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Proc. nº 668/2012
(Recurso Cível e Laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 18 de Outubro de 2012
Descritores:
-Contrato-promessa
-Incumprimento definitivo
-Resolução do contrato
-Sinal em dobro


SUMÁRIO:

I- A simples mora não confere ao credor o direito de resolver o contrato.

II- Mas em certos casos a mora culposa do devedor é equiparada ao não cumprimento definitivo: um deles pode ocorrer com a perda de interesse (a apreciar objectivamente) que o credor tinha na prestação; outro pode verificar-se com o não cumprimento dentro de prazo razoável fixado pelo credor; outro, ainda, pode residir na declaração de um promitente ao outro de que não cumprirá o contrato.

III- Se o promitente vendedor, ao fim de 10 anos, não marcou a escritura definitiva dos contratos de compra e venda, nem mesmo perante interpelação nesse sentido pelo promitente-comprador, devido ao facto de ter demolido o prédio onde se incluíam as fracções prometidas vender, pode o promitente-comprador resolver o contrato.

IV- Uma tal situação, por estar em causa um incumprimento de um contrato-promessa, constitui, tal como decorre do art. 436º do CCM, o promitente vendedor no dever de restituir em dobro o que houver recebido a título de sinal.



Proc. nº 668/2012

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, intentou acção de condenação com processo ordinário contra “Companhia de Investimento Imobiliário B, Limitada”, pedindo a resolução de dois contratos de promessa celebrados com esta e a sua condenação a pagar-lhe a título de indemnização a quantia global de HK$ 650.000,00 correspondente ao dobro do sinal prestado.
A 1ª instância julgou procedente a acção por sentença de 21 de Março de 2012 e é dela que a ré vem interpor o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“a). A conduta da recorrente traduz-se meramente na mora, em vez do incumprimento culposo, pelo que não se deve condená-la a indemnizar o recorrido através do pagamento em dobro do sinal.
b). A sentença recorrida incorre na violação dos artigos 790.º, 793.º,797.º e 436;º do CCM.
Solicita-se ao Venerando Tribunal Colectivo que admita o presente recurso, e que o julgue procedente, de forma a fazer valer a justiça”.
*
O autor também apresentou alegações, que concluiu da seguinte forma:
“1ª
   O tribunal ad quem só resolve as questões concretamente postas pelo(a) recorrente que se encontrem delimitadas pelas conclusões das suas alegações de recurso, transitando em julgado as questões nelas não contidas, mesmo que alguma vez tenham sido invocadas nas mesmas alegações (v., neste sentido, artigos 589º, n.º 3, e 598º do CPC).
2a
   Termos em que as considerações trazidas pela recorrente no que concerne à impugnação da decisão de facto não devem ser consideradas por V. Exas. por não constarem nas conclusões das alegações de recurso a que ora se responde.
3a
   Acresce que a recorrente não especificou sequer a passagem da gravação respeitante ao depoimento em causa que, na sua opinião, impunha, sobre a matéria de facto em causa, decisão diversa da recorrida, refugiando-se em considerações genéricas e perfeitamente irrelevantes, incumprindo assim a estipulação legal plasmada no artigo 599º, nºs 1, al. b), e 2, do CPC.
4a
   Deve, pois, o recurso a que ora se responde ser rejeitado (artigo 599º, n.º 2, daquele Código), o que, desde já, se requer para os devidos efeitos legais.

   Por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá, que, ao contrário do que a recorrente quer fazer crer nas suas alegações de recurso, as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas produzidas nos presentes autos (prova testemunhal e sobretudo prova documental) suporte mais que razoável e suficiente para a decisão de facto fixada na sentença posta ora em crise.

   A recorrente imputa assim, sem fundamento algum, a existência de erro quanto à decisão no tocante às respostas dadas aos quesitos 2º, 3º, 7º, 12º, 13º e 14º da Base Instrutória, refugiando-se em considerações desconexas, irrelevantes e destituídas de qualquer sentido, não apresentando qualquer prova que permita concluir que o Tribunal recorrido deveria ter decidido de forma diferente.
