessariamente à procedência ou improcedência de uma excepção dilatória;
  IX) Face à inexistência notória desses factos que sustentem os pedidos formulados pela Ré/Reconvinte, nunca a reconvenção poderia ser admitida;
  X) Nada é alegado pela Ré/Reconvinte que se refira às benfeitorias que possa ter feito no locado e pelas quais pede uma indemnização no valor de MOP$ 4,187,100.00 pelo que estamos face a ausência total da causa de pedir, do mesmo modo inexistem factos que fundamentem as peticionadas quantias de MOP$497.761.40 e de MOP$933,451.00;
  XI) Nesta parte nunca poderia a reconvençao ter sido admitida porquanto nos termos do disposto no artigo 932° tendo sido peticionado direito a benfeitorias, não obstante a invocada inexistência de causa de pedir, não pode vir peticionar outra indemnização;
  XII) O Tribunal a quo estava em condições de apreciar e julgar a questão da ineptidão da petição reconvencional, e da nulidade resultante da referida ineptidão, como estava obrigado a fazê-lo, porquanto tal lhe é imposto pelos artigos 148°, 150°, n° 1, 152°, n° 2, 429°, n° 1, alínea a), 571°, n° 1, alínea d) ex vi 569°, n° 3 e 563°, n° 2, todos do Código de Processo Civil;
  XIII) No despacho saneador nada foi dito sobre a ineptidão da petição inicial pelo que o referido despacho deverá ser declarado nulo por falta de pronúncia, tudo nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 571° ex vi nº 3 do artigo 569°.
Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente ser revogado o despacho ora recorrido, substituindo-se por outro que aprecie a questão da nulidade processual resultante da ineptidão da petição reconvencional,
Assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!

Notificada a Autora, respondeu pugnando pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso e fixado a ele o regime de subida diferida, continuou a marcha processual na sua tramitação normal, e vieram a final ser a acção e o pedido reconvencional julgados parcialmente improcedentes.

Inconformada com a decisão final na parte que condenou a pagar ao Réu as despesas dispendidas com as obras de decoração efectuadas no imóvel, cujo montante será liquidado na execução de sentença, a Autora recorreu e apresentou as alegações constantes das fls. 594 a 615 dos p. autos.

Ao que respondeu a Ré pugnando pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




II

O recurso interlocutório

Então começamos a debruçarmos sobre o recurso interlocutório.

A fim de nos fazer inteirar do que foi alegado pela Ré para sustentar o seu pedido reconvencional, transcrevemos a seguir o seguinte segmento da contestação-reconvenção deduzida pela Ré:

