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Processo nº 195/2010
Data do Acórdão: 25OUT2012


Assuntos:

Acidente de viação
Abandono de sinistrado
Direito de regresso


SUMÁRIO

O direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 195/2010


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV3-09-0043-CAO, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

I. RELATÓRIO
  A, S.A., pessoa colectiva matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 1691, com sede em Macau, na Avenida da Praia Grande, n.º 594, Edifício BCM, 11º andar,
  veio intentar
Acção Declarativa de Condenação
Com Processo Ordinário
  contra
  B, casado, residente em Macau, na Rua XX, n.º X, XX,
    Alegou nomeadamente que:
- Correu termos pelo 1º Juízo Criminal desse Distinto Tribunal o Processo Comum Colectivo registado sob o n.º CR1-05-0213-PCC no âmbito do qual foi discutido um acidente de viação ocorrido em 15 de Agosto de 2001 em que foi interveniente o ora réu, B, na qualidade de condutor do automóvel ligeiro de matrícula M-XXXX (táxi), e a peã C.
  - Nos termos da douta sentença proferida nos referidos autos de que se junta certidão e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais ficaram provados os seguintes factos que, nesta sede, nos propomos transcrever de seguida (em língua portuguesa):
   - "No dia 15 de Agosto de 2001, por volta das 21h00, o arguido B conduzia o táxi de matricula M-XXXX, circulando pela Avenida da Ponte de Amizade. Ao chegar perto do edifício XXX sito na Rua XXX, embateu com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, na menina C (ofendida, cuja identificação consta a fls. 8). Após o embate, C, que estava a atravessar a rua, caiu no chão e correu sangue na boca.
  - Após o acidente, o arguido parou logo o táxi e aproximou-se da vítima, pedindo-lhe para sentar no táxi. A vítima julgou que o arguido podia levá-la para tratamento no Hospital, pelo que entrou no táxi.
  - Em seguida, o arguido conduziu o táxi de modo a ausentar-se do local do acidente, circulou naquela zona mas não levou a vítima para receber tratamento em qualquer hospital. No fim, deixou a vítima na área perto do teatro Pak Lok e foi-se embora sozinho.
  - A vítima voltou sozinha para casa (sita na Rua XXX, Edifício XXX, Bloco X, X°. Andar X) e falou com a mãe D (identificada a fls. 10 do processo) sobre a ocorrência do acidente de viação.
  - A mãe acompanhou logo a vítima para o Hospital Conde de S. Januário a fim de receber o tratamento e participou o referido acidente à polícia.
  - A PSP mandou logo o agente policial n.º XXX para fazer investigação no local do acidente a fim de procurar alguma testemunha ocular mas não houve qualquer resultado.
  - O Departamento de Trânsito da PSP procurou, através do anúncio publicado no "Macau Daily" de 19/9/2001, testemunha ocular para prestar informação sobre o referido acidente.
  - O Departamento de Trânsito recebeu, em 29/9/2001, um telefonema anónimo, participando que o táxi de matricula M-XXXX envolveu-se no referido acidente de viação (fls. 18 do processo). Em consequência desta informação, a polícia deteve o arguido.
  - A fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 do processo que aqui se dão por reproduzidas integralmente constam os ferimentos sofridos pela vítima, os quais incluem rasgão das gengivas, perda de incisivos, escoriações nos tecidos moles da face, peito e joelho direito, necessitando de 30 dias para recuperação, causando o acidente ofensas à integridade física da vítima.
  - Na altura do acidente, estava a chover, a iluminação era muito escura, o pavimento estava molhado e o trânsito era pouco denso.
  - Por outro lado, o arguido agiu livremente, bem sabendo que a sua conduta de abandono da vítima ferida é proibida e punida por lei, tentando ainda furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tinha incorrido.
  - O arguido declarou estar aposentado, sendo que são os filhos que o sustentam.
- O arguido admitiu os respectivos factos e é delinquente primário.
  - Por motivo deste acidente de viação, a vítima pagou, como despesas médicas, a quantia de MOP$8510.00.
  - São os factos referidos nos artigos 28°, 33° e 34° do pedido civil constantes das fls. 135 a 141 do processo.
  - São também os factos referidos nos artigos 16°, 17°, 21° e 31° da Contestação constantes das fls. 170 a 175 do processo.
  - A vítima C, representada pelos seus pais, requer apoio judiciário, pedindo que lhe seja dispensado o pagamento das custas e dos preparos".
  - A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com referência ao veículo automóvel com a matrícula M-XXXX (táxi) encontrava-se transferida, na altura do aludido acidente de viação, para a ora autora, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º XX, conforme documento que ora se junta.
  - A referida sentença considerou que ambas as partes, o ora réu e a peã C, tiveram responsabilidade na produção do acidente em causa, na proporção de 70% para o primeiro e de 30% para a peã.
  - Por força da mesma decisão judicial, foi o ora réu condenado na pena de prisão de nove meses pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência e na pena de um ano e três meses pela prática do crime de abandono de sinistrados e do crime de fuga à responsabilidade.
  - Em cúmulo, foi o réu condenado na pena de prisão única de um ano e nove meses de prisão, suspensa por 6 meses.
  - Foi ainda o réu condenado na pena de inibição de conduzir por seis meses , multa de MOP$l 000 00, taxa de justiça e outros encargos.
  - Por seu lado, a autora foi condenada a pagar uma indemnização no valor de MOP$145 957.00 a favor da ofendida, C, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por esta emergentes do acidente de viação ora em discussão, por força do supra referido contrato de seguro, sendo que, quanto às despesas na implementação de dentes da ofendida, não foi possível apurar o respectivo valor, tendo o TJB, relegado a decisão daquela matéria para sede de execução de sentença.
  - Efectivamente, o Tribunal fixou em MOP$8 510.00 as despesas médicas despendidas por aquela ofendida para tratamento das lesões físicas que sofreu (danos patrimoniais) e ainda em MOP$200 000.00 os danos não patrimoniais sofridos por esta, no total de MOP$208 510.00, pelo que, atendendo à proporção de responsabilidade fixada 70% para o réu e 30% para a ofendida), coube à ora autora proceder ao pagamento da indemnização de MOP$145 957.00 (MOP$208 510.00 x 70% = MOP$145 957.00).
  - Tendo a douta sentença do TJB transitado em julgado no dia 16 de Junho de 2008, a ora autora procedeu em 17 de Julho de 2008 ao pagamento da referida indemnização no montante global de MOP$145 957.00 a favor de C, assumindo dessa forma a responsabilidade decorrente do referido contrato de seguro.
  - Consequentemente, C (nascida a 29/9/1990, i.e., ainda menor no acto de recebimento daquela quantia) e a sua mãe, D, assinaram o respectivo recibo de quitação redigido em língua chinesa cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
  - Conclui-se assim que o réu B conduzia o táxi de matricula M-XXXX e que, ao chegar perto do edifício XX sito na Rua XX, embater com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, da mesma viatura na peã C no momento em que esta se encontrava a atravessar a referida artéria.
  - Tendo esta sofrido diversas lesões a que se referem as fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 dos autos CR1-05-0213-PCC cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, necessitando C de 30 dias para se recuperar.
  - Após o acidente, o réu pediu à vítima de apenas 10 anos de idade para se sentar no táxi e, logo de seguida, ausentou-se do local do acidente e circulou algum tempo naquela zona circundante.
  - E, por fim, o réu abandonou a sinistrada à sua sorte alguns minutos mais tarde, perto do teatro Pak Lok, deixando-a totalmente desamparada, e foi-se embora sozinho.
  - O abandono foi voluntário bem sabendo o réu que vítima a necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca.
  - Conforme já foi referido, a autora pagou a indemnização devida a favor daquela ofendida.
  - Ora, nos termos da alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, satisfeita a indemnização, a seguradora tem o direito de regresso contra o condutor quando haja abandonado o sinistrado.
  Conclui pedindo que a acção seja julgada procedente por provada e, consequentemente, seja o réu condenado no pagamento à autora da quantia de MOP$145 957.00, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a citação e até efectivo pagamento integral daquela quantia, bem como em custas e procuradoria condigna.
  *
   Regularmente citado o Réu para contestar e sob a cominação de que a falta da contestação importava a confissão dos factos alegados pela Autora.
   A Réu não contestou.
   Assim, não se verificando qualquer dos condicionalismo previsto no art. 406.° do C.P.C.M., tratando-se de relação jurídica disponível, consideram-se reconhecidos os factos alegado pela Autora, julgando a causa conforme de direito, nos termos do art. 405.°, n.º2 do C.P.C.M..
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  II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  O Tribunal é competente em razão de Território, de matéria e de hierarquia.
  As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciária e são legítimas.
