Recurso nº 715/2012
Recorrente: A, S.A. (A有限公司)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
“A, S.A., em chinês A有限公司, com sede em Macau, na Avenida XX, nº XXX, Xº andar, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº XXXX(SO), ora Requerente vem, nos termos e ao abrigo do artigo 108º e da alínea c) do artigo 109º do Código do Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei nº 110/99/M, de 13 de Dezembro (doravante “CPAC”), intentar Acção para Passagem de Certidão contra os Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base, porquanto:
1. Em 26 de Janeiro de 2004, a A requereu, nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base, que, nos termos do n.º 3 do artigo 315.º do Código Comercial, fosse requerida pelo Ministério Público ao Tribunal a liquidação da sociedade “B, Limitada” (doravante, a “B”), com fundamento nas alíneas d), e) e f) do art.º 315.º do Código Comercial (doravante, o “CCom”) - cfr. Doc n.º 1;
2. Requerimento que deu origem ao processo n.º PA38/2004, o qual correu termos nos Serviços contra quem se apresenta esta acção.
3. A A é sócia da B, detendo uma quota de MOP1.000.000,00 (um milhão de patacas), representativa de 50% (cinquenta por cento) do capital social,
4. sendo que a outra metade do capital da B é detido por uma sociedade constituída em Macau, denominada Seghers - B, Limitada - cfr. Doc nº 2;
5. E esta, pelo menos desde 2002 que não tem qualquer actividade, nem se conhece o paradeiro dos seus administradores;
6. Tal requerimento foi apresentado porque a B tem por objecto exclusivo “a prestação de serviços de tratamento de águas residuais” (cfr. Doc. n.º 2)
7. e a sua actividade, em consonância com aquele, resumia-se à operação das estações de tratamento de águas residuais da Taipa e de Coloane, as quais lhe foram adjudicadas por contratos de concessão celebrados em 5 de Agosto de 1999, pelo período de três anos, os quais se iniciaram em 1 de Dezembro de 1999 e terminaram em 30 de Novembro de 2002 - cfr. extractos de escrituras publicados em 8 de Setembro de 1999, no Boletim Oficial n.º 36, II.ª série, a págs 5239 e segs.
8. Sendo que, no final daquele prazo, a operação daquelas infra-estruturas foi entregue a outra sociedade - cfr. extractos de escrituras publicados em 11 de Dezembro de 2002, no Boletim Oficial n.º 50, II.ª série, a págs 6934 e segs.
9. Em virtude da ausência da outra sócia, não é possível à ora Requerente alterar o objecto da B, porque não tem, só por si, a maioria qualificada exigida pela al. a) do artigo 382.º do CCom, para o fazer.
10. No período entre 26 de Janeiro de 2004 e 19 de Setembro de 2007 (três anos e meio), não mais a A ouviu falar de qualquer desenvolvimento do processo ou diligência realizada;
11. tendo, naquela última data, sido notificada, na pessoa do seu mandatário, de um despacho dos Serviços do Ministério Público a solicitar mais informações - cfr. Doc. nº 3.
12. A requerente respondeu em tempo e de forma completa ao referido despacho - cfr. Doc. n° 4.
13. A A não teve mais conhecimento de nenhum desenvolvimento útil no processo, pelo que, em 25 de Fevereiro de 2012, requereu a consulta dos autos na secretaria e, não tendo obtido resposta ao fim de quase quatro meses, requereu, em 20 de Junho de 2012, a passagem de certidão integral dos autos, para efeito de instrução de queixa a apresentar no Conselho dos Magistrados Judiciais - cfr. Doc. n.º 5.
14. Para surpresa da ora Requerente, a Digna Magistrada no Ministério Público encarregue do processo n.º PA38/2004 proferiu, em 9 de Julho de 2012, um despacho, onde recusava a consulta dos autos e a passagem da certidão, argumentando que “o conteúdo dos autos não foi fornecido pela requerente” e que o "processo é interno" (tradução nossa) - cfr. Doc. n.º 6.