EM RECONVENÇÃO:
32°
Como acima já se referiu, e agora se passa a concretizar, a R. assinou de boa fé a “letter of offer”.
33°
Presumiu que a referida "promessa de arrendamento" de um espaço comercial, num novo local de Macau, seria o ideal para a abertura de um restaurante de luxo Tailândes que poderia dar uma boa imagem a Macau, aumentar o número de visitantes que se deslocassem ao B e trazer contrapartidas económicas para a R.
34°
Foi com entusiasmo e boa fé que a R. assinou tal contrato e pagou o depósito à A. no montante de MOP$497.761,40.
35°
Para além de que se dispôs, imediatamente, a arranjar os melhores materiais e operários para proceder à decoração do espaço comercial.
36°
Nesse sentido gastou, em decoração e equipamentos diversos, o montante de MOP$4.187.100,00, tudo como se comprova pelas fotografias que ora se juntam aos autos e pelos recibos que se protestam juntar. (docs. nº 22 a 35)
37°
Acresce que, num esforço para conseguir ter o restaurante pronto a abrir as suas portas ao público e poder obter as necessárias licenças por parte da Direcção dos Serviços de Turismo, bem como as autorizações para a importação de trabalhadores tailandeses não residentes, a R. viu-se forçada a contratar chefes de cozinha e pessoal especializado desse pais e trazê-los de imediato para Macau.
38º
Esta situação implicou a realização de despesas com viagens, alojamento, alimentação e salários, as quais ascenderam a MOP$933.451,29, (conforme documentos que se protestam juntar)
39°
Uma vez que se verifica que a A. pretende obter a entrega das lojas e não se dispõe a arrendar o local à R., esta deverá ser compensada por todas as despesas que, de boa fé fez, confiante no futuro contrato de arrendamento, na boa fé e diligência da A. e no sucesso do projecto comercial.
40°
Motivo porque pretende ser ressarcida da quantia total dispendida que ascendeu a MOP$5.618.312,69.
41°
De acordo com o disposto no artO 208º do Código Civil consideram-se benfeitorias úteis as obras realizadas pela R., uma vez que vieram aumentar o valor das lojas e possibilitar a abertura imediata de um restaurante de luxo no local.
42°
De acordo com o artO 932° do C.P.C. a R. pode deduzir, em reconvenção, o seu direito a benfeitorias e a uma indemnização.
43°
Relativamente a benfeitorias a R. reclama, como acima melhor se explicou o montante de MOP$4.187.100,00.
44°
E reclama também a título de indemnização, os montantes de MOP$497.761,40 entregue a título de depósito e o de MOP$933.451,29 pago aos trabalhadores, a título de viagens, alimentação, salários e alojamento.
Nestes termos e nos mais de Direito que forem por V. Exa devidamente supridos deverá a presente acção ser julgada improcedente por não provada e a R. ser absolvida do pedido e, ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional da R., condenando-se a A. a pagar à R, os seguintes montantes:
a)MOP$497.761,40, referente ao depósito pago à A. na data da entrega das lojas;
b)MOP$933.451,29 pago aos trabalhadores, a título de viagens, alimentação, salários e alojamento.
c)MOP$4.187.100,00, dispendido em obras de decoração do restaurante e correspondentes equipamentos;
d)pagar juros legais sobre estas quantias desde a data constante nos recibos e até efectivo e integral pagamento;
e)pagar custas e demais despesas relacionadas com a presente acção.
Para tanto, requer-se a V. Exa se digne notificar a A. para contestar querendo o pedido reconvencional, no prazo e sob a cominação legal.
  Valor do pedido reconvencional: 5.618,312,69.

Em face do assim alegado e pedido na contestação-reconvenção e da nulidade por ineptidão entretanto invocada pela Autora, a Exmª Juiz titular do processo decidiu que “ao abrigo do disposto no artº 218º, nº 2, al. b) do Código de Processo Civil, admito o pedido reconvencional”.

Como a Autora, por via de recurso, tanto impugnou a legalidade dessa decisão como arguiru a nulidade dessa decisão que se não pronunciou sobre a nulidade por ineptidão expressamente invocada por ela na réplica, este Tribunal de recurso fica habilitado a reapreciar a questão da invocada ineptidão por forma a rever a decisão recorrida em vista a confirmá-a ou revogá-la, quer por força do efeito devolutivo inerente a qualquer recurso, quer pela regra de substituição prevista no artº 630º/1 e 2 do CPC.

Entao debrucemo-nos sobre o teor da reconvenção.

Verifica-se que, para além do pedido relativo a juros e despesas e custas da acção, a Ré formulou ao todo três pedidos na reconvenção, quais são:

1. a condenação da Autora a pagar-lhe o montante de MOP$497.761,40, referente ao depósito pago à Autora na data da entrega das lojas;

2. a condenação da Autora a pagar-lhe o montante de MOP$933.451,29, pago aos trabalhadores, a título de viagem, alimentação, salários e alojamento; e

3. a condenação da Autora a pagar-lhe o montante de MOP$4.187.100,00, dispendido em obras de decoração do restaurante e correspondentes equipamentos.


Ora, dando uma vista de olhos ao teor do pedido reconvencional deduzido pela Ré, a fls. 90 a 94, ora integralmente transcrito supra, salta à vista que não foi cumprido pela Ré o ónus de alegar factos constitutivos dos direitos reivindicados.

Além de se lançar mãos a expressões conclusivas ou de direito, a Ré limitou-se a remeter para os documentos entretanto juntos com a contestação e os a juntar mais tarde.

Interesse saber portanto se a simples junção de documentos tem a virtualidade de dispensar o autor ou o réu-reconvinte do seu ónus de alegar a causa de pedir.

Ora, como se sabe, ao autor cabe formular a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e expor as razões de facto e de direito em que a fundmenta (artºs 5º/1 e 389º/1-c) do CPC) e sobre o réu recai o ónus de impugnação específica dos factos articulados na petição pelo autor (artº 410º/1 do CPC) .