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
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III-FACTOS
  Por confissão e análise dos documentos juntos aos autos, considero assente a seguinte Matéria de Facto:
1. Correu termos pelo 1º Juízo Criminal desse Distinto Tribunal o Processo Comum Colectivo registado sob o n.º CR1-05-0213-PCC no âmbito do qual foi discutido um acidente de viação ocorrido em 15 de Agosto de 2001 em que foi interveniente o ora réu, B, na qualidade de condutor do automóvel ligeiro de matrícula M-XXXX (táxi), e a peã C.
2. A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com referência ao veículo automóvel com a matrícula M-XXXX (táxi) encontrava-se transferida, na altura do aludido acidente de viação, para a ora autora, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º XXX, conforme documento que ora se junta.
3. A sentença proferida nos autos sob o n.º CR1-05-0213-PCC considerou que ambas as partes, o ora réu e a peã C, tiveram responsabilidade na produção do acidente em causa, na proporção de 70% para o primeiro e de 30% para a peã.
4. Por força da mesma decisão judicial, foi o ora réu condenado na pena de prisão de nove meses pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência e na pena de um ano e três meses pela prática do crime de abandono de sinistrados e do crime de fuga à responsabilidade.
5. Em cúmulo, foi o réu condenado na pena de prisão única de um ano e nove meses de prisão, suspensa por 6 meses.
6. Foi ainda o réu condenado na pena de inibição de conduzir por seis meses, multa de MOP$l 000 00, taxa de justiça e outros encargos.
7. Por seu lado, a autora foi condenada a pagar uma indemnização no valor de MOP$145 957.00 a favor da ofendida, C, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por esta emergentes do acidente de viação ora em discussão, por força do supra referido contrato de seguro, sendo que, quanto às despesas na implementação de dentes da ofendida, não foi possível apurar o respectivo valor, tendo o TJB, relegado a decisão daquela matéria para sede de execução de sentença.
8. Efectivamente, o Tribunal fixou em MOP$8 510.00 as despesas médicas despendidas por aquela ofendida para tratamento das lesões físicas que sofreu (danos patrimoniais) e ainda em MOP$200 000.00 os danos não patrimoniais sofridos por esta, no total de MOP$208 510.00, pelo que, atendendo à proporção de responsabilidade fixada 70% para o réu e 30% para a ofendida), coube à ora autora proceder ao pagamento da indemnização de MOP$145 957.00 (MOP$208 510.00 x 70% = MOP$145 957.00).
9. Tendo a douta sentença do TJB transitado em julgado no dia 16 de Junho de 2008, a ora autora procedeu em 17 de Julho de 2008 ao pagamento da referida indemnização no montante global de MOP$145 957.00 a favor de C, assumindo dessa forma a responsabilidade decorrente do referido contrato de seguro.
10. Consequentemente, C (nascida a 29/9/1990, i.e., ainda menor no acto de recebimento daquela quantia) e a sua mãe, D, assinaram o respectivo recibo de quitação redigido em língua chinesa cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
11. Na altura da ocorrência do acidente, o réu B conduzia o táxi de matricula M-XXXX e que, ao chegar perto do edifício XX sito na Rua XXX, embater com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, da mesma viatura na peã C no momento em que esta se encontrava a atravessar a referida artéria.
12. Tendo esta sofrido diversas lesões a que se referem as fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 dos autos CR1-05-0213-PCC cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, necessitando C de 30 dias para se recuperar.
13. Após o acidente, o réu pediu à vítima de apenas 10 anos de idade para se sentar no táxi e, logo de seguida, ausentou-se do local do acidente e circulou algum tempo naquela zona circundante.
14. E, por fim, o réu abandonou a sinistrada à sua sorte alguns minutos mais tarde, perto do teatro Pak Lok, deixando-a totalmente desamparada, e foi-se embora sozinho.
15. O abandono foi voluntário bem sabendo o réu que vítima a necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca.
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  IV. FUNDAMENTOS
Cumpre-se, pelo exposto, a estes factos, à aplicação do direito.
Na presente acção, a seguradora exerce o seu direito de regresso contra o condutor interveniente de um acidente de viação, que após o acidente, abandonou a vítima.
Nos termos da alínea c) do artigo 16º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, uma vez satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso “Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
A interpretação dessa norma tem sido objecto de grande controvérsia na jurisprudência que deu origem a duas teses.
A primeira dessas teses considera que, uma vez provado o acidente e o abandono do sinistrado, a seguradora teria sempre direito de regresso contra o condutor relativamente à indemnização paga.
A segunda das referidas teses (que pode considerar-se a maioritária) considera que o direito de regresso apenas opera relativamente aos danos concretos que derivaram do abandono do sinistrado, ou seja, o direito de regresso apenas existe se do abandono resultarem danos específicos ou o agravamento dos decorrentes do acidente e apenas em relação a estes danos.
Aderimos à segunda tese.
A interpretação do citado artigo 16º, não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta, designadamente, a unidade do sistema legislativo.
“O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta” (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª ed., pag. 346).
  “O direito de regresso não tem como fundamento nem como objectivo sancionar ou punir qualquer comportamento reprovável; o direito de regresso visa apenas, designadamente na solidariedade passiva, reintegrar o devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas” – cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed. pág. 564.
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem subjacente a função social de proteger as vítimas da circulação rodoviária, proporcionando-lhes o efectivo ressarcimento dos danos que sofreram através da respectiva seguradora. Assim, a lei afastou o equilíbrio contratual entre a seguradora e o segurado pela necessidade de proteger a vítima do acidente, impondo a seguradora a obrigação de indemnizar todos os danos sofridos pela vítima ainda que estes não decorram daqueles que são os riscos normais da circulação automóvel.
O direito de regresso da seguradora – previsto no citado art. 16º – surge precisamente para repor o equilíbrio contratual entre a seguradora e o segurado, atribuindo-se à seguradora o direito de regresso relativamente à indemnização dos danos que, em princípio, não estariam abrangidos pelo contrato de seguro por não decorrerem dos riscos próprios e inerentes à circulação automóvel mas sim de outros comportamentos que não devem estar (e não estão, em regra) abrangidos pelo âmbito de cobertura do seguro. (cfr. acórdão da Relação do Porto de 30/10/2008, proc. JTRP00041922 em http://www.dgsi.pt.)
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O direito de regresso – no caso de abandono do sinistrado - só deve abranger os danos que a seguradora suportou em consequência do abandono do sinistrado. Os outros danos (aqueles que decorreram do acidente e que sempre se verificariam, independentemente do abandono) estão abrangidos pelo contrato de seguro, não existe, em relação a esses danos, qualquer direito de regresso da seguradora.
Tal direito de regresso da seguradora pressupõe um nexo de causalidade entre o comportamento do condutor e o dano relativamente ao qual se estabelece o direito de regresso.
No caso do abandono do sinistrado, o direito de regresso não dependente do facto de o condutor ter dado causa ao acidente, na medida em que estão em causa dois factos distintos que poderão dar origem a danos distintos e autónomos. De facto, ainda que não tenha causa ao acidente, o condutor que abandona o sinistrado poderá dar origem a danos autónomos ou poderá agravar os danos que já se haviam produzido com o acidente.
Não estabelece a lei qualquer presunção ou inversão do ónus de prova, compete à seguradora o ónus de alegar e provar quais os danos concretos que decorreram do abandono do sinistrado.
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No nosso caso, e perante a matéria de facto provada, nada permite concluir que os danos indemnizados pela autora tenham resultado do abandono da sinistrada, facto que, aliás, a autora nem sequer alegou.
Com efeito, a autora, pretendendo exercer o direito de regresso relativamente à totalidade da indemnização que pagou à lesada, não fez qualquer delimitação entre os danos que resultaram do acidente e aqueles que resultaram do abandono.
  Assim, desconhecendo-se se o abandono determinou, só por si, a produção de danos ou se determinou o agravamento dos danos que já haviam sido causados pelo acidente, fica por demonstrar o nexo de causalidade entre o abandono e os danos que é pressuposto do direito de regresso.
  Nestes termos, deverá julgar improcedente a acção.
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V.- DECISÃO
  Nos termos expostos, o Tribunal julga a acção improcedente e não provada, e em consequência absolve-se o réu do pedido.
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Custas pela Autora.