15. Sendo que tal recusa vem acompanhada de um outro despacho, em que a Digna Magistrada do Ministério Público, apesar de admitir que se verifica pelo menos uma das condições elencadas no n.º 1 do art.º 315.º do Código Comercial para que se requeira a liquidação da B, ainda assim se recusa a fazê-lo, por falta de interesse do Ministério Público (tradução nossa).
16. Do conteúdo e tempestividade de tais despachos tiramos as devidas ilações quanto ao facto de os mesmos só aparecerem ao fim de mais de oito anos depois de ter dado entrada o requerimento inicial e após a A ter feito um requerimento com menção a uma queixa a apresentar no órgão disciplinar dos Magistrados do Ministério Público.
Concluindo, pediu a procedência da acção e intimar os Serviços do Ministério Público à passagem da certidão requerida.
Com o seguinte despacho preliminar, foi rejeitada a acção deduzida:
“Nos presentes autos, a Autora “A, S.A.”, vem intentar a presente acção para passagem de certidão contra os Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base, no âmbito do despacho proferido pela Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal Judicial de Base de 9 de Julho de 2012, junto do processo administrativo nº 38/2004, pelo qual foi indeferido o seu requerimento da passagem de certidão integral daqueles autos (vide fls. 79 dos autos).
Após da análise ponderada do teor da petição apresentada e dos documentos juntos, o Tribunal entende que os presentes autos devem ser rejeitados liminarmente por fundamentos infra expostos.
1. Falta da legitimidade do Réu
Prevê-se na Lei nº 9/1999 de 20 de Dezembro os artigos seguintes:
“Artigo 55º
Definição
1. O Ministério Público é um órgão judiciário que desempenha com independência as suas funções atribuídas por lei; o Ministério Público é autónomo em relação aos demais órgãos do poder, exercendo as suas atribuições e competências com independência e livre de qualquer interferência.
2. A autonomia e independência do Ministério Público são garantidas pela sua vinculação a critérios de legalidade e de objectividade e pela exclusiva sujeição dos seus magistrados às instruções previstas na lei.
“Artigo 56º
Atribuições e competências
1. (…)
2. Compete especialmente ao Ministério Público:
1) Representar a Região Administrativa Especial de Macau, a Fazenda Pública, os órgãos municipais ou órgãos municipais provisórios, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta;
2) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses colectivos ou difusos;
3) Exercer a acção penal;
4) Dirigir a investigação criminal, nos termos das leis de processo;
5) Fiscalizar a actuação processual dos órgãos de polícia criminal;
6) Promover e cooperar em acções de prevenção criminal;
7) Defender, no âmbito das suas atribuições, a independência dos tribunais e velar para que as respectivas atribuições sejam exercidas em conformidade com as leis;
8) Promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade;
9) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social;
10) Recorrer ao apoio de outras autoridades competentes no exercício das suas atribuições;
11) Intervir nos processos falimentares ou de insolvência e em todos os que envolvam interesse público;
12) Recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei;
13) Exercer funções consultivas nos casos previstos na lei ou a solicitação do Chefe do Executivo ou do presidente da Assembleia Legislativa;
14) Exercer quaisquer outras competências conferidas por lei.
Artigo 57.º
Representação e organização
1. Representam o Ministério Público:
1) No Tribunal de Última Instância, o Procurador que é coadjuvado por Procuradores-Adjuntos;
2) No Tribunal de Segunda Instância, os Procuradores-Adjuntos;
3) Nos tribunais de primeira instância, os Delegados do Procurador.
(…)”
De acordo com as disposições acima citadas, o Ministério Público é um órgão judiciário, autónomo aos demais órgãos de poder e exerce as funções atribuídas por lei com independência. Os Delegados do Procurador representam o Ministério Público junto dos tribunais de primeira instância.
Claramente não existe legitimidade para representar o Ministério Público, os seus Serviços junto do Tribunal Judicial de Base.