Na matéria de facto, o juiz tem de cingir-se às alegações das partes, ao passo que na indagação, interpretação e aplicação do direito o tribunal age livremente (artº 567º do CPC).

É verdade que doutrina existe aceitando como forma válida de contestação a simples junção de documento.

No que respeitante às formas admissíveis de contestação pelo réu, o Saudoso Prof. Antunes Varela chegou a distinguir entre elas a contestação articulada, a contestação por negação e a contestação por mera junção de documento - cf. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª ed. Rev. e Act., pág. 285 e s.s.

A propósito dessa última que nos interesse agora, o Mestre ensina que:

“A contestação por simples junção de documentos assenta no puro oferecimento real da prova documental, desacompanhada de qualquer alegação escrita sobre os próprios factos a que o documento se refere. Não é mencionada nos textos legais, mas cabe sem dúvida no espírito da lei, como forma válida de contestação.
A mera junção de documento comprovativo de um pagamento, de uma renúncia, de uma revogação ou de outro acto jurídico, pode bem constituir um meio concludente de contrariar um facto articulado pelo autor, não mero expressivo do que a alegação do facto em contestação articulada. Um sistema processual como o português, mais empenhado na descoberta da verdade dos factos do que na observância dos puros ritos de forma, não pode recusar in limine tal forma de contestação.
Se numa acção de condenação, o réu se limita a requerer a junção aos autos do documento comprovativo do pagamento, remissão, novação ou compensação da dívida cuja cobrança lhe é exigida, não será lícito ao juiz ignorar a contrariedade dos factos articulados pelo autor, de que ele deve conhecer ex officio, nem será lícito duvidar do animus compensandi (art. 848º do Cód. Civil) do réu, no caso de o documento se referir a uma dívida compensatória.” – cf. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª ed. Rev. e Act., pág. 287 e 288.

Todavia, não encontramos quer texto legal quer doutrina em paralelo no sentido de defender a simples junção do documento é forma válida para o autor expor razões de facto como causa de pedir.

Compreende-se a admissibilidade da simples junção de documentos como forma válida da contestação e não também forma válida para expor razões de facto que constituem causa de pedir, uma vez que ao autor cabe a tarefa de mencionar os factos concretos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido, por isso esses factos hão de ser articulados ponto a ponto de modo a que o tribunal possa inteirar-se da causa de pedir, ao passo que a função duma contestação-defesa se limita a repelir a pretensão do autor, negando de frente os factos já articulados pelo autor ou sem afastar a realidade desses factos, contradizendo o efeito jurídico que o autor pretende extrair dele, ou seja, repelir a pretensão do autor dentro de um contexto já traçado por factos concretamente articulados na petição.

Cremos que é por causa disso que o autor não pode substituir a exposição das razões de facto pela mera junção de documentos.

Portanto, in casu, por falta dos factos articulados pela Ré reconvinte no que diz respeito aos direitos por ela reivindicados, o tribunal não pode lançar mão aos simples documentos e fotografias juntos aos autos, para formar a base fáctica em que se fundamenta a decisão de direito.

O que equivale à falta de causa de pedir.

Quando falte a causa de pedir, a reconvenção é inepta.

Consequentemente deve ser absolvida da instância a Autora.

E é nulo todo o processado e decidido após a dedução da reconvenção.

O recurso da sentença final

Face ao decidido no recurso interlocutório, fica prejudicado o conhecimento do recurso da sentença final que tem por objecto a procedência parcial do pedido reconvencional da Ré, justamente por inutilidade superveniente.

Tudo visto resta decidir.

III

Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso interlocutório da Autora, absolvendo a Autora da instância do pedido reconvencional, e não conhecer o recurso da sentença, por inutilidade superveniente.


Custas pela Ré.

RAEM, 19JUL2012



Relator
Lai Kin Hong

Primeiro Juiz-Adjunto
Choi Mou Pan

Segundo Juiz-Adjunto
João A. G. Gil de Oliveira (vencido, porque entendo que as verbas que integram o pedido reconvencional ainda se encontram minimamente descriminadas e referenciadas, acompanhadas como vêm com os documentos juntos)


Ac. 530/2010-1