7a
   Esteve assim bem o Tribunal a quo ao decidir do modo como o fez relativamente aos quesitos em questão, dentro do princípio da livre apreciação das provas que lhe assiste e em estrito respeito do critério de objectividade e das regras da experiência comum.

   Ao abrigo daquele princípio, o Tribunal recorrido respondeu aos quesitos formulados em conformidade com as provas produzidas e examinadas em audiência, facto reconhecido, aliás, pela ora recorrente que nem sequer reclamou das respostas aos quesitos da Base Instrutória como lhe em legalmente permitido pelo artigo 556º, n.º 5 do CPC (cfr., acta de fls. 181).
9a
   A recorrente limita-se nas suas alegações de recurso tão sómente a discordar do julgamento da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido no que respeita aos quesitos acima identificados, pretendendo, ao fim ao cabo, impôr o seu juízo pessoal, destituído de qualquer base ou fundamento, ao juízo do tribunal, colocando em causa o princípio da livre apreciação da prova regulado no artigo 558º do CPC.
10ª
   A matéria dos quesitos 1º a 13º, 15º e 16º foi considerada como plenamente provada com base na prova documental junta aos autos, complementada pelo depoimento das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, como resulta da acta de fls. 179 e 180.
11ª
   Em face do carácter excepcional eh renovação dos meios de prova em sede de recurso, é jurisprudência unânime que a eventual alteração da matéria de facto só pode ter lugar quando haja elementos cuja análise a imponham muito claramente, sendo que, no caso sub judice, não foi apresentada sequer pela recorrente qualquer prova que pudesse sugerir respostas diferentes das que foram dadas pelo tribunal recorrido.
12a
   Nesta conformidade, o recurso não poderá deixar de improceder no tocante à impugnação da matéria de facto pretendida.
13a
   Vem ainda a recorrente apresentar uma tese perfeitamente absurda de que, afinal de contas, encontra-se aquela sociedade numa situação meramente de mora, e não de incumprimento culposo definitivo, alegando que o terreno ainda existe e que, consequentemente, pode ser construído nesse local um novo prédio, socorrendo-se, mais uma vez; de considerações destituídas de qualquer sentido, lançando mão a um outro processo judicial que nada tem a haver cornos presentes autos e olvidando os factos que foram dados como provados nestes autos.
14a
   As situações de impossibilidade culposa do cumprimento da obrigação (artigo 790º do CCM / artigo 801º do CC de 1966), da perda objectiva do interesse na prestação por parte do credor (artigos 797º, n.º 1, al. a) e 790º do CCM / artigos 808º, n.º 1, al. a) e 801º do CC de 1966) e da persistente não realização da prestação pelo devedor dentro do prazo razoável fixado pelo credor (artigos 797º, n.º 1, al. b) e 790º do CCM / artigos 808º, n.º 1, al. b) e 801 º do CC de 1966), são geradoras do incumprimento definitivo imputável ao devedor.
15ª
   Estabelece, a propósito, o artigo 790º do CCM (v., artigo 801º do CC de 1966) que “Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação”.
16ª
   E, por seu lado, estabelece o n.º 1 do artigo 797º do CCM (v., artigo 808º, n.º 1 do CC de 1966) que se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que, por interpelação, for razoavelmente fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
17ª
   Ora, todas as situações acima referidas, geradoras do incumprimento definitivo imputável à recorrente, verificam-se, de forma evidente, no caso sub judice.
18ª
   A situação da impossibilidade do cumprimento da prestação imputável à recorrente traduziu-se, como vimos, na demolição do prédio que foi efectivada por sua iniciativa (cfr., respostas aos quesitos 15º e 16º), dando assim azo que a promessa se tornasse impossível de cumprir por falta de objecto, por culpa da recorrente (v., artigo 790º, n.º 1 do CCM / artigo 801º, n.º 1 do CC de 1966).