Não se conformando com o decidido, veio a Autora A, S.A., recorrer da mesma concluindo que:


Na sentença recorrida teve-se como excluído o peticionado direito de regresso essencialmente porque, segundo o entendimento do Tribunal a quo, este só abrangeria os danos autónomos emergentes do abandono e/ou o agravamento dos danos do acidente que resultassem daquele abandono, pelo que caberia à recorrente a alegação da adequação dos danos a tal conduta e não houve sequer tal alegação.
2a
A questão a decidir no presente recurso é, pois, a de saber se o direito de regresso por abandono do sinistrado, contemplado na alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.° 57/94/M, de 28 de Novembro, apenas existe quando do abandono resultem danos autónomos ou agravamento dos danos já produzidos pelo acidente de viação em causa, como defende a sentença recorrida; ou, em alternativa, se esse direito de regresso concedido à seguradora contra o condutor que haja abandonado o sinistrado abarca igualmente os danos emergentes do próprio acidente, como defende a ora recorrente no âmbito do presente recurso.
3a
Ora, nem a letra da lei nem a razão de ser da referida norma suporta o entendimento expresso na sentença recorrida, sendo que, in casu, encontra-se constituído o pressuposto do direito de regresso atípico a que se reporta a alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, na medida em que o abandono foi doloso, consciente e voluntário, bem sabendo o recorrido que a vítima, menor, necessitava de assistência médica.
4a
Importa frisar que o direito de regresso em causa contra o condutor que haja abandonado o sinistrado, para mais tendo o abandono sido doloso, consciente e voluntário, tem uma finalidade preventiva, não se encontrando, desse modo, limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.
5a
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel plasmado no Decreto-Lei n.º 57/94/M visa, em primeira linha, um fim social, que é o de garantia do ressarcimento dos danos injustamente causados, sobretudo num sector (como é o caso do sector rodoviário) em que os danos se repetem e assumem uma expressiva amplitude, de modo que seja certa e quanto possível célere a reparação dos lesados.
6a
Ou seja, a lei do seguro obrigatório tem por objectivo principal assegurar a protecção do direito das vítimas e não do dos condutores com comportamentos negligentes e deliquentes, como foi precisamente o caso do ora recorrido.
7a
E, dentro deste prisma, o direito de regresso concedido à seguradora pelo citado artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M deixa incólume aquele objectivo social do seguro obrigatório e apenas atinge o património de certas pessoas cuja responsabilidade civil estaria, em princípio, garantida pelo seguro, embora essa incidência esteja circunscrita a determinadas situações devidamente explicitadas nas diversas alíneas daquela disposição normativa.

Ora, pela análise das diversas hipóteses previstas nesse artigo 16° verifica-se que a exclusão de tal garantia é determinada, nuns casos, por elementares princípios de justiça, e em outros, por motivos de ordem moral (como é claramente o caso do abandono de sinistrado), de tal modo que o legislador não teve como razoável que, nessas situações, os seus autores beneficiassem da existência do seguro.

Trata-se, pois, de uma norma moralizadora que é, a um tempo, dissuasora e repressiva, punindo civilmente, sem daí se afectarem os lesados, os que deixaram de merecer a protecção concedida pelo seguro.
10a
Ora, o caso de o condutor ter "abandonado o sinistrado", situação prevista na alínea c) do citado artigo 16°, justifica-se assim por razões essencialmente de ordem moral e não se afigura haver fundamento para que o direito de regresso apenas se reporte aos danos acrescidos ou directamente resultantes desse abandono, como defende erradamente, salvo o devido respeito, a sentença recorrida.
11a
Não é por acaso que o abandono de sinistrado, como motivo de direito de regreso, é descrito na mesma alínea que a condução com álcool e drogas e sem habilitação legal: tal contiguidade decorre do facto de todos estes comportamentos deverem ser evitados, senão mesmo eliminados, por manifestamente perigosos.
12a
E, nesta medida, os comportamentos descritos naquela alínea têm em comum o facto de serem considerados crimes de perigo, não se relacionando assim com os resultados.
13a
Temos assim que a prática do crime de abandono de sinistrado, que é aquele que aqui nos interessa, não depende de agravamento dos resultados, o qual só influi, quanto muito, na medida da pena (v., artigo 62°, n.º 1, do Código da Estrada).
14a
A solução da 1.ª instância implicaria a interpretação restritiva da alínea c) do Decreto-Lei n. ° 57/94/M, o que se não justificaria; essa interpretação não seria ainda válida para as outras hipóteses da mesma alínea c), mormente a de falta de habilitação legal para a condução.
15a
A letra do preceito e ainda o seu espírito de prevenção que lhe preside convencem que o abandono voluntário do sinistrado confere direito de regresso à seguradora, independentemente de ele ter agravado os danos; se o legislador pretendesse limitar o direito de regresso pelo abandono às situações de agravamento, não deixaria de acrescentar essa restrição como o fez em relação ao sinistro ocorrido com veículo que não foi submetido à inspecção periódica (alínea f)), sendo que, igualmente, sobre ele e não sobre a seguradora, deveria incidir o ónus da prova de que o abandono não agravou os danos.
16a
Acresce ainda que a aceitar-se que o direito de regresso só poderia ser exercido em caso de agravamento dos danos e de danos autónomos, a questão tornar-se-ia inútil porquanto seria praticamente impossível determinar a percentagem dos danos resultantes do acidente, por um lado, e do abandono, por outro.
17a
A interpretação perfilhada na douta sentença recorrida contém em si um germe potenciador da propensão à fuga do local do acidente, com o abandono do sinistrado, perfeitamente contrário à génese e ao espírito que presidiu à criação daquela norma.
18a
No caso sub judice, temos assim como inquestionável que houve efectivo "abandono" pois este conceito pressupõe uma conduta voluntária ou consciente de afastamento ou repúdio de alguém, deixando-o desamparado ou "abandonado" , e certamente por isso é que aquele preceito usa as aludidas expressões.
19a
É certo que a previsão da citada alínea c) do artigo 16° - i.e., de o condutor haver "abandonado o sinistrado" deve ser interpretada, literalmente, no sentido de abranger apenas aquele abandono voluntário.
20a
Com efeito, a grave sanção civil de reembolso da indemnização à seguradora não teria qualquer justificação no caso de a falta de socorro à vítima ter resultado de simples negligência do condutor do veículo porquanto, ainda que lhe fosse imputável um juízo de censura, por desatenção ou imprevidência, essa falta não assumiria relevância que pudesse ser incluída nos motivos de ordem moral que estão na base do preceito em causa; e a sua equiparação às outras hipóteses previstas no citado artigo 16° resultaria de todo desproporcionada e sem qualquer razoabilidade, tanto nos aspectos da sua gravidade objectiva como subjectiva.
21a
Sucede que, no caso presente, o recorrido foi condenado pelo crime de abandono de sinistrado, o qual, como se provou, "foi voluntário bem sabendo o réu que a vítima necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca”, com a agravante da mesma ser menor com apenas 10 anos de idade.
22a
Temos assim como inquestionável que, in casu, o direito de regresso concedido à seguradora contra o recorrido que abandonou a sinistrada, de forma voluntária e dolosa, não se limita aos danos acrescidos ou resultantes daquele abandono, abrangendo também os danos emergentes do próprio acidente de viação em causa.
23a
A sentença recorrida violou assim, por erro de interpretação e aplicação, a disposição do artigo 16°, alínea c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão recorrida ser revogada, condenando-se o recorrido no pagamento à recorrente da quantia de MOP$145.957,00,acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a respectiva citação e até efectivo pagamento integral, bem como em custas e procuradoria condigna,
fazendo-se assim a habitual
JUSTIÇA!