Pelo que, os presentes autos não devem prosseguir nos termos do art.º 394º, nº 1, alínea c) do C.P.C., ex vi do art.º 1º do C.P.A.C.
2. Falta do pressuposto legal
Estipula-se no art.º 108º do C.P.A.C. o seguinte:
Artigo 58.º
(Pressupostos)
1. Quando não seja dada satisfação às pretensões formuladas ao abrigo dos artigos 63º a 67º do Código do Procedimento Administrativo ou de lei especial sobe direito dos particulares à informação, consulta de processo ou passagem de certidão, o interessado ou o Ministério Público podem pedir a intimação do órgão administrativo competente nos termos e com os efeitos previstos na presente secção.
(…)”
Pela leitura da disposição acima referida, não se verifica o preenchimento do requisito legal pelos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base, nem pela Digna Delegada do Procurador para serem entidade requerida (Ré) neste tipo da acção prevista no C.P.A.C.
Não resta dúvida que o legislador não se exclui a aplicação do《Código do Procedimento Administrativo》aos órgãos judiciários no exercício das funções materialmente administrativas e na prática dos actos em matéria administrativa, nos termos do art.º 2.º do C.P.A.; entretanto, está consagrada na《Lei de Bases da Organização Judiciária》a competência do Tribunal da Segunda Instância a julgar em primeira instância recursos dos actos administrativos ou em matéria administrativa praticados por Presidente do Tribunal de Última Instância, Procurador, Comissão Independente para a Indigitação dos Juízes, Conselho dos Magistrados Judiciais e respectivos Presidentes, Presidente do Tribunal de Segunda Instância, Presidente dos Tribunais de Primeira Instância e Juízes que superintendam nas secretarias, Conselho dos Magistrados do Ministério Público e respectivo Presidente, Procuradores-Adjuntos e Delegados do Procurador (n.º 8 do art.º 36.° da Lei n.º 9/1999《Lei de Bases Organização Judiciária》).
Porém, a legitimidade conferida ao Ministério Público para requerer ao tribunal que declare a dissolução da sociedade pela verificação de qualquer facto dela determinante e prevista no art.º 315.°, n.º 3, do Código Comercial, como nas outras disposições legais que se visam a proteger os interesses públicos e determinam e atribuem à competência do Ministério Público, é prevista no art.º 56.°, n.º 2, da Lei n.º 9/1999《Lei de Bases da Organização Judiciária》cuja intervenção é obviamente na qualidade de órgão judiciário no exercício das funções (não como órgão administrativo) e não em matéria administrativa.
E ao contrário do que entendia pela A., entende-se que o quadro dos magistrados do Ministério Público já se estabelece expressamente o mecanismo processual de impugnação dos actos praticados pelos Delegados do Procurador no exercício das funções (artºs 55.º, n.º 2, 62.º, n.º 3, 63.º e 64.º da Lei n.º 9/1999《Lei de Bases da Organização Judiciária》), sendo o Venerando Tribunal da Segunda Instância competente para julgar em primeira instância acções propostas contra juízes de primeira instância e Delegados do Procurador, por causa do exercício das suas funções (art.º 36.º, nº 4, da Lei nº 9/1999《Lei de Bases da Organização Judiciária》) .
Dado que o Tribunal Administrativo é o tribunal com competência exclusiva para conhecer “acções sobre prestação de informação, consulta de processo ou passagem de certidão”, ao abrigo dos art.º 30.º n.º 3, alínea 2) da Lei n.º 9/1999《Lei de Bases da Organização Judiciária》, e atento as considerações acima expostas, não se vê a possibilidade de, oficiosamente, remeter os presentes autos para o Venerando Tribunal da Segunda Instância para o conhecimento, pelo que deve rejeitar-se liminarmente os presentes autos.
Custas pela Autora, com taxa de justiça de 2 UC.
Notifique e D.N.”