19ª
   Por sua vez, a perda objectiva do interesse na prestação por parte do credor, ou seja, do recorrido (v., artigos 797º, n.º 1, al. a) e 790º do CCM/ artigos 808º, n.º 1, al. a) e 801º do CC de 1966) e a persistente não realização da prestação por parte da recorrente dentro do prazo razoável fixado pelo recorrido (artigos 797º, n.º 1, a1. b) e 790º do CCM / artigos 808º, n.º 1, a1.ba) e 801 º do CC de 1966), resulta igualmente da matéria assente (cfr., respostas aos quesitos 7º a 13º).
20ª
   Pelo que, nos termos do artigo 436º, n.º 2 do Código Civil de Macau (v., artigo 442º, n.º 2 do Código Civil de 1966), o recorrido tem direito de exigir o dobro do que houver prestado, a titulo de sinal, com referência aos contratos acima referidos, ou seja, tem o direito de exigir da recorrente o montante de HKD$360.000,00 pelo 1º contrato que tem como objecto o parque de estacionamento n.º 19 e o montante de HKD$290,000.00 pelo 2º contrato que tem como objecto o parque de estacionamento n.º 21, no total de HKD$650.000,00, a que acrescem juros à taxa legal, calculados desde a data da citação da recorrente até efectivo e integral pagamento, tal como pugnado na sentença recorrida.
21ª
   De modo que a sentença recorrida de fls. 192 e ss. não merece qualquer censura quando afirma, a fls. 196 verso, que, no caso sub judice, resulta da matéria provada que não só houve perda de interesse na prestação do recorrido, resultante de uma persistente não realização da prestação pela recorrente dentro do prazo razoável fixado por aquele, mas provado também que a prestação se tornou impossível por iniciativa da recorrente, por ter demolido integralmente o prédio em causa alguns anos após a celebração dos contratos-promessa em causa.
22ª
   E que, verificado o incumprimento culposo e definitivo da obrigação, por culpa exclusiva da recorrente, tem o recorrido direito a resolver os contratos-promessa de compra e venda celebrados com aquela em 13 de Maio de 1999.
23ª
   Concluindo assim o tribunal recorrido, de forma plenamente acertada, ao abrigo do artigo 442º do CC de 1966 (v., artigo 436º do CCM), que, considerando que o montante de HKD$325,000.00 pago pelo recorrido à recorrente aquando da outorga dos contratos-promessa de compra e venda de imóvel tem carácter de sinal, outra solução não resta senão julgar procedente a acção quanto a esta parte, condenando-se a recorrente a pagar ao recorrido o dobro do sinal, na quantia de HKD$650,000.00.
24ª
   Em suma, a decisão recorrida, ao contrário do defendido pela recorrente, cumpriu e respeitou os preceitos acima aludidos - 406º, 432º, 441º, 442º, 801º e 808º do CC de 1966 (a que correspondem os artigos 400º, 426º, 435º, 436º, 790º e 797º do CCM) -, tendo o Tribunal a quo recorrido às normas do CC de 1966 porquanto é este o diploma que se mostra aplicável aos presentes autos (v., a este respeito, artigo 11º do CCM).
25ª
   Não tendo o Tribunal recorrido, e bem, aplicado a norma do artigo 804º do CC de 1966 (a que corresponde o artigo 793º do CCM) por não estarmos perante uma situação de mora por parte da recorrente, como se viu, mas, antes, perante uma situação de incumprimento definitivo e culposo por parte daquela sociedade.
Termos em que, face ao acima exposto, deve o presente recurso ser rejeitado na medida em que a recorrente não indicou a passagem da gravação em que se funda o seu pedido de impugnação da decisão de facto (artigo 599º, nºs 1, al. b), e 2, do CPC), sendo que, em qualquer caso, a mesma matéria não pode ser apreciada por V. Exas. por não constar das conclusões das alegações de recurso apresentadas pela recorrente.