Ao recurso não respondeu o Réu.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Ora, a única questão levantada pela Recorrente é saber se, face ao disposto no artº 16º-c) do D. L. nº 57/94/M, a seguradora só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado em relação aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado, ou o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

A propósito da questão idêntica, este Tribunal de Segunda Instância já chegou a pronunciar-se no sentido de acolher a segunda posição, isto é, o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

Foram no Acórdão do TSI tirado no processo nº 505/2008, em 12MAIO2011, tecidas as seguintes considerações e conclusões:

“- outrossim, rezando o art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, que «Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra: ... c) O condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado», esta alínea c) não pode ser, de facto, interpretada no sentido de que a seguradora que tiver satisfeito a indemnização só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado "em relação à indemnização que resulte especificamente desse abandono ou do agravamento dos danos do acidente daí derivados", visto que, a montante, essa tese "interpretativa restritiva" não tem na letra da alínea c) do artigo em questão um mínimo de correspondência verbal, e, a jusante, se fosse essa tese o real pensamento legislativo, então o Legislador do dito Decreto-Lei não deveria ter omitido a expressão desse pensamento "restritivo" na letra da alínea c), porquanto ele já soube consagrar expressamente, na letra da alínea e) do mesmo art.º 16.°, uma restrição ou excepção respeitante à procedência do direito de regresso da seguradora contra o "responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica", qual seja, a de o sujeito contra o qual se pretende exercer o direito de regresso "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo".
Daí que, em suma, mediante o confronto da diferença na redacção da alínea c) e na da alínea e) dentro do mesmo artigo 16.°, é de presumir, por comando plasmado no n.º 3 do art.º 8.° do Código Civil de Macau, que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

Acórdão esse que acabou por ser confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância, tirado no processo nº 52/2011, em 09NOV2011, onde aquele Venerando Tribunal decidiu a questão nos termos seguintes:
Como é sabido, na interpretação da lei, o intérprete tem de partir da sua letra, embora sem se cingir a ela, sendo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 8.º, n. os 1 e 2 do Código Civil).
  A letra da alínea c) do artigo 16.º aponta decisivamente para a solução segundo a qual o abandono de sinistrado conduz ao direito de regresso contra o condutor, independentemente de os danos terem ou não sido especificamente causados ou agravados pelo crime de abandono. Claro que o condutor tem de ter sido o responsável pelo acidente e, por via disso, a seguradora teve de satisfazer indemnização ao lesado. Mas da letra da lei não resulta que o direito de regresso da seguradora só se pode efectivar se a seguradora provar que os danos foram devidos ao abandono e não ao acidente.
  Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
  Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa1. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
  Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, já foi designada.
  Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?
  A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
  Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
  O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
  É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva2, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º)3
  O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.
  Por outro lado, o artigo 517.° do Código Civil não dispõe aquilo que o recorrente alega, que parece antes estar a referir-se ao artigo 490.º do Código Civil, mas também tal como o anterior, completamente estranho ao problema que está em causa.
Conclui-se, assim, que o direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.

Subscrevemos integralmente as sensatas e convincentes razões doutamente expostas em ambos os Acórdão, que demos aqui por integralmente reproduzidas, para julgar procedente o recurso.

Tudo visto, resta decidir.


III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso interposto pela Autora A, S.A., revogando a sentença recorrida e passando a condenar o Réu B no pedido nos exactos termos peticionados na petição inicial.

Custas pelo Réu, em ambas as instâncias.

Notifique.

RAEM, 25OUT2012
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira (com declaração de voto vencido)
























Processo nº 195/2010
Data do Acórdão: 25OUT2012


Assuntos:

Acidente de viação
Abandono de sinistrado
Direito de regresso


SUMÁRIO

O direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 195/2010


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV3-09-0043-CAO, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