Com esta decisão não conformou, na parte que em que é ali douta mente decidido que o Tribunal Administrativo da RAEM não é competente para julgar acção para passagem de certidão contra o Ministério Público intentada nos termos e ao abrigo dos artigos 108.º e segs. do Código do Processo Administrativo Contencioso aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro (doravante “CPAC”) como reacção contra a recusa da prática daquele acto por Delegado do Procurador em sede de procedimento instrutório prejudicial anterior ao exercício das competências conferidas àquele órgão pelo n.º 3 do artigo 315.° do Código Comercial (CCom), porque tais actos têm natureza judiciária, e não administrativa, sendo o Tribunal de Segunda Instância, a entidade competente para julgar acções interpostas contra Delegados do Procurador por causa do exercício das suas funções, veio, nos termos e ao abrigo da alínea do nº 1 do artigo 160º do CPAC recorrer a requerente A, S.A.(A有限公司) da mesma para esta instância alegando que:
1. É objecto do presente recurso o douto despacho de fls. 100 e seguintes, na parte em que considera que os actos praticados pelo Delegado do Procurador durante a fase instrutória prejudicial de um procedimento iniciado pelo Ministério Público a requerimento de particular, com o objectivo de aferir da verificação de algum dos pressupostos para a dissolução de uma sociedade comercial previstos no n.º 1 do artigo 315.º do Código Comercial, e a consequente prolação de decisão de exercício das competências previstas no n.º 3 do mesmo normativo, não têm natureza administrativa, antes consubstanciando o exercício de funções judiciárias.
2. Onde também se considera que, por isso, o Tribunal Administrativo não pode conhecer de acção para passagem de certidão interposta por interessado como reacção à recusa Delegado do Procurador encarregue do procedimento, em emitir tal documento, antes devendo o interessado recorrer às vias previstas nos artigos 55º, nº 2, 62º, nº 3, 63º e 64º da LBOJ, acrescendo que é esse Tribunal de Segunda Instância a sede competente para apreciar acções contra Delegados do Procurador por causa do exercício das suas funções, cfr. artº 36°, nº 4 da LBOJ.
3. É dito no douto despacho recorrido, que os actos praticados pelo Ministério Público, no exercício das competências que lhe são conferidas pelo artigo 315º, nº 3, do Código Comercial, actua enquanto órgão judiciário, e não administrativo, incluindo quando se recusa a passar certidão, no âmbito de tais actos.
4. O douto despacho recorrido confunde a natureza jurídica do órgão com os elementos caracterizadores do acto praticado, de recusa de passagem de certidão.
5. E também se afigura que não tem em conta a diferença entre os actos praticados pelo Ministério Público em fase meramente instrutória (pré-judicial), destinada a apurar a verificação de algum dos factos previstos no n.º 1 do artigo 315.° do Código Comercial, e aqueles que são praticados pela mesma entidade durante, e após o requerimento de dissolução a apresentar ao Tribunal, previsto no n.º 3 do mesmo normativo.
6. Dúvidas não existem que o Ministério Público é um órgão judiciário, mas tal não significa que todos os actos que partilham dessa característica.
7. Porque o processo n.º PA38/2004 não se rege por nenhuma norma de natureza processual civil ou penal, haverá então de buscar outro substrato em que se possa basear, e, na ausência de outro quadro normativo, apenas restará o Código do Procedimento Administrativo.
8. Entendimento que é, aliás, partilhado pelo próprio Ministério Público, já que os autos estão autuados como P(rocesso) A(dministrativo) n.º 38/2004.
9. A competência para requerer a dissolução de sociedades comerciais tem natureza de ordem pública, visando a defesa de interesses comunitários de segurança e certeza no comércio jurídico.
10. E isso não afasta a circunstância de que os actos instrutórios a tal requerimento não têm natureza processual (civil ou penal), porque a actuação do Ministério Público na recolha de indícios e provas, preparatória ao exercício da competência prevista no n.º 3 do artigo 315.° do Código Comercial, não se encaixa no estipulado no Código do Processo Civil nem no Código de Processo Penal, antes constituindo um procedimento administrativo especial, não especialmente regulado, previsto no nº 6 do artº 2º do CPA.