Caso assim não seja entendido, deve o mesmo recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se assim a decisão recorrida que declarou resolvidos os contratos-promessa em causa, por incumprimento definitivo e culposo por parte da recorrente, e que, consequentemente, condenou esta a pagar ao recorrido a quantia de HKD650,000.00, convertível em MOP$669,500.00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contabilizados a partir da data de citação da recorrente até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo ainda da recorrente, fazendo assim V. Exas. A habitual JUSTIÇA!”.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
   A R. é uma sociedade que tem como objecto social o desenvolvimento imobiliário. (A)
   Em 29 de Novembro de 1991 a R. adquiriu o domínio útil de dois terrenos, ambos com o fim rústico. (B)
   O primeiro terreno sito na Estrada da Bela Vista, s/n; na Estrada de Ferreira do Amaral, s/n; omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 13143 do livro B35. (C)
   O segundo terreno sito na Estrada da Bela Vista, s/n, omisso na matriz, com a descrição predial número 13144, fls. 83V do livro B35. (O)
   O domínio útil dos dois terrenos está registado na Conservatória do Registo Predial, em nome da R., sob a inscrição n.º 121615 do livro G125. (E)
   A aquisição dos referidos terrenos por parte da R. teve como intuito a construção de um prédio, com vários blocos para habitação e uma área para comércio, sendo o prédio denominado “XXX” . (F)
   Passados mais de 10 anos, após o inicio da construção do prédio “XXX” e da celebração dos dois contratos com o fim de aquisição dos parques de estacionamento, a R. nunca avisou o A. para celebrar os contratos defini ti vos. (G)
   Nem lhe entregou os dois parques de estacionamento decorrido os prazos fixados nos tais contratos com o fim de aquisição dos parques de estacionamento. (H)
   Por volta de 1995, a R. iniciou a edificação e construção do prédio denominado “XXX ”. (1º)
   Em 21 de Julho de 1998, com o prédio XXX ainda em construção, o A. fez um acordo verbal com a R. para adquirir o parque de estacionamento designado por n.º 19, da cave 3, tendo para o efeito procedido ao pagamento da totalidade do preço no valor de HKD$180.000,00. (2º)
   Em 21 de Julho de 1998, o A. fez outro acordo verbal com a R. para adquirir o parque de estacionamento designada por n.º 21, da cave 3, do prédio XXX, tendo para o efeito procedido ao pagamento parcial da quantia de HKD$145.000,00, relativo ao preço global de HKD$180.000,00. (3º)
   Em 13 de Maio de 1999, na sequência do acordo verbal referido, no escritório do Dr. Porfírio Azevedo Gomes, foi assinado o contrato com o fim de aquisição do parque de estacionamento, na qual a R. prometeu vender ao A. a fracção autónoma, para estacionamento, designada por n. º 19 da cave 3, do prédio XXX, pelo preço de HKD$180.000,00, corresponde a MOP$185.400,00. (4º)
   Em 13 de Maio de 1999, na sequência do segundo acordo verbal, no escritório do Dr. Porfírio Azevedo Gomes, foi assinado o contrato com o fim de aquisição do parque de estacionamento, no qual a R. prometeu vender ao A. a fracção autónoma, para estacionamento, designada por n. º 21 da cave 3, do prédio XXX, pelo preço de HKD$180.000,00, corresponde a MOP$185.400,00. (5º)
   Neste contrato o remanescente do preço em falta no valor de HKD$35.000,00 teria que ser feito 14 dias após a licença de uso, que nunca, até à presente data foi emitida ou na data da realização da escritura pública de compra e venda. (6º)
   O A., por carta datada de 09/04/2009, através do seu mandatário forense, interpelou por escrito a R., marcando-lhe data e lugar para a celebração da escritura pública e assim cumprir os contratos com o fim de aquisição dos parques de estacionamento. (7º)
   A carta foi reclamada pela R. que não compareceu no dia 20 de Abril de 2009 no escritório do Notário Privado Dr. Luis Reigadas a fim de outorgar a respectiva escritura pública e assim cumprir os contratos celebrados. (8º)
   Em 23 de Abril de 2009, o A. enviou novamente outra carta de interpelação, marcando a nova data da celebração da escritura de compra e venda para o dia 10/05/2009. (9º)
   Nesta carta, a A. cominou expressamente que os dois contratos ficariam resolvidos caso a R. faltasse à outorga da escritura pública de compra e venda. (10º)
   A R. também recebeu a segunda carta da interpelação, mas manteve a mesma atitude de desinteresse absoluto no cumprimento das obrigações assumidas, faltando novamente a escritura de compra e venda marcada para o dia 10/05/2009. (11º)
   A R. persistiu na sua inércia em concretizar o contrato definitivo e propositadamente não apareceu nas datas e nos locais marcados para a concretização dos contratos celebrados. (12º)
   O A. perdeu todo o interesse na prestação devida em consequência do comportamento da R. (13º)
   Por iniciativa exclusiva da R., esta veio demolir o prédio em causa. (15º)
   A demolição integral do edifício ocorreu alguns anos após a celebração dos contratos em causa. (16º).