I. RELATÓRIO
  A Companhia de Seguros de Macau, S.A., pessoa colectiva matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 1691, com sede em Macau, na Avenida da Praia Grande, n.º 594, Edifício BCM, 11º andar,
  veio intentar
Acção Declarativa de Condenação
Com Processo Ordinário
  contra
  Iu Chon Tang (余春騰), casado, residente em Macau, na Rua da Prainha, n.º 5, rés-da-chão "A",
    Alegou nomeadamente que:
- Correu termos pelo 1º Juízo Criminal desse Distinto Tribunal o Processo Comum Colectivo registado sob o n.º CR1-05-0213-PCC no âmbito do qual foi discutido um acidente de viação ocorrido em 15 de Agosto de 2001 em que foi interveniente o ora réu, Iu Chon Tang, na qualidade de condutor do automóvel ligeiro de matrícula M-30-85 (táxi), e a peã Si Sut U.
  - Nos termos da douta sentença proferida nos referidos autos de que se junta certidão e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais ficaram provados os seguintes factos que, nesta sede, nos propomos transcrever de seguida (em língua portuguesa):
   - "No dia 15 de Agosto de 2001, por volta das 21h00, o arguido Iu Chon Tang conduzia o táxi de matricula M-30-85, circulando pela Avenida da Ponte de Amizade. Ao chegar perto do edifício Jardim Vai Tak sito na Rua Central da Areia Preta, embateu com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, na menina Si Sut U (ofendida, cuja identificação consta a fls. 8). Após o embate, Si Sut U, que estava a atravessar a rua, caiu no chão e correu sangue na boca.
  - Após o acidente, o arguido parou logo o táxi e aproximou-se da vítima, pedindo-lhe para sentar no táxi. A vítima julgou que o arguido podia levá-la para tratamento no Hospital, pelo que entrou no táxi.
  - Em seguida, o arguido conduziu o táxi de modo a ausentar-se do local do acidente, circulou naquela zona mas não levou a vítima para receber tratamento em qualquer hospital. No fim, deixou a vítima na área perto do teatro Pak Lok e foi-se embora sozinho.
  - A vítima voltou sozinha para casa (sita na Rua Central da Areia Preta, Edifício Jardim Vai Tak, Bloco II, 8°. Andar K) e falou com a mãe Si Lai Chan (identificada a fls. 10 do processo) sobre a ocorrência do acidente de viação.
  - A mãe acompanhou logo a vítima para o Hospital Conde de S. Januário a fim de receber o tratamento e participou o referido acidente à polícia.
  - A PSP mandou logo o agente policial n.º 240921 para fazer investigação no local do acidente a fim de procurar alguma testemunha ocular mas não houve qualquer resultado.
  - O Departamento de Trânsito da PSP procurou, através do anúncio publicado no "Macau Daily" de 19/9/2001, testemunha ocular para prestar informação sobre o referido acidente.
  - O Departamento de Trânsito recebeu, em 29/9/2001, um telefonema anónimo, participando que o táxi de matricula M-30-85 envolveu-se no referido acidente de viação (fls. 18 do processo). Em consequência desta informação, a polícia deteve o arguido.
  - A fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 do processo que aqui se dão por reproduzidas integralmente constam os ferimentos sofridos pela vítima, os quais incluem rasgão das gengivas, perda de incisivos, escoriações nos tecidos moles da face, peito e joelho direito, necessitando de 30 dias para recuperação, causando o acidente ofensas à integridade física da vítima.
  - Na altura do acidente, estava a chover, a iluminação era muito escura, o pavimento estava molhado e o trânsito era pouco denso.
  - Por outro lado, o arguido agiu livremente, bem sabendo que a sua conduta de abandono da vítima ferida é proibida e punida por lei, tentando ainda furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tinha incorrido.
  - O arguido declarou estar aposentado, sendo que são os filhos que o sustentam.
- O arguido admitiu os respectivos factos e é delinquente primário.
  - Por motivo deste acidente de viação, a vítima pagou, como despesas médicas, a quantia de MOP$8510.00.
  - São os factos referidos nos artigos 28°, 33° e 34° do pedido civil constantes das fls. 135 a 141 do processo.
  - São também os factos referidos nos artigos 16°, 17°, 21° e 31° da Contestação constantes das fls. 170 a 175 do processo.
  - A vítima Si Sut U, representada pelos seus pais, requer apoio judiciário, pedindo que lhe seja dispensado o pagamento das custas e dos preparos".
  - A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com referência ao veículo automóvel com a matrícula M-30-85 (táxi) encontrava-se transferida, na altura do aludido acidente de viação, para a ora autora, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 41-062761, conforme documento que ora se junta.
  - A referida sentença considerou que ambas as partes, o ora réu e a peã Si Sut U, tiveram responsabilidade na produção do acidente em causa, na proporção de 70% para o primeiro e de 30% para a peã.
  - Por força da mesma decisão judicial, foi o ora réu condenado na pena de prisão de nove meses pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência e na pena de um ano e três meses pela prática do crime de abandono de sinistrados e do crime de fuga à responsabilidade.
  - Em cúmulo, foi o réu condenado na pena de prisão única de um ano e nove meses de prisão, suspensa por 6 meses.
  - Foi ainda o réu condenado na pena de inibição de conduzir por seis meses , multa de MOP$l 000 00, taxa de justiça e outros encargos.
  - Por seu lado, a autora foi condenada a pagar uma indemnização no valor de MOP$145 957.00 a favor da ofendida, Si Sut U, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por esta emergentes do acidente de viação ora em discussão, por força do supra referido contrato de seguro, sendo que, quanto às despesas na implementação de dentes da ofendida, não foi possível apurar o respectivo valor, tendo o TJB, relegado a decisão daquela matéria para sede de execução de sentença.
  - Efectivamente, o Tribunal fixou em MOP$8 510.00 as despesas médicas despendidas por aquela ofendida para tratamento das lesões físicas que sofreu (danos patrimoniais) e ainda em MOP$200 000.00 os danos não patrimoniais sofridos por esta, no total de MOP$208 510.00, pelo que, atendendo à proporção de responsabilidade fixada 70% para o réu e 30% para a ofendida), coube à ora autora proceder ao pagamento da indemnização de MOP$145 957.00 (MOP$208 510.00 x 70% = MOP$145 957.00).
  - Tendo a douta sentença do TJB transitado em julgado no dia 16 de Junho de 2008, a ora autora procedeu em 17 de Julho de 2008 ao pagamento da referida indemnização no montante global de MOP$145 957.00 a favor de Si Sut U, assumindo dessa forma a responsabilidade decorrente do referido contrato de seguro.
  - Consequentemente, Si Sut U (nascida a 29/9/1990, i.e., ainda menor no acto de recebimento daquela quantia) e a sua mãe, Si Lai Chan, assinaram o respectivo recibo de quitação redigido em língua chinesa cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
  - Conclui-se assim que o réu Iu Chon Tang conduzia o táxi de matricula M-30-85 e que, ao chegar perto do edifício Jardim Vai Tak sito na Rua Central da Areia Preta, embater com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, da mesma viatura na peã Si Sut U no momento em que esta se encontrava a atravessar a referida artéria.
  - Tendo esta sofrido diversas lesões a que se referem as fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 dos autos CR1-05-0213-PCC cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, necessitando Si Sut U de 30 dias para se recuperar.
  - Após o acidente, o réu pediu à vítima de apenas 10 anos de idade para se sentar no táxi e, logo de seguida, ausentou-se do local do acidente e circulou algum tempo naquela zona circundante.
  - E, por fim, o réu abandonou a sinistrada à sua sorte alguns minutos mais tarde, perto do teatro Pak Lok, deixando-a totalmente desamparada, e foi-se embora sozinho.
  - O abandono foi voluntário bem sabendo o réu que vítima a necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca.
  - Conforme já foi referido, a autora pagou a indemnização devida a favor daquela ofendida.
  - Ora, nos termos da alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, satisfeita a indemnização, a seguradora tem o direito de regresso contra o condutor quando haja abandonado o sinistrado.
  Conclui pedindo que a acção seja julgada procedente por provada e, consequentemente, seja o réu condenado no pagamento à autora da quantia de MOP$145 957.00, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a citação e até efectivo pagamento integral daquela quantia, bem como em custas e procuradoria condigna.
  *
   Regularmente citado o Réu para contestar e sob a cominação de que a falta da contestação importava a confissão dos factos alegados pela Autora.
   A Réu não contestou.
   Assim, não se verificando qualquer dos condicionalismo previsto no art. 406.° do C.P.C.M., tratando-se de relação jurídica disponível, consideram-se reconhecidos os factos alegado pela Autora, julgando a causa conforme de direito, nos termos do art. 405.°, n.º2 do C.P.C.M..
    *
  II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  O Tribunal é competente em razão de Território, de matéria e de hierarquia.
  As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciária e são legítimas.