11. Sendo-lhe aplicável, então, os artigos 63.º a 67.º e 85.º e seguintes do CPA, com as necessárias adaptações.
12. Verificando-se pressupostos da dissolução da sociedade em apreciação, o requerimento previsto no nº 3 do artigo 315.º do Código Comercial é enviado para as instâncias judiciais e só então passa o Ministério Público a exercer um papel formalmente judiciário, regulando-se a sua intervenção pelo disposto nos artigos 1034° e seguintes do Código do Processo Civil.
13. E a decisão de requerer, ou não, a dissolução de uma sociedade, ao abrigo de uma norma de ordem pública (o n.º 3 do artigo 315.º do Código Comercial), afigura-se preencher os requisitos essenciais do acto administrativo, consagrados no artigo 110.º do CPA.
14. É uma decisão tomada ao abrigo de normas de direito público (como se afirma no douto despacho recorrido), que visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, a qual contém a solução de um determinado caso.
15. É um acto jurídico unilateral, e não um facto, ou uma operação material, porque produz efeitos de direito e resulta da vontade do órgão que o emite.
16. Isto, mesmo sendo certo que não é emitido por um órgão da Administração.
17. E, a defender-se que os actos praticados e as decisões tomadas pelo Ministério Público no âmbito da instrução prévia ao exercício da competência prevista no n.º 3 do artigo 315.º do Código Comercial não são regulados pelo CPA, então aqueles ocorrem num vácuo legal, mesmo que afectem os direitos de particulares, como é o caso.
18. Esvaziando de conteúdo o direito consagrado no art.º 36.º do Lei Básica, relativamente a esta e outras competências do Ministério Público.
19. Não se afigura apropriado in casu, como vem defendido no douto despacho recorrido, encetar acção nesse Tribunal de Segunda Instância ao abrigo do n.º 8 nem, tão pouco, do n.º 4 do artigo 36.° da LBOJ, como reacção a uma recusa de passagem de certidão num processo como aquele ora em apreço.
20. Aplicando-se o CPA ao procedimento instrutor n.º PA38/2004, então existe um mecanismo específico de reacção contra recusas de prestação de informação, consubstanciado na acção prevista nos artigos 108.0 e seguintes do CPAC.
21. Isto, porque o acto de passagem da certidão pretendida, ou da sua recusa, não pode ocorrer num vácuo legal, sendo certo que não se lhes aplica o disposto no artigo 117.º do Código de Processo Civil, nem tão pouco, as normas do artigo 76.º do Código de Processo Penal.
22. Pelos motivos atrás apontados, o douto despacho recorrido violou o artigo 19.° e o artigo 30.º, n.º 2, alínea 3), sub-alínea (2), da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, onde seja considerado competente o Tribunal Administrativo e apropriada a acção para passagem de certidão prevista no CPAC, para a situação em que o Ministério Público, no âmbito de processo instrutor prévio ao exercício da competência prevista no n.º 3 do artigo 315.º do Código Comercial, se recusa a passar certidão do mesmo a particular que nisso tem interesse, admitindo-se o requerimento anteriormente apresentado pela ora Recorrente ao abrigo do artigo 108.º e seguinte do CPAC.
O Digno Magistrado do Ministério Público deu o seu douto parecer que se transcreve o seguinte:
“No andamento do P.A. n.º 38/2004, a ilustre Colega proferiu dois despachos (vide. respectivamente fIs.79 e fls.80 a 82 verso dos autos), um consistente em indeferir o pedido de emissão de certidão integral desse P.A. (cfr. fls.78 dos autos), e desse despacho, a ora recorrente intentou a acção para passagem de certidão por via da petição de fls.2 a 13 dos autos.
No douto despacho em questão (fls. 100 a 102 dos autos), a Mema. Juiz a quo rejeitou liminarmente a acção para passagem de certidão, fundando a rejeição sucessivamente na《Falta da legitimidade do Réu》e na《Falta do pressuposto legal》.
O próprio despacho recorrido demonstra, de forma exponente e nítida, que, na óptica da Mema. Juiz a quo, a 《Falta do pressuposto legal》se traduz na incompetência do TA para julgar essa acção, pertencendo-se a qual ao Venerando TSI, visto que preferido pela magistrada do M.ºP.º no exercício da função judiciária, o referido despacho de indeferimento não tem a natureza administrativa.
Nas Alegações do presente recurso (fls.106 a 122 dos autos), a recorrente delimitou o objecto ao despacho da Mema. Juiz a quo na parte apenas respeitante à 《Falta do pressuposto legal》, e imputou-lhe a violação das disposições nos arts.19° e 30°, n.º 2, alínea 3), subalínea (2), sendo ambos da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Sem prejuízo do respeito pela opinião diferente, entendemos que não merecerá provimento o recurso em apreço.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explicações da nos Mema. Colega na Resposta de fls.148 a 149 dos autos.
De matriz portuguesa, o n.º 1 do art. 55° da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau define o M.ºP.º como ser um órgão judiciário desempenhando com independência as funções atribuídas por lei, sendo autónomo em relação aos demais órgãos do poder, e exercendo as atribuições e competências livre de qualquer interferência. Nos termos desta definição legal, o M.° P.° não é um organismo administrativo e, por natureza das coisas, todos os seus magistrados não são órgão administrativo, embora podendo praticar casuisticamente “actos materialmente administrativos” ou “actos em matéria administrativa”.
De qualquer modo, o ponto pacífico é que não tem a natureza administrativa as atribuições e competências consagradas no art. 56° da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, e concebida pelo legislador como atribuições e competências inerentes ao estatuto do M.º P.° e à profissão dos seus magistrados.
Nesta medida, não são “actos administrativos” nem sequer “actos materialmente administrativos” os despachos proferidos por magistrados do M.° P.° no exercício ou ao abrigo destas atribuições e competências de índole inerentes.
Bem vistas as coisas, parece-nos que em bom rigor, a designação de “processo administrativo” não é apropriada. Dado que os autos organizados pelo M.ºP.º junto do TJB, de espécies muito variadas, se destinam a recolher elementos pertinentes e imprescindíveis para apurar se, no futuro, propor uma acção. Pelo que aqui o adjectivo “administrativo” significa “interno” (no seio do M.ºPº), “preparatório” e “pré-judicial”.
O que implica que tais processos são finalisticamente semi-judiciais ou para-judiciais. Daí flui que se trata de processo preparatório/preliminar ou instrutório. E os despachos de arquivamento ou de recusa do pedido de consulta ou de passagem de certidão, proferidos por magistrado do M.ºP.º no seio deste tipo de processo, não se configuram “actos administrativos” nem “actos materialmente administrativos”.
Acompanhamos a sensata tese sustentada no despacho proferido no Processo n.º 711/2012: “Não temos qualquer dúvida de que a competência conferida ao M.ºP.º pelo n.º 3 art.315° do C.Comercial, está relacionada com as suas atribuições enquanto órgão judiciário.” Pois bem, não é difícil descortinar-se que a《legitimidade» atribuída ao MºPº por este n.º 3 está em plena harmonia com a competência prevista na alínea 11) do n.º 2 do art.56° da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau.
Sendo assim, tem necessariamente natureza para-judiciais e não verdadeiramente administrativa um qualquer processo que, embora chamado P.A., seja aberto nos termos e para efeitos consignados no art. 315° n.º 3 do Código Comercial.
No ordenamento jurídico de Macau, o art. 19° da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau enumera apenas os limites negativos do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro e, aliás, da jurisdição administrativa em geral.
Nestes termos, não é permitida ou, ao menos, segura a interpretação a contrario sensu deste comando legal. Quer isto dizer que não necessariamente cabem na jurisdição administrativa as questões não elencadas no referido art.19°.
Pois, o âmbito da jurisdição administrativa é delimitado, antes, pelo limite positivo traduzido, nos termos do nº 1 do art. 30° da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, no conceito da relação jurídica administrativa (Lino José B. R. Ribeiro: Manual Elementar de Direito Processual Administrativo de Macau, pp.25 a 39).
O que nos leva extrair que a jurisdição administrativa pode apenas resolver os litígios e questões nascidos da relação jurídica administrativa, estando obrigatoriamente excluídos da jurisdição administrativa em geral todos aqueles não daí emergentes.
No caso sub judice, não é administrativa a relação jurídica substantiva que subjaz ao litígio - a acção para passagem de certidão, pelo que a qual fica fora da jurisdição administrativa em geral. O que torna pacífico e incontroverso que o Tribunal Administrativo não era nem é competente para conhecer da mesma.
Tudo isto reforça-nos a opinar que o douto despacho in questio não infringe nem o art.19° nem o art.30°, n.º 2, alínea 3), subalínea (2), da Lei de Bases da Organização Judiciária.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso.”
Conhecendo.
Não se trata o objecto do presente recurso da questão de mérito, ou seja, da questão substantiva, a saber se é correcto o decidido do indeferimento da passagem da certidão requerida, antes a questão adjectiva, a saber se o Tribunal Administrativo é competente para o conhecimento do pedido da dita intimação da passagem da certidão. Tudo incide em saber quem é o autor do acto de indeferimento e a sua caracterização.
Tal como foi resumido pelo douto parecer do Ministério Público junto deste TSI, “na óptica da Mmª Juiz a quo, a 《Falta do pressuposto legal》se traduz na incompetência do TA para julgar essa acção, pertencendo-se a qual ao Venerando TSI, visto que preferido pela magistrada do M.ºP.º no exercício da função judiciária, o referido despacho de indeferimento não tem a natureza administrativa”.
Que acto é este?
O acto em mira fora praticado em sede do PA nº 38/2004, autuado junto dos Serviços do Ministério Público.
O conceito de acto administrativo tradicionalmente acolhido numa perspectiva contenciosa, ou seja, de delimitação do objecto do recurso contencioso (e que não se afasta, no essencial, da noção do Art. 110º do CPA) aponta-o, em termos estruturantes, como uma decisão autoritária e unilateral de um órgão da Administração, ao abrigo de normas de direito público, que visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
A lei, tal com a própria sentença recorrida afirmou, “não se exclui que a aplicação do 《Código do Procedimento Administrativo》aos órgãos judiciários no exercício das funções materialmente administrativas e na prática dos actos em matéria administrativa, nos termos do art.º 2.º do C.P.A.; entretanto, está consagrada na 《Lei de Bases da Organização Judiciária》a competência do Tribunal da Segunda Instância a julgar em primeira instância recursos dos actos administrativos ou em matéria administrativa praticados por Presidente do Tribunal de Última Instância, Procurador, Comissão Independente para a Indigitação dos Juízes, Conselho dos Magistrados Judiciais e respectivos Presidentes, Presidente do Tribunal de Segunda Instância, Presidente dos Tribunais de Primeira Instância e Juízes que superintendam nas secretarias, Conselho dos Magistrados do Ministério Público e respectivo Presidente, Procuradores-Adjuntos e Delegados do Procurador (n.º 8 do art.º 36.° da Lei n.º 9/1999《Lei de Bases Organização Judiciária》”.
Quer isto dizer que caso os actos administrativos fossem praticados pelo Magistrado do Ministério Público ou se tratassem de actos em matéria administrativa, caberia sempre ao TSI a apreciar do mesmo.
É crucial saber se o acto de indeferimento é qualificável como um acto administrativo ou praticado em matéria administrativa, susceptível de ser objecto da presente acção.