***
III- O Direito
1 – Do erro na matéria de facto
A recorrente iniciou as suas alegações considerando que a sentença partiu de inverdades factuais. Para tanto, fez um exercício de dedução para concluir que, segundo aquilo a que chamou as “regras da experiência”, os factos 2, 3, 7, 12, da Base Instrutória nunca poderiam ser dados por provados, nem mesmo segundo as declarações da testemunha do Autor da acção de nome C.
Acontece que o esforço alegatório que dedicou a este fundamento do recurso não o concretizou nas respectivas conclusões. Efectivamente, toda a refrega reactiva ficou resumida a duas simples conclusões, em ambas omitindo por completo qualquer referência ao erro no julgamento da matéria de facto.
É claro que o art. 598º, nº4 do CPC estatui que, no caso de as conclusões faltarem, serem deficientes ou obscuras, o recorrente deve ser convidado a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las sob pena de não se conhecer do recurso na parte afectada. Ora, o caso concreto não pode ser considerado de “falta”, nem de “obscuridade”, pois as conclusões existem e são muito claras. Falta saber se o caso representa “deficiência”. Mas, em nossa opinião, deficiência não é o mesmo que ausência. Deficiência pode ser entendido, de certo modo, como insuficiência, como omissão de algum aspecto que tenha escapado ao recorrente na sua síntese recursiva. Mas o que não pode é, contra o livre arbítrio do recorrente, o tribunal ser sempre levado a pensar que qualquer omissão a este título é esquecimento, falha ou distracção. Se assim fosse de pensar, pouca valia haveria de ter o disposto no art. 589º, nº3, do CPC, que expressamente preceitua que “Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto do recurso”. Quer dizer, se é o próprio legislador que admite a restrição tácita do objecto do recurso, conferindo às conclusões o papel fulcral da vontade do recorrente, é porque só a expressão desta é para si determinante para balizar a actividade do tribunal superior na apreciação do recurso. Portanto, se a recorrente não incluiu aquela matéria nas conclusões tem que inferir-se que o não quis fazer; o mesmo é dizer, que preferiu restringir o objecto do recurso à matéria de direito respeitante ao (in)cumprimento contratual que lhe foi imputado. Circunstância que por si só nos dispensaria do convite a que se refere o nº 4 do art. 598º do CPC.
Mas, mesmo que se não sufrague o que acabámos agora mesmo de concluir, sempre nos parece, de qualquer maneira, não haver motivo para observância daquele preceito legal. É que, sempre que se impugna a matéria de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso, além dos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios probatórios que deveriam impor decisão diferente da recorrida e, neste segundo caso, se eles tiverem sido gravados, indicando as passagens da gravação em que se funda (art. 599º, nºs 1 e 2, do CPC).
Ora, o que aqui se vê é que a recorrente não respeitou esta exigência legal. Deste modo, sempre haveria lugar a rejeição do recurso na parte correspondente.
E quanto aos arts. 13 e 14 da base instrutória, também a recorrente se insurge, dizendo que eles contêm “factos sujeitos ao juízo jurídico”. Se bem interpretamos esta imputação, o que a recorrente quer dizer é que eles seriam de impossível resposta (eventualmente, pretenderia que as respostas deveriam ser consideradas não escritas) por conterem meras afirmações de carácter jurídico e não factos demonstráveis.