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
    *
III-FACTOS
  Por confissão e análise dos documentos juntos aos autos, considero assente a seguinte Matéria de Facto:
16. Correu termos pelo 1º Juízo Criminal desse Distinto Tribunal o Processo Comum Colectivo registado sob o n.º CR1-05-0213-PCC no âmbito do qual foi discutido um acidente de viação ocorrido em 15 de Agosto de 2001 em que foi interveniente o ora réu, Iu Chon Tang, na qualidade de condutor do automóvel ligeiro de matrícula M-30-85 (táxi), e a peã Si Sut U.
17. A responsabilidade civil emergente de acidente de viação com referência ao veículo automóvel com a matrícula M-30-85 (táxi) encontrava-se transferida, na altura do aludido acidente de viação, para a ora autora, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 41-062761, conforme documento que ora se junta.
18. A sentença proferida nos autos sob o n.º CR1-05-0213-PCC considerou que ambas as partes, o ora réu e a peã Si Sut U, tiveram responsabilidade na produção do acidente em causa, na proporção de 70% para o primeiro e de 30% para a peã.
19. Por força da mesma decisão judicial, foi o ora réu condenado na pena de prisão de nove meses pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência e na pena de um ano e três meses pela prática do crime de abandono de sinistrados e do crime de fuga à responsabilidade.
20. Em cúmulo, foi o réu condenado na pena de prisão única de um ano e nove meses de prisão, suspensa por 6 meses.
21. Foi ainda o réu condenado na pena de inibição de conduzir por seis meses , multa de MOP$l 000 00, taxa de justiça e outros encargos.
22. Por seu lado, a autora foi condenada a pagar uma indemnização no valor de MOP$145 957.00 a favor da ofendida, Si Sut U, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por esta emergentes do acidente de viação ora em discussão, por força do supra referido contrato de seguro, sendo que, quanto às despesas na implementação de dentes da ofendida, não foi possível apurar o respectivo valor, tendo o TJB, relegado a decisão daquela matéria para sede de execução de sentença.
23. Efectivamente, o Tribunal fixou em MOP$8 510.00 as despesas médicas despendidas por aquela ofendida para tratamento das lesões físicas que sofreu (danos patrimoniais) e ainda em MOP$200 000.00 os danos não patrimoniais sofridos por esta, no total de MOP$208 510.00, pelo que, atendendo à proporção de responsabilidade fixada 70% para o réu e 30% para a ofendida), coube à ora autora proceder ao pagamento da indemnização de MOP$145 957.00 (MOP$208 510.00 x 70% = MOP$145 957.00).
24. Tendo a douta sentença do TJB transitado em julgado no dia 16 de Junho de 2008, a ora autora procedeu em 17 de Julho de 2008 ao pagamento da referida indemnização no montante global de MOP$145 957.00 a favor de Si Sut U, assumindo dessa forma a responsabilidade decorrente do referido contrato de seguro.
25. Consequentemente, Si Sut U (nascida a 29/9/1990, i.e., ainda menor no acto de recebimento daquela quantia) e a sua mãe, Si Lai Chan, assinaram o respectivo recibo de quitação redigido em língua chinesa cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
26. Na altura da ocorrência do acidente, o réu Iu Chon Tang conduzia o táxi de matricula M-30-85 e que, ao chegar perto do edifício Jardim Vai Tak sito na Rua Central da Areia Preta, embater com o canto do guarda lamas dianteiro, do lado direito, da mesma viatura na peã Si Sut U no momento em que esta se encontrava a atravessar a referida artéria.
27. Tendo esta sofrido diversas lesões a que se referem as fls. 9, 17, 31, 43, 85 e 217 dos autos CR1-05-0213-PCC cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, necessitando Si Sut U de 30 dias para se recuperar.
28. Após o acidente, o réu pediu à vítima de apenas 10 anos de idade para se sentar no táxi e, logo de seguida, ausentou-se do local do acidente e circulou algum tempo naquela zona circundante.
29. E, por fim, o réu abandonou a sinistrada à sua sorte alguns minutos mais tarde, perto do teatro Pak Lok, deixando-a totalmente desamparada, e foi-se embora sozinho.
30. O abandono foi voluntário bem sabendo o réu que vítima a necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca.
    *
  IV. FUNDAMENTOS
Cumpre-se, pelo exposto, a estes factos, à aplicação do direito.
Na presente acção, a seguradora exerce o seu direito de regresso contra o condutor interveniente de um acidente de viação, que após o acidente, abandonou a vítima.
Nos termos da alínea c) do artigo 16º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, uma vez satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso “Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
A interpretação dessa norma tem sido objecto de grande controvérsia na jurisprudência que deu origem a duas teses.
A primeira dessas teses considera que, uma vez provado o acidente e o abandono do sinistrado, a seguradora teria sempre direito de regresso contra o condutor relativamente à indemnização paga.
A segunda das referidas teses (que pode considerar-se a maioritária) considera que o direito de regresso apenas opera relativamente aos danos concretos que derivaram do abandono do sinistrado, ou seja, o direito de regresso apenas existe se do abandono resultarem danos específicos ou o agravamento dos decorrentes do acidente e apenas em relação a estes danos.
Aderimos à segunda tese.
A interpretação do citado artigo 16º, não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta, designadamente, a unidade do sistema legislativo.
“O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta” (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª ed., pag. 346).
  “O direito de regresso não tem como fundamento nem como objectivo sancionar ou punir qualquer comportamento reprovável; o direito de regresso visa apenas, designadamente na solidariedade passiva, reintegrar o devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas” – cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed. pág. 564.
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem subjacente a função social de proteger as vítimas da circulação rodoviária, proporcionando-lhes o efectivo ressarcimento dos danos que sofreram através da respectiva seguradora. Assim, a lei afastou o equilíbrio contratual entre a seguradora e o segurado pela necessidade de proteger a vítima do acidente, impondo a seguradora a obrigação de indemnizar todos os danos sofridos pela vítima ainda que estes não decorram daqueles que são os riscos normais da circulação automóvel.
O direito de regresso da seguradora – previsto no citado art. 16º – surge precisamente para repor o equilíbrio contratual entre a seguradora e o segurado, atribuindo-se à seguradora o direito de regresso relativamente à indemnização dos danos que, em princípio, não estariam abrangidos pelo contrato de seguro por não decorrerem dos riscos próprios e inerentes à circulação automóvel mas sim de outros comportamentos que não devem estar (e não estão, em regra) abrangidos pelo âmbito de cobertura do seguro. (cfr. acórdão da Relação do Porto de 30/10/2008, proc. JTRP00041922 em http://www.dgsi.pt.)
*
O direito de regresso – no caso de abandono do sinistrado - só deve abranger os danos que a seguradora suportou em consequência do abandono do sinistrado. Os outros danos (aqueles que decorreram do acidente e que sempre se verificariam, independentemente do abandono) estão abrangidos pelo contrato de seguro, não existe, em relação a esses danos, qualquer direito de regresso da seguradora.
Tal direito de regresso da seguradora pressupõe um nexo de causalidade entre o comportamento do condutor e o dano relativamente ao qual se estabelece o direito de regresso.
No caso do abandono do sinistrado, o direito de regresso não dependente do facto de o condutor ter dado causa ao acidente, na medida em que estão em causa dois factos distintos que poderão dar origem a danos distintos e autónomos. De facto, ainda que não tenha causa ao acidente, o condutor que abandona o sinistrado poderá dar origem a danos autónomos ou poderá agravar os danos que já se haviam produzido com o acidente.
Não estabelece a lei qualquer presunção ou inversão do ónus de prova , compete à seguradora o ónus de alegar e provar quais os danos concretos que decorreram do abandono do sinistrado.
*
No nosso caso, e perante a matéria de facto provada, nada permite concluir que os danos indemnizados pela autora tenham resultado do abandono da sinistrada, facto que, aliás, a autora nem sequer alegou.
Com efeito, a autora, pretendendo exercer o direito de regresso relativamente à totalidade da indemnização que pagou à lesada, não fez qualquer delimitação entre os danos que resultaram do acidente e aqueles que resultaram do abandono.
  Assim, desconhecendo-se se o abandono determinou, só por si, a produção de danos ou se determinou o agravamento dos danos que já haviam sido causados pelo acidente, fica por demonstrar o nexo de causalidade entre o abandono e os danos que é pressuposto do direito de regresso.
  Nestes termos, deverá julgar improcedente a acção.
*
V.- DECISÃO
  Nos termos expostos, o Tribunal julga a acção improcedente e não provada, e em consequência absolve-se o réu do pedido.
*
Custas pela Autora.