Trata-se de uma pretensão do requerente da passagem da certidão dos autos integrais do requerimento da liquidação da sociedade comercial a promover pelo Ministério Público, a exercer este poder ao abrigo do disposto do n.º 3 do artigo 315.º do Código Comercial, cujos termos se encontram no processo administrativo junto dos serviços do Ministério Público.
Neste Tribunal de Segunda Instância, no processo nº 711/2011, tinha oportunidade de pronunciar-se, na decisão, de 27 de Setembro de 2012, tomada pelo Relator do Processo, também adjunto neste Tribunal, sobre a qualificação do acto do Magistrado do Ministério Público praticado no processo administrativo, que é de nossa adesão para todos os efeito da consideração da decisão do presente recurso, a transcrever no seguinte:
“O processo administrativo do Mº Pº é um processo interno e preliminar com vista a colher elementos úteis para a eventual interposição duma acção judicial propriamente dita.
Tal tipo de processo tem um vasto campo de utilização, pois, é utilizado tanto na área da tutela dos menores (ex: regulação do poder paternal, impugnação da maternidade e paternidade, etc) como na dos incapazes (ex: interdição e inabilitação), bem como no caso sub justice.
Não temos qualquer dúvida de que a competência conferida ao Mº Pº pelo nº 3 do artº 315º do C.Com. está relacionada com as suas atribuições enquanto órgão judiciário.
E a matéria inerente diz respeito duma relação jurídico-comercial e não administrativa.
Nesta conformidade, não sendo o Mº Pº um órgão administrativo nem tendo a matéria inerente a natureza administrativa, o acto da recusa de actuação da Digna Magistrada do Mº Pº nunca pode ser configurado como um acto administrativo ou acto em matéria administrativa.
Como é sabido, nos termos do artº 55º da Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM (Lei nº 9/1999), o Mº Pº é um órgão judiciário que desempenha com independência as suas funções atribuídas por lei, e é autónomo em relação aos demais órgãos do poder, exercendo as suas atribuições e competências com independência e livre de qualquer interferência.
Neste contexto e salvo os casos legalmente previstos, o Tribunal não pode interferir nas actuações do Mº. Pº.
Em bom rigor e salvo melhor opinião em sentido contrário, afigura-se-nos que o meio idóneo para reagir contra a recusa da actuação da Digna Magistrada do Mº Pº seria a sua impugnação hierárquica.
Pois, os magistrados do Mº Pº são hierarquicamente subordinados e esta hierárquica consiste na subordinação dos magistrados de categoria inferior aos de categoria superior (cfr. artº 8º do Estatuto dos Magistrados, Lei nº 10/1999).
E o Procurador é o dirigente e representante máximo do Mº Pº, que goza de todos os poderes necessários para dirigir o Mº Pº e manter o seu funcionamento, especialmente dirigir e inspeccionar o funcionamento dos diversos serviços do Mº Pº, bem como os trabalhos dos Procuradores-Adjuntos, dos delegados do Procurador e do restante pessoal – nº 3 do artº 62º da Lei de Bases de Organização Judiciária, Lei nº 9/1999.”
Tendo a mesma natureza do acto em causa nos presentes autos, o acto em si não será susceptível integrar o acto referido no artigo 36° n° 8, al. (5) da mesma Lei n° 9/1999, a título do acto administrativo ou acto de matéria administrativa, logo insceptível de ser objecto da acção de intimação.
É de manter a decisão recorrida que se afigura ser correcta quer nos termos de fundamentos quer da solução final.
Ponderado resta decidir.
Pelo exposto acordam neste Tribunal de Segunda Instância em julgar improcedente o recurso jurisdicional interposto pela requerente A, S.A. .
Custas pela recorrente.
RAEM, aos 8 de Novembro de 2012
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira Estive presente
Ho Wai Neng Vítor Coelho
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TSI.715-2012 Página 1