Ora, a “perda de interesse” (facto 13) não é apenas noção jurídica, mas também expressão de uma realidade que pode ser demonstrada no plano dos factos. Isto é, não parece que a perda de interesse seja redutível somente a um conceito de carácter técnico-jurídico, se ele pode ter na prática uma significação com um valor de linguagem e expressividade comuns (v.g., Ac. do STJ de 18/12/2002, Rec. Nº 3888/02).
Quanto à expressão ”causa única e exclusiva” (facto 14), não vislumbramos em lado nenhum desse ponto da Base Instrutória, nem da respectiva resposta (não provado), nada que com ela se pareça. Portanto, sobre o assunto, não podemos perder mais tempo, uma vez que a invocação se deverá a mero lapso.
Pelo exposto, não apreciaremos o recurso nesta parte.
*
2- Da bondade da decisão recorrida
Tinha o Autor A intentado a acção contra a ré, com o fundamento de que esta teria incumprido os contratos-promessa entre ambos celebrados, concernentes à venda de dois lugares de aparcamento num prédio que a demandada estava na ocasião a construir. O incumprimento teria decorrido da circunstância de, de passados mais de 10 anos sobre o início da construção do prédio, nunca a ré ter avisado o autor para a celebração dos contratos definitivos ou sequer lhe ter entregado as referidas fracções de garagem, nem mesmo após interpelação escrita feita duas vezes nesse sentido.
A matéria de facto invocada pelo autor veio a provar-se integralmente. E mais se provou, inclusive, que a ré tomou a iniciativa de demolir o prédio em causa.
Com base nisto, a sentença sob censura, asseverou o seguinte:
«De acordo com os factos provados, dúvidas não restam de que entre A. e R. foram celebrados, por escrito, em 13 de Maio de 1999, dois contratos-promessa de compra e venda de imóvel, nos termos do qual o primeiro prometeu comprar e a segunda prometeu vender dois parques de estacionamento, com os números 19 e 21 da cave 3 do prédio XX que iria ser construído.
Segundo o artigo 410º, nº 1 do Código Civil de 1966, “À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”.
Trata-se do chamado princípio da equiparação de regime entre o contrato-promessa e o contrato prometido.
O contrato-promessa tem apenas simples eficácia obrigacional, dele derivando a obrigação de celebrar o contrato definitivo.
Consagra-se no artigo 762º, nº 1 do Código Civil de 1966 que “O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.”
Só é admitida a resolução do contrato quando fundada na lei ou em convenção (artigo 432º, nº 1).
Em termos legais, só é permitida a resolução quando se verifica impossibilidade do cumprimento, nos termos do artigo 801º, nº 1, e não o pode ser com base na mera situação de mora prevista nos termos do artigo 804º.
Ao abrigo do artigo 801º do Código Civil de 1966, no concernente à impossibilidade culposa do cumprimento, dispõe-se o seguinte:
“1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
2. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.”
Por outro lado, o credor também tem direito a resolver o contrato se em consequência da mora do devedor, perder aquele o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor (artigo 808º, nº 1 do Código Civil de 1966).
Em termos de jurisprudência, segundo o Acórdão do Tribunal de Última Instância, proferido no âmbito do Processo nº 44/2011, de 30 de Novembro de 2011, decidiu-se o seguinte:
“Aliás, devem também, considerar-se aplicáveis ao contrato-promessa as regras respeitantes ao incumprimento definitivo das obrigações, atrás mencionadas, designadamente, as relativas à perda do interesse do credor, ao termo essencial e à declaração do devedor de não querer cumprir.”
Ainda em termos de direito comparado, decidiu-se no Acórdão de 13 de Julho de 2004, do STJ, in CJ II, p. 145, o seguinte:
“De qualquer modo, a resolução do contrato fundada na lei pressupõe que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento e a outra o tenha cumprido ou diligenciado pelo seu cumprimento.