Não se conformando com o decidido, veio a Autora Companhia de Seguros de Macau, S.A., recorrer da mesma concluindo que:


Na sentença recorrida teve-se como excluído o peticionado direito de regresso essencialmente porque, segundo o entendimento do Tribunal a quo, este só abrangeria os danos autónomos emergentes do abandono e/ou o agravamento dos danos do acidente que resultassem daquele abandono, pelo que caberia à recorrente a alegação da adequação dos danos a tal conduta e não houve sequer tal alegação.
2a
A questão a decidir no presente recurso é, pois, a de saber se o direito de regresso por abandono do sinistrado, contemplado na alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.° 57/94/M, de 28 de Novembro, apenas existe quando do abandono resultem danos autónomos ou agravamento dos danos já produzidos pelo acidente de viação em causa, como defende a sentença recorrida; ou, em alternativa, se esse direito de regresso concedido à seguradora contra o condutor que haja abandonado o sinistrado abarca igualmente os danos emergentes do próprio acidente, como defende a ora recorrente no âmbito do presente recurso.
3a
Ora, nem a letra da lei nem a razão de ser da referida norma suporta o entendimento expresso na sentença recorrida, sendo que, in casu, encontra-se constituído o pressuposto do direito de regresso atípico a que se reporta a alínea c) do artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, na medida em que o abandono foi doloso, consciente e voluntário, bem sabendo o recorrido que a vítima, menor, necessitava de assistência médica.
4a
Importa frisar que o direito de regresso em causa contra o condutor que haja abandonado o sinistrado, para mais tendo o abandono sido doloso, consciente e voluntário, tem uma finalidade preventiva, não se encontrando, desse modo, limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.
5a
O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel plasmado no Decreto-Lei n.º 57/94/M visa, em primeira linha, um fim social, que é o de garantia do ressarcimento dos danos injustamente causados, sobretudo num sector (como é o caso do sector rodoviário) em que os danos se repetem e assumem uma expressiva amplitude, de modo que seja certa e quanto possível célere a reparação dos lesados.
6a
Ou seja, a lei do seguro obrigatório tem por objectivo principal assegurar a protecção do direito das vítimas e não do dos condutores com comportamentos negligentes e deliquentes, como foi precisamente o caso do ora recorrido.
7a
E, dentro deste prisma, o direito de regresso concedido à seguradora pelo citado artigo 16° do Decreto-Lei n.º 57/94/M deixa incólume aquele objectivo social do seguro obrigatório e apenas atinge o património de certas pessoas cuja responsabilidade civil estaria, em princípio, garantida pelo seguro, embora essa incidência esteja circunscrita a determinadas situações devidamente explicitadas nas diversas alíneas daquela disposição normativa.

Ora, pela análise das diversas hipóteses previstas nesse artigo 16° verifica-se que a exclusão de tal garantia é determinada, nuns casos, por elementares princípios de justiça, e em outros, por motivos de ordem moral (como é claramente o caso do abandono de sinistrado), de tal modo que o legislador não teve como razoável que, nessas situações, os seus autores beneficiassem da existência do seguro.

Trata-se, pois, de uma norma moralizadora que é, a um tempo, dissuasora e repressiva, punindo civilmente, sem daí se afectarem os lesados, os que deixaram de merecer a protecção concedida pelo seguro.
10a
Ora, o caso de o condutor ter "abandonado o sinistrado", situação prevista na alínea c) do citado artigo 16°, justifica-se assim por razões essencialmente de ordem moral e não se afigura haver fundamento para que o direito de regresso apenas se reporte aos danos acrescidos ou directamente resultantes desse abandono, como defende erradamente, salvo o devido respeito, a sentença recorrida.
11a
Não é por acaso que o abandono de sinistrado, como motivo de direito de regreso, é descrito na mesma alínea que a condução com álcool e drogas e sem habilitação legal: tal contiguidade decorre do facto de todos estes comportamentos deverem ser evitados, senão mesmo eliminados, por manifestamente perigosos.
12a
E, nesta medida, os comportamentos descritos naquela alínea têm em comum o facto de serem considerados crimes de perigo, não se relacionando assim com os resultados.
13a
Temos assim que a prática do crime de abandono de sinistrado, que é aquele que aqui nos interessa, não depende de agravamento dos resultados, o qual só influi, quanto muito, na medida da pena (v., artigo 62°, n.º 1, do Código da Estrada).
14a
A solução da 1.ª instância implicaria a interpretação restritiva da alínea c) do Decreto-Lei n. ° 57/94/M, o que se não justificaria; essa interpretação não seria ainda válida para as outras hipóteses da mesma alínea c), mormente a de falta de habilitação legal para a condução.
15a
A letra do preceito e ainda o seu espírito de prevenção que lhe preside convencem que o abandono voluntário do sinistrado confere direito de regresso à seguradora, independentemente de ele ter agravado os danos; se o legislador pretendesse limitar o direito de regresso pelo abandono às situações de agravamento, não deixaria de acrescentar essa restrição como o fez em relação ao sinistro ocorrido com veículo que não foi submetido à inspecção periódica (alínea f)), sendo que, igualmente, sobre ele e não sobre a seguradora, deveria incidir o ónus da prova de que o abandono não agravou os danos.
16a
Acresce ainda que a aceitar-se que o direito de regresso só poderia ser exercido em caso de agravamento dos danos e de danos autónomos, a questão tornar-se-ia inútil porquanto seria praticamente impossível determinar a percentagem dos danos resultantes do acidente, por um lado, e do abandono, por outro.
17a
A interpretação perfilhada na douta sentença recorrida contém em si um germe potenciador da propensão à fuga do local do acidente, com o abandono do sinistrado, perfeitamente contrário à génese e ao espírito que presidiu à criação daquela norma.
18a
No caso sub judice, temos assim como inquestionável que houve efectivo "abandono" pois este conceito pressupõe uma conduta voluntária ou consciente de afastamento ou repúdio de alguém, deixando-o desamparado ou "abandonado" , e certamente por isso é que aquele preceito usa as aludidas expressões.
19a
É certo que a previsão da citada alínea c) do artigo 16° - i.e., de o condutor haver "abandonado o sinistrado" deve ser interpretada, literalmente, no sentido de abranger apenas aquele abandono voluntário.
20a
Com efeito, a grave sanção civil de reembolso da indemnização à seguradora não teria qualquer justificação no caso de a falta de socorro à vítima ter resultado de simples negligência do condutor do veículo porquanto, ainda que lhe fosse imputável um juízo de censura, por desatenção ou imprevidência, essa falta não assumiria relevância que pudesse ser incluída nos motivos de ordem moral que estão na base do preceito em causa; e a sua equiparação às outras hipóteses previstas no citado artigo 16° resultaria de todo desproporcionada e sem qualquer razoabilidade, tanto nos aspectos da sua gravidade objectiva como subjectiva.
21a
Sucede que, no caso presente, o recorrido foi condenado pelo crime de abandono de sinistrado, o qual, como se provou, "foi voluntário bem sabendo o réu que a vítima necessitava de assistência médica, tanto mais que sangrava da boca”, com a agravante da mesma ser menor com apenas 10 anos de idade.
22a
Temos assim como inquestionável que, in casu, o direito de regresso concedido à seguradora contra o recorrido que abandonou a sinistrada, de forma voluntária e dolosa, não se limita aos danos acrescidos ou resultantes daquele abandono, abrangendo também os danos emergentes do próprio acidente de viação em causa.
23a
A sentença recorrida violou assim, por erro de interpretação e aplicação, a disposição do artigo 16°, alínea c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão recorrida ser revogada, condenando-se o recorrido no pagamento à recorrente da quantia de MOP$145.957,00,acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a respectiva citação e até efectivo pagamento integral, bem como em custas e procuradoria condigna,
fazendo-se assim a habitual
JUSTIÇA!

Ao recurso não respondeu o Réu.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Ora, a única questão levantada pela Recorrente é saber se, face ao disposto no artº 16º-c) do D. L. nº 57/94/M, a seguradora só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado em relação aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado, ou o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

A propósito da questão idêntica, este Tribunal de Segunda Instância já chegou a pronunciar-se no sentido de acolher a segunda posição, isto é, o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

Foram no Acórdão do TSI tirado no processo nº 505/2008, em 12MAIO2011, tecidas as seguintes considerações e conclusões:

“- outrossim, rezando o art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, que «Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra: ... c) O condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado», esta alínea c) não pode ser, de facto, interpretada no sentido de que a seguradora que tiver satisfeito a indemnização só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado "em relação à indemnização que resulte especificamente desse abandono ou do agravamento dos danos do acidente daí derivados", visto que, a montante, essa tese "interpretativa restritiva" não tem na letra da alínea c) do artigo em questão um mínimo de correspondência verbal, e, a jusante, se fosse essa tese o real pensamento legislativo, então o Legislador do dito Decreto-Lei não deveria ter omitido a expressão desse pensamento "restritivo" na letra da alínea c), porquanto ele já soube consagrar expressamente, na letra da alínea e) do mesmo art.º 16.°, uma restrição ou excepção respeitante à procedência do direito de regresso da seguradora contra o "responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica", qual seja, a de o sujeito contra o qual se pretende exercer o direito de regresso "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo".
Daí que, em suma, mediante o confronto da diferença na redacção da alínea c) e na da alínea e) dentro do mesmo artigo 16.°, é de presumir, por comando plasmado no n.º 3 do art.º 8.° do Código Civil de Macau, que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

Acórdão esse que acabou por ser confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância, tirado no processo nº 52/2011, em 09NOV2011, onde aquele Venerando Tribunal decidiu a questão nos termos seguintes:
Como é sabido, na interpretação da lei, o intérprete tem de partir da sua letra, embora sem se cingir a ela, sendo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 8.º, n. os 1 e 2 do Código Civil).
  A letra da alínea c) do artigo 16.º aponta decisivamente para a solução segundo a qual o abandono de sinistrado conduz ao direito de regresso contra o condutor, independentemente de os danos terem ou não sido especificamente causados ou agravados pelo crime de abandono. Claro que o condutor tem de ter sido o responsável pelo acidente e, por via disso, a seguradora teve de satisfazer indemnização ao lesado. Mas da letra da lei não resulta que o direito de regresso da seguradora só se pode efectivar se a seguradora provar que os danos foram devidos ao abandono e não ao acidente.
  Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
  Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa4. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
  Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, já foi designada.
  Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?
  A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
  Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
  O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
  É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva5, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º)6
  O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.
  Por outro lado, o artigo 517.° do Código Civil não dispõe aquilo que o recorrente alega, que parece antes estar a referir-se ao artigo 490.º do Código Civil, mas também tal como o anterior, completamente estranho ao problema que está em causa.
Conclui-se, assim, que o direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.

Subscrevemos integralmente as sensatas e convincentes razões doutamente expostas em ambos os Acórdão, que demos aqui por integralmente reproduzidas, para julgar procedente o recurso.

Tudo visto, resta decidir.


III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso interposto pela Autora Companhia de Seguros de Macau, S.A., revogando a sentença recorrida e passando a condenar o Réu IU CHON TANG no pedido nos exactos termos peticionados na petição inicial.

Custas pelo Réu, em ambas as instâncias.

Notifique.

RAEM, 25OUT2012

Processo n.º 195/2010
         
         
          Declaração de voto vencido

Não acompanho o douto acórdão que fez vencimento por várias ordens de razões.

Em primeiro lugar, já me pronunciei sobre a necessidade de prova dos pressupostos da responsabilidade do condutor e da comprovação do nexo causal entre o efeito do álcool e a produção do acidente, no processo n.º 372/2011, de 23 de Fevereiro de 2012 e, aqui, por maioria de razão, são válidas as razões que me levam a considerar a necessidade de comprovação dos danos produzidos em função do abandono ou por ele agravados, tanto mais que este factor, o abandono, só sobrevém depois do acidente. Este produz-se, independentemente do abandono, donde não compreender que a responsabilidade transferida para a seguradora possa ser limitada por uma actuação que não é causa do acidente. Atente-se que nas situações de condução sem habilitação ou sob o efeito do álcool o acidente produz-se sob esse estado ou inabilitação, independentemente da contribuição desse factor na sua produção.

Em segundo lugar, a não se entender assim, existiria um desequilíbrio contratual resultante do facto de o segurado estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela simples razão de que foi isso que foi contratualizado: a transferência de responsabilidade no caso de culpa na produção de um acidente.

Em terceiro lugar, a entender-se que as despesas resultantes do acidente, independentemente das resultantes do abandono, não ficariam a cargo da seguradora, tal situação geraria um manifesto enriquecimento sem causa da seguradora.

Depois, importa atentar na letra da norma que diz que há regresso quando o condutor houver abandonado o sinistrado, devendo os danos ser em função do facto gerador dos mesmos e que ao mesmo tempo seja causa do regresso, ou seja, o abandono. E, como lembra Vaz Serra, BMJ 69, 256, o “dever de regresso funda-se no enriquecimento injustificado à custa de outros credores e, por conseguinte, quando do negócio jurídico ou de disposição especial não resulta outra coisa, deve ter o alcance que resultar do facto de, em consequência da satisfação do credor, certo ou certos devedores terem enriquecido injustificadamente à custa de outro ou outros”

Acresce que também a natureza preventiva ou punitiva do direito de regresso no caso de abandono de sinistrado não convence, vista a tipificação penal autónoma dessa conduta, sendo que a natureza sancionatória cível da responsabilidade civil tem por função a reparação dos prejuízos e não mais do que isso.
Evidencia-se até uma desproporção manifesta na contemplação do direito de regresso em situações de culpa leve do condutor ou até de concorrência de culpas - como é o caso - não se compreendendo facilmente que a seguradora ficasse desonerada do que pagou se, por exemplo, o condutor, não obstante o abandono, independentemente dos motivos, fosse também ele vítima ou sinistrado.

A ideia de sanção moral também deve ser alheia ao direito de regresso, pois não é essa a função do reembolso.

Por último, se, nos casos da al. e) do art. 16º do DL n.º 57/94/M, de 28 de Nov., se prevê expressamente que existe direito de regresso sobre o “responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica referida no artigo 10.º, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo”, salvaguarda esta não prevista nas outras situações (alíneas a) a d)), donde se pretende retirar o argumento de que nestes casos o direito de regresso existe sempre independentemente do nexo causal entre a situação típica e a produção do acidente, pois que aí já não se prevê uma exclusão expressa do direito de regresso, é porque, na situação prevista na norma citada, o último responsável é o proprietário do veículo que nem sequer foi o interveniente no acidente.
*
Por todas estas razões e com todo o respeito pelo douto entendimento vertido no acórdão, tanto mais reforçado com a autoridade da Jurisprudência citada, sou, contreito, a votar vencido.

Macau, 25 de Outubro de 2012


   (João Gil de Oliveira)


1 Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Lisboa, Livraria Petrony, 6.ª edição, sem data, p. 668.
2 PATRÍCIA CARLA MONTEIRO GUIMARÃES, Os Danos Punitivos e a Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Direito e Justiça, 2001, Vol. XV, Tomo 1, p. 164 e segs.
3 PAULA MEIRA LOURENÇO, Os Danos Punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2002, Vol. XLIII, n.º 2, p. 1061.
4 Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Lisboa, Livraria Petrony, 6.ª edição, sem data, p. 668.
5 PATRÍCIA CARLA MONTEIRO GUIMARÃES, Os Danos Punitivos e a Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Direito e Justiça, 2001, Vol. XV, Tomo 1, p. 164 e segs.
6 PAULA MEIRA LOURENÇO, Os Danos Punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2002, Vol. XLIII, n.º 2, p. 1061.
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