Assim, pode incluir-se na falta de cumprimento ou inexecução obrigacional lato sensu, para além da impossibilidade de cumprimento, o incumprimento definitivo propriamente dito, o incumprimento definitivo oriundo da conversão da situação de mora e a recusa categórica de cumprir.”
Ora bem, no caso sub judice, resulta da matéria provada que não só houve perda de interesse na prestação por parte do A., resultante de uma persistente não realização da prestação pela R. dentro do prazo razoável fixado por aquele, mas provado também que a prestação se tornou impossível por iniciativa exclusiva da R., por ter demolido integralmente o prédio em causa alguns anos após a celebração dos contratos-promessa em causa.
Nestes termos, verificado o incumprimento culposo e definitivo da obrigação, por culpa exclusiva da R., o A. tem direito a resolver os contratos-promessa de compra e venda celebrados com a R. em 13 de Maio de 1999».
Resulta do trecho transcrito que a 1ª instância considerou haver motivo para a resolução do contrato, assente não só na perda de interesse do promitente-comprador, como na impossibilidade de cumprimento por causa imputável exclusivamente ao promitente-devedor ao demolir o prédio onde se incluíam as duas fracções objecto do negócio.
Poderíamos, então, ficar por aqui. Poderíamos, simplesmente, remeter a decisão do recurso para os termos da sentença ora impugnada, pois que traduz no essencial o que sobre o assunto a lei prescreve.
Não deixaremos, no entanto, de ilustrar a decisão com o argumento de que, segundo a jurisprudência e doutrina dominantes, a resolução do contrato-promessa (e o funcionamento do regime do sinal), por via de lei, só poderá ocorrer perante um incumprimento definitivo (arts. 790º e 797º, do CC)1, o que se verificará:
- quando, em consequência da mora, mostrar a perda de interesse (objectivamente apreciada) do credor na prestação;
- quando a prestação não for realizada no prazo cominatório, suplementar e razoável, que o credor fixar;
- quando o credor faça inequívoca e categórica declaração de que não pretende cumprir2.
O mesmo foi dito na Relação de Lisboa, nos termos que parcialmente se passam a transcrever:
“Decorre do art. 432 do CC que é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção.
O direito de resolução do contrato fundado na lei será um direito potestativo, extintivo e dependente de um fundamento – terá de verificar-se o facto ou situação a que a lei liga como consequência surgir esse direito potestativo. Ora, nos termos da lei, a simples mora do devedor não confere ao credor o direito a resolver o contrato – tal resolução só é consentida quando houver incumprimento definitivo imputável ao devedor.
Efectivamente, o direito de resolução de um contrato promessa (contrato bilateral) fundamentar-se-á na impossibilidade culposa da prestação – arts. 801 e 802 do CC. A regra do CC é a de que a mora do devedor não faculta imediatamente ao credor a resolução do contrato donde nasce a obrigação que não foi pontualmente cumprida. Para que, tendo a obrigação não cumprida por fonte um contrato bilateral, o credor possa resolver o contrato desonerando-se da sua contraprestação, torna-se necessário, em princípio, que a prestação da outra parte se tenha tornado impossível, por causa imputável ao devedor (art. 801º, nº 1, do Cod. Civil) ([2]).
Todavia, em duas situações a mora culposa do devedor é equiparada pela lei ao não cumprimento definitivo: ter o credor, em consequência da mora, perdido o interesse que tinha na prestação, perda de interesse essa a ser apreciada objectivamente; não ser a prestação efectuada dentro do prazo razoavelmente fixado pelo credor (art. 808 do CC). Uma terceira situação pode, ainda, ser perspectivada: a de um dos promitentes declarar ao outro, inequívoca e categoricamente, que não cumprirá o contrato; nesse caso, como tem sido entendido, não se justificaria a fixação de um prazo razoável para cumprir.
A par disto, haverá que ter em conta a resolução convencional”3.
Ora, no caso em apreço concorreram três circunstâncias que dão apoio à tese vazada na sentença recorrida: 1ª- O promitente-vendedor, ao fim de dez anos, ainda não tinha marcado a escritura definitiva dos contratos de compra e venda; 2ª- Não o fez, nem mesmo perante a interpelação nesse sentido por parte do promitente-comprador; 3ª- E não o fez por ter demolido o prédio onde se incluíam as duas fracções prometidas vender.
Estas circunstâncias fizeram o promitente-comprador perder o interesse no negócio4 (e tal está provado pela resposta ao art. 13º da Base Instrutória, como lhe competia) e demonstram, por outro lado, a impossibilidade de cumprir aquilo a que o promitente vendedor se obrigou (impossibilidade reconhecidamente objectiva e absoluta5). Não estamos, pois, perante uma simples mora, ao contrário do que a recorrente sustenta. Na verdade, com a demolição do prédio por exclusiva iniciativa da ré ora recorrente, ocorreu uma eliminação física do todo (o edifício), que arrastou inapelavelmente o desaparecimento de cada uma das partes (as fracções). Isto é, a demolição ordenada pela ré tornou impossível o cumprimento da promessa reportada àquelas (duas) fracções daquele prédio, exactamente como estava projectado, colocando-se ela, assim, como causadora da situação de incumprimento definitivo. Isto quer dizer que esta impossibilidade, por ser imputável ao devedor, acarreta a sua responsabilidade como se ele faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação (art. 790º, do CC).
Uma tal situação, por estar em causa um incumprimento de um contrato-promessa, constitui, tal como decorre do art. 436º do CCM (art. 442º do CC de 1966), o contraente promitente vendedor no dever de restituir em dobro o que houver recebido a título de sinal, tal como o decidiu a sentença sob escrutínio6,7.
Assim sendo, porque não se verificou nenhuma violação aos arts. 790º, 793º e 797º e 443º do CCM, a sentença não é merecedora de qualquer censura, pelo que tem que ser confirmada.
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IV- Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 18 / 10 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 V.G.: Acórdãos do STJ de 25.11.2010, Proc. nº 3018/06. 6 TVLSB. L1; de 22-06-2010, Proc. nº 6134/05.8TBSTS.P1.S1;, 09-03-2010, Proc. nº 5647/05.6TVLSB.S1; na doutrina: Antunes Varela, in RLJ Ano 119, pag. 216, Galvão Teles in “Direito das Obrigações”, 7ª ed., pag. 129.
2 Neste sentido, o Ac. RL, de 1/02/2011, Proc. nº 606/09.2TVLSB.L1-7.
3 Ac RL de 14/06/2002, Proc- nº 6560/09.3TVLSB.L1-2
4 “A perda de interesse do credor é apreciada objectivamente, o que significa que o valor da prestação deve ser aferido pelo tribunal em função das utilidades que a prestação teria para o credor, tendo em conta a justificá-lo um critério de razoabilidade próprio do comum das pessoas e a sua correspondência à realidade das coisas”: Ac. STJ de 27/05/2010, Proc. nº 599/04.2TBSCR.S1.
5 A impossibilidade definitiva do cumprimento aplica-se também aos contratos-promessa: neste sentido, o ac. do TUI de 30/11/2011, Proc. nº 44/2011
6 Neste sentido, v.g., o Ac. da R.L., de 29/03/1990, in CJ , 1990, II, pag.143; de 8/05/2012, Proc. nº 48/08.7TBCBR.L1-1;também o ac. da RL de 3/09/2000, Proc. nº 0050199 e ainda os citados do STJ, de 22-06-2010, Proc. nº 6134/05.8TBSTS.P1.S1 e de 09-03-2010, Proc. nº 5647/05.6TVLSB.S1.
Ver ainda Vaz Serra, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100.º, pag. 253 e sgs.
7 Diferente seria o caso de haver concorrência de culpas no incumprimento do contrato, caso em que não haveria lugar à restituição em dobro do sinal, mas simplesmente à restituição em singelo do que houver sido prestado. Neste sentido, o Ac. do TUI, de 30/11/2011, Proc. nº 44/2011. No direito comparado, ver no mesmo sentido o Ac. do STJ de 22/03/2011, Proc. nº 4015/07.0TBVNG.P1.S1